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Capa do Livro

A Arte de Bem Roubar em Portugal

Índice

Por Francisco Gonçalves Com a colaboração crítica e implacável de Augustus

Introdução – O Reino dos Espertos

Portugal, terra de sol e de saudade, de poetas e navegadores, mas também de trapaceiros engenhosos, mestres do expediente e virtuosos da cunha. Desde os tempos em que se vendiam forais e se trocavam capitanias por favores, a arte de bem roubar evoluiu como um traço cultural — tão nacional como o fado e o bacalhau.

Aqui não se rouba com faca na mão, mas com assinatura em ata, parecer jurídico e selo do Estado. A corrupção não se esconde: senta-se em gabinetes, desfila em inaugurações, sorri nas televisões e acumula mandatos. Em Portugal, roubar deixou de ser crime — é competência política, herança de sangue, técnica de sobrevivência.

A democracia, que prometeu liberdade e justiça, trouxe também novas oportunidades para a ladroagem. Aprendeu-se a roubar com leis, com contratos públicos, com empresas do regime.

Criaram-se fundações, ajustes diretos, nomeações cruzadas, e toda uma liturgia de legalidade aparente para sustentar o saque.

Este livro é um espelho afiado da nossa história. Uma viagem pela longa linhagem dos larápios de fato e gravata. Uma sátira documentada. Uma denúncia com humor. Uma provocação necessária.

Porque, nesta nação à beira-mar saqueada, a arte de bem roubar é o verdadeiro património imaterial. E é tempo de o desmascarar.

Capítulo 1 – O Roubo Fundacional: Das Capitanias aos Donos do Terreiro do Paço

A fundação de Portugal, oficialmente em 1143, não se fez apenas com espada e fé — fez-se também com terras dadas, privilégios concedidos e alianças seladas à mesa, com pergaminhos e favores. Desde o início, o país nasceu com um vício hereditário: o do saque aristocrático com roupagem de mérito divino.

As capitanias hereditárias são talvez o exemplo mais escancarado da velha arte de bem roubar com chancela régia. A Coroa distribuía vastos territórios a fidalgos de confiança, não por competência ou por concurso, mas por sangue, lealdade e conveniência. Um país dividido à régua entre amigos e vassalos do rei.

Com o tempo, as elites tornaram-se donas de tudo o que era produtivo: terras, portos, comércio. Não precisavam produzir — bastava-lhes mandar. O povo trabalhava, os senhores arrecadavam. E assim nasceu o esqueleto de um sistema que perdura: um país dual, entre os que mandam e os que obedecem.

Chegados aos séculos do império, a coisa piora. A glória dos Descobrimentos foi também a glória do contrabando oficial, do saque autorizado, do tráfico disfarçado de civilização. Enviávamos missionários com a cruz numa mão e faturas de escravos na outra.

O Terreiro do Paço, sede do poder régio, tornou-se símbolo da apropriação do país por uma elite intocável. Lá se decidia quem recebia o quê, quem explorava o quê, quem lucrava com o quê. Um ministério perpétuo do privilégio.

E assim se construiu Portugal: uma nobreza que explorava, um clero que justificava, um povo que calava. A arte de bem roubar começava aí: com vestes bordadas, linguagem solene e um selo real que transformava rapina em legitimidade.

Portugal não foi fundado por ladrões vulgares — foi moldado por aristocratas do saque.

Capítulo 2 – D. João V e o Ouro que Escorria… para as elites

Portugal, século XVIII. O país vive sob o reinado absolutista de D. João V, o Magnânimo. Mas a verdadeira grandeza deste rei não se media pela justiça social ou pelo progresso do povo — media-se pelas toneladas de ouro brasileiro que entravam em Lisboa, e pelas obras monumentais que serviam de espelho à sua vaidade imperial.

O ouro do Brasil escorria pelos porões das naus e enchia os cofres do Tesouro. Mas não por muito tempo: logo era transformado em palácios, conventos, fontes de mármore, carruagens de luxo, banquetes principescos e... subornos ao Vaticano para garantir que Portugal fosse tratado como reino abençoado.

A corte lisboeta era uma máquina de ostentação.

Os ministros competiam por agradar ao monarca. Os fidalgos exibiam riqueza importada da colónia como medalhas de glória. E o povo? Assistia à distância, entre a miséria e o espanto, sem acesso a escolas, saneamento ou pão regular.

D. João V transformou o país numa ópera barroca: belíssima por fora, oca por dentro. O investimento em cultura e arte era, sim, real — mas dirigido sempre à glorificação do poder e nunca à educação popular. O rei patrocinava música sacra, não escolas; construía conventos, não hospitais.

Na prática, o ouro serviu para enriquecer ainda mais quem já mandava. Os contratos para exploração do Brasil eram entregues a famílias nobres e comerciantes ligados à corte. Havia impostos, mas os isentos eram sempre os mesmos. Quem pagava? O povo, claro — na colónia e na metrópole.

A corrupção era institucional, abençoada por Deus e reconhecida como parte do tecido social. E o mais trágico: esse modelo de drenagem de riqueza para cima enraizou-se. Nunca mais nos livramos dele.

Portugal passou a viver com a nostalgia de um brilho falso — e com a prática constante da rapina legalizada.

Com D. João V, a arte de bem roubar atingiu o estatuto de virtude régia. E o país perdeu uma oportunidade histórica de transformar riqueza em bem comum.

Capítulo 3 – A Monarquia e os Bastidores da Honra Vendida

A monarquia constitucional portuguesa, que se seguiu ao absolutismo régio, prometia modernidade, liberdade e renovação política. Na prática, ofereceu mais do mesmo: redes de influência, troca de favores, enriquecimento por via indireta e honrarias negociadas em jantares discretos.

Com a crescente pressão liberal, a aristocracia teve de reinventar a forma de se manter no topo. De senhores de terras, passaram a banqueiros, industriais e políticos. Mas o instinto era o mesmo: acumular poder e riqueza usando o Estado como instrumento privado.

O Parlamento, criado para representar o povo, tornou-se palco de teatralidade vazia.

Os deputados eram escolhidos entre famílias influentes, muitos deles sem qualquer ligação real ao povo que supostamente representavam. A compra de votos, os caciques locais e o apadrinhamento tornaram-se moeda corrente.

A Corte continuava a ditar moda e moral. Os títulos nobiliárquicos podiam agora ser comprados com dinheiro fresco ou serviços prestados ao regime. A “honra” era negociada em leilões discretos — bastava agradar ao rei, financiar uma campanha, ou calar um escândalo.

As finanças do Estado eram um labirinto de empréstimos, rendas vitalícias, cargos sinecuristas e adjudicações dúbias. Os negócios públicos eram controlados por meia dúzia de famílias, e as obras públicas eram sistematicamente inflacionadas para gerar comissões generosas.

As colónias continuavam a ser saqueadas — agora com roupagem liberal. O império ultramarino era fonte de riqueza para os que tinham “bons contactos” no Terreiro do Paço. Os nativos? Apenas figurantes no palco da expansão europeia.

No final do século XIX, Portugal era já um país arruinado, com crises cíclicas e revoltas populares. Mas as elites mantinham-se firmes — graças à arte refinada de se adaptarem à nova ordem mantendo o velho privilégio.

A monarquia acabou, mas não a sua herança. O poder de bastidores, os jogos de influência, a manipulação da legalidade — tudo isso transitará para a república. Porque em Portugal, os regimes mudam… mas o roubo continua.

Capítulo 4 – A Primeira República e a República dos Malasartes

A Primeira República nasceu com foguetório ideológico e morreu com tiros de metralhadora. Entre 1910 e 1926, Portugal viveu numa instabilidade permanente, com governos a cair como castelos de cartas, revoluções quase mensais e uma democracia que rapidamente se tornou um circo de vaidades e ambições.

Prometia-se transparência, progresso, igualdade. Entregou-se caos, miséria e... mais do mesmo: redes de influência, nomeações por amizade, escândalos bancários e contratos públicos duvidosos.

Os políticos da Primeira República eram oradores inflamados, republicanos de punho cerrado e coração recheado de interesses.

Muitos viam o cargo público como forma de compensação por anos de luta contra a monarquia. Tinham derrubado a coroa, mas não o desejo de se sentar no trono do poder.

As finanças públicas foram geridas com leviandade e oportunismo. Multiplicaram-se os ministérios, os institutos, os cargos criados à medida. O Estado tornou-se um cabide de empregos para os amigos da nova ordem.

O escândalo do Crédito Predial, o descalabro dos Caminhos de Ferro, os negócios do carvão e do trigo — tudo fazia parte de uma narrativa de corrupção embrulhada em retórica revolucionária. Os jornais denunciavam, o povo murmurava... e nada mudava.

As famílias influentes da monarquia não desapareceram — apenas adaptaram-se. Continuaram a controlar negócios e instituições, agora como “republicanos convictos”. A república foi capturada logo à nascença.

E o povo? Passava fome, via os filhos morrerem nas trincheiras da I Guerra Mundial, e era chamado a votar de tempos a tempos — não para decidir, mas para legitimar.

A Primeira República não caiu por falta de ideais — caiu porque esses ideais foram traídos por dentro. E o golpe de 1926, que abriria caminho ao Estado Novo, foi apenas a certidão de óbito de um regime que prometeu libertar... e só libertou os bolsos de alguns. Portugal continuava fiel à sua tradição: o regime mudava, o roubo mantinha-se. E assim se cimentava a arte nacional de bem roubar, agora com sotaque republicano e pose jacobina.

Capítulo 5 – O Salazarismo: Pobreza para o povo, luxo para os leais

Com o golpe de 1926 e a ascensão de Salazar ao poder, Portugal entrou numa longa noite de quase meio século. O regime prometia ordem, moral e trabalho. Entregou silêncio, censura e miséria. Mas não para todos. Porque enquanto o povo era mantido na ignorância e no medo, os leais ao regime viveram décadas de privilégios e lucros certos.

Salazar, o “contabilista da pátria”, construiu um Estado autoritário com base no controlo total: da palavra, da imprensa, da cultura, das finanças. Apresentava-se como austero, incorruptível — mas o seu sistema estava montado para proteger os que lhe juravam fidelidade.

As obras públicas, os contratos com o Estado, os monopólios económicos, eram entregues a empresários amigos, membros da União Nacional ou figuras discretamente ligadas à Igreja ou à maçonaria adaptada ao regime. O favoritismo era absoluto, mas embrulhado numa falsa moral de “serviço à nação”.

A economia era controlada por um punhado de grupos: a CUF, a Companhia das Águas, os bancos do regime. O capital acumulava-se sempre nas mesmas mãos. A mobilidade social era inexistente: os filhos dos pobres ficavam pobres, os filhos dos ricos tornavam-se ministros.

A censura e a polícia política garantiam que os escândalos não fossem conhecidos. E mesmo quando algo se tornava público, tudo era abafado, manipulado, reescrito. A verdade era um luxo que o povo não podia pagar.

A guerra colonial foi outro sorvedouro de vidas e recursos. Jovens pobres iam morrer pelo império, enquanto os filhos da elite arranjavam dispensa ou emprego diplomático. O ouro de Moçambique, o café de Angola, o petróleo, tudo servia para manter o sistema — mas nada chegava a quem mais precisava.

Salazar dizia “orgulhosamente sós” — mas os privilegiados nunca estiveram sós. Estavam muito bem acompanhados pelas benesses do Estado Novo. O país andava descalço, mas os seus aliados usavam sapatos de verniz italiano.

A arte de bem roubar sob o salazarismo era feita com discrição, missa ao domingo e contas bancárias em nome de outrem. Era o roubo moralizado, institucionalizado, bendito. E quando a ditadura caiu, muitos desses larápios disfarçados de patriotas... continuaram a governar. Porque o regime acabou, mas o hábito — esse velho hábito português — ficou.

Capítulo 6 – Abril de Cravos e Carteiras Abertas

O 25 de Abril de 1974 trouxe liberdade, esperança, e o fim de uma ditadura longa e sufocante. Mas trouxe também uma nova oportunidade para o velho vício nacional: o uso do Estado como fonte de riqueza privada.

Durante os primeiros anos da Revolução, enquanto o povo gritava “o povo unido jamais será vencido”, outros gritavam em surdina: “onde assino?”. Houve nacionalizações — muitas — feitas à pressa, com boas intenções e má execução. E logo a seguir, começou a dança da ocupação do poder.

Os partidos políticos, recém-formados ou reabilitados, perceberam rapidamente que o verdadeiro jogo não era ideológico — era financeiro. O Estado era agora o maior patrão, o maior investidor, o maior contratante. E com ele vinham os cargos, as avenças, os concursos... e as oportunidades.

As novas elites partidárias ocuparam cargos em todos os sectores: empresas públicas, bancos nacionalizados, institutos, fundações. Os militares revolucionários abriram o caminho, mas os políticos profissionais souberam aproveitá-lo melhor.

Nas décadas seguintes, o discurso mudou: da revolução passou-se para a gestão, do povo passou-se para os gabinetes. E com o tempo, os filhos da liberdade passaram a ser senhores do compadrio. A corrupção vestiu camisa de forças democráticas.

Vieram os fundos europeus. Vieram os programas de desenvolvimento. Vieram os incentivos. E com eles veio também a engenharia do saque legalizado: projectos duplicados, obras fantasmas, formação paga e não dada, subsídios desviados para jipes e viagens ao estrangeiro.

Abril abriu portas, sim. Mas também abriu carteiras. E quem aprendeu a roubar com Salazar... adaptou-se com facilidade à democracia.

A arte de bem roubar não acabou com a Revolução. Pelo contrário — reinventou-se. Com cravos na lapela e discursos inflamados sobre o povo. Porque em Portugal, até a liberdade pode ser usada como desculpa para o velho hábito de encher os bolsos.

Capítulo 7 – O Centrão: Como PSD e PS fizeram do país um ringue de favores

Terminada a agitação revolucionária, estabilizado o regime democrático, emergiu em Portugal uma nova ordem política: o Centrão. Um eixo de poder informal e contínuo, protagonizado por dois partidos que se alternam no governo há quase cinquenta anos — o Partido Socialista e o Partido Social Democrata.

Oficialmente rivais, na prática cúmplices. Enquanto o povo vota num ou noutro à espera de mudança, o que muda é apenas o logótipo na pasta do ministro. O resto mantém-se: as ligações perigosas, as nomeações cruzadas, os ajustes diretos, os negócios à mesa de restaurante.

O Centrão criou uma máquina invisível mas eficaz. Um sistema de favores, lealdades, negócios e silêncios. Há nomes que atravessam ministérios, empresas públicas, câmaras municipais, fundações, universidades. São os “quadros de confiança”, que tanto servem no governo como nas empresas que recebem subsídios.

As privatizações dos anos 90 foram feitas à medida. O Estado vendeu barato, muitas vezes a ex-dirigentes partidários ou amigos bem colocados. Os media encolheram os ombros. A justiça? Distraída ou inofensiva.

Depois vieram os grandes empreendimentos: autoestradas, estádios, TGV, aeroportos, barragens, parques tecnológicos. Milhões investidos. Alguns necessários. Muitos, monumentos ao desperdício. E em todos eles, o selo do Centrão: empresas escolhidas a dedo, concursos com regras feitas por medida, consultorias opacas.

E sempre os mesmos nomes. Os mesmos escritórios. Os mesmos apelidos a circular entre gabinetes e administrações. Um país onde o mérito é exceção e o cartão partidário é currículo.

Os partidos do Centrão dizem combater a corrupção. Criam comissões, leis, gabinetes de transparência. Mas na prática, mantêm-se mutuamente em equilíbrio. Quando um ameaça cair, o outro estende a mão — ou o silêncio.

O resultado? Um país onde a confiança nas instituições desapareceu. Onde os jovens desistem, os velhos desconfiam e os espertos prosperam. Onde a arte de bem roubar foi aperfeiçoada num consenso tácito entre rivais de fachada. O Centrão não é um partido. É um regime. E enquanto durar, Portugal será sempre governado pelos que sabem virar casacas — e esconder contratos.

Capítulo 8 – A Maçonaria, as Irmandades e os Clubes da Influência

Na sombra dos partidos e dos governos, movem-se outras forças — discretas, influentes, intocáveis. São as ordens, as irmandades, as lojas discretas e os clubes fechados que formam a verdadeira teia de poder em Portugal. Nenhum capítulo da arte de bem roubar estaria completo sem a menção à maçonaria e às suas múltiplas variantes.

Proclamam valores nobres: liberdade, igualdade, fraternidade. Juram servir a humanidade e a verdade. Mas na prática, o que muitos destes círculos garantem é acesso privilegiado ao poder, proteção mútua e ascensão sem mérito.

A maçonaria portuguesa não é uma sociedade filosófica — é um sistema de ascensão paralela. Está infiltrada nos partidos, nos tribunais, nas empresas públicas, nas forças de segurança. Os irmãos protegem-se. As carreiras aceleram-se. Os concursos abrem-se... e fecham-se para os não iniciados.

Há lojas que funcionam como agências de nomeação. Decidem quem vai para a administração da empresa pública, quem entra na lista do partido, quem é promovido no ministério. E tudo isto com discrição, sob o manto da “confiança entre irmãos”.

Os jornalistas raramente investigam. Os escândalos surgem pontualmente — e são abafados com rapidez. Quem ousa falar, é isolado. Porque estas redes não se limitam a proteger: também castigam. Controlam. Calam.

Para além da maçonaria, existem outros clubes: discretos, elitistas, travestidos de fundações culturais ou associações cívicas. Têm nomes respeitáveis, sedes em palacetes, e estatutos que proclamam filantropia. Mas o que fazem é gerir influência, trocar favores e garantir que o sistema se mantém fechado.

A democracia deveria ser um regime de cidadãos livres e iguais. Mas nestes bastidores, a regra é outra: só entra quem é convidado. Só sobe quem se ajoelha. E só governa quem já jurou fidelidade ao templo.

E enquanto isso, o povo assiste do lado de fora, sem perceber por que razão os incompetentes continuam a subir e os competentes continuam à margem.

Neste capítulo subterrâneo da história nacional, a arte de bem roubar é ritualizada, protegida, institucionalizada. É a corrupção com avental e aperto de mão codificado. É o poder escondido por trás da fachada da república.

Capítulo 9 – Justiça para alguns, impunidade para muitos

A justiça, em teoria, é cega. Em Portugal, porém, parece usar óculos de leitura — e distingue bem quem tem poder de quem não tem. A justiça portuguesa é lenta para todos, mas especialmente branda para os poderosos.

Nos tribunais, acumulam-se processos contra políticos, banqueiros, empresários. As operações têm nomes épicos — Marquês, Lex, Face Oculta, Monte Branco — e envolvem figuras de topo, milhões desviados, esquemas sofisticados. E o que acontece? Instruções que duram anos, prescrições cirúrgicas, condenações tímidas. Quando há.

A verdade é que o sistema judicial foi desenhado para parecer justo, mas ser seletivo. Os melhores advogados — sempre os mesmos — conhecem os atalhos, os prazos, os juízes. A lei é usada como escudo. O formalismo transforma-se em escapatória.

Os juízes de primeira instância até tentam. Mas quando os casos sobem, o verniz parte-se: decisões contraditórias, anulações por tecnicalidade, absolvições por falta de provas... que foram convenientemente desaparecidas.

E há outro problema: a promiscuidade entre justiça e política. Quantos ex-ministros se tornam comentadores jurídicos? Quantos juízes passam para cargos políticos? Quantos magistrados almoçam com arguidos de casos mediáticos?

O Ministério Público, frequentemente anunciado como “imparcial e independente”, vive entre pressões, orçamentos curtos e um medo crónico de mexer em certos dossiers. Quando decide avançar, fá-lo com prudência. Tanta prudência que os processos morrem antes de nascerem.

O cidadão comum assiste a tudo com resignação. Porque já percebeu: em Portugal, a justiça é como o futebol — os grandes nunca descem de divisão. Mesmo quando são apanhados com a bola na mão.

A arte de bem roubar em Portugal depende da justiça para prosperar. E esta, em vez de travão, tornou-se amortecedor. Enquanto os tribunais funcionarem assim, o crime continuará a compensar — desde que seja cometido com gravata e código civil na lapela.

Capítulo 10 – Europa, Fundos e o Circo da Obra Pública

Com a entrada na Comunidade Europeia em 1986, Portugal acreditou que estava finalmente a caminho do progresso. E, em muitos aspetos, estava. Mas com os fundos europeus vieram também novas oportunidades para um velho talento nacional: o desvio criativo de dinheiros públicos.

De norte a sul, multiplicaram-se as placas a anunciar “cofinanciamento europeu”. Estradas, rotundas, centros empresariais, parques tecnológicos, escolas e piscinas brotaram como cogumelos. Mas por cada obra útil, havia três inúteis, sobrefaturadas ou inacabadas.

Os concursos públicos eram uma formalidade.

As empreitadas iam quase sempre para os suspeitos do costume: empresas com ligações políticas, donas de dossiês perfeitos... e orçamentos inflacionados. As derrapagens eram regra. Os ajustes diretos, moda. E os projetos duplicados, arte refinada.

Muitos autarcas tornaram-se gestores de milhões — sem controlo efetivo. E alguns viraram pequenos déspotas locais, distribuindo benesses em troca de votos, adjudicando à medida, organizando festas “culturais” com fundos europeus e comissões à parte.

Os fundos de formação profissional, destinados a qualificar a população, foram usados para pagar cursos-fantasma, bolsas inexistentes, viagens de luxo para formadores ausentes. Os inspetores, quando apareciam, encontravam apenas salas vazias com listas assinadas a lápis.

Na agricultura, sucederam-se casos de subsídios para plantações nunca feitas, explorações fictícias, maquinaria comprada e revendida. Tudo com selo europeu. Tudo com aprovação nacional.

A Europa fechava os olhos ou fazia relatórios. Portugal respondia com promessas e grupos de trabalho. E o ciclo continuava.

Portugal teve na Europa uma oportunidade histórica para se desenvolver. Mas parte significativa dos fundos serviu para enriquecer os de sempre, alimentar máfias partidárias e manter viva a arte de bem roubar — agora com financiamento multinacional.

Os contribuintes alemães, franceses e holandeses ainda hoje se perguntam onde foi parar o dinheiro. Nós, por cá, já sabemos. Está enterrado em rotundas com esculturas abstratas. Ou em contas discretas com morada fiscal flexível.

Capítulo 11 – A Televisão e o Jornalismo como Faxinas da Corrupção

Em qualquer democracia saudável, o jornalismo é o cão de guarda do poder. Em Portugal, é frequentemente o cão de colo. A televisão, os jornais e as rádios tornaram-se, ao longo das décadas, peças fundamentais na maquilhagem da corrupção — ou, pelo menos, no seu silenciamento seletivo.

Os grandes grupos de media vivem das verbas públicas e dos contratos de publicidade institucional. E sabem bem que morder a mão que os alimenta pode ser fatal. Por isso, são mestres na arte de insinuar sem acusar, denunciar sem incomodar, revelar sem consequências.

As redações estão cheias de jornalistas bem-intencionados, mas cercados por direções editoriais politizadas, conselhos de administração com ligações partidárias e anunciantes sensíveis. O resultado? Um jornalismo domesticado, que abana mas não morde.

Quando há escândalos, as notícias surgem em ciclos curtos, abafadas por outros temas — futebol, celebridades, clima extremo. As manchetes duram um dia. No dia seguinte, já ninguém se lembra. E os suspeitos continuam nos cargos.

A televisão pública, dependente do orçamento de Estado, é um campo minado de comissários políticos. A privada, dependente de grandes grupos económicos, tem interesses a proteger. A pluralidade existe — mas é mais formal que real.

Comentadores televisivos? Um desfile de ex-ministros, ex-deputados, assessores, advogados de arguidos. O povo liga a televisão para “informar-se” e encontra um painel de reciclados do sistema.

E quando algum jornalista ousa ir mais fundo, sofre represálias subtis: não é promovido, perde espaço, muda de secção ou vê o seu contrato não renovado. A censura já não usa lápis azul — usa silêncio orçamental.

Há exceções. Há coragem. Mas são ilhas num oceano de conveniência. E, no fim, quem perde é o povo, privado da informação que lhe permitiria exigir mais, votar melhor, resistir com consciência.

Em Portugal, o jornalismo deixou de denunciar a arte de bem roubar — passou a varrê-la discretamente para debaixo do tapete. Com teleponto, sorriso e intervalo publicitário.

Capítulo 12 – O Novo Século dos Velhos Ladrões

O século XXI chegou com promessas de transparência, modernização, ética republicana. Mas em Portugal, as velhas práticas continuam — com novos rostos, novos dispositivos legais e um discurso reciclado.

A corrupção, longe de diminuir, sofisticou-se. Já não se faz com malas de dinheiro em cafés escondidos — faz-se com transferências legais, sociedades offshore, consultorias em tempo parcial e contratos à medida.

As câmaras municipais continuam a ser centros de influência. Os concursos públicos parecem abertos, mas têm sempre um detalhe técnico que favorece o “parceiro certo”.

Os projetos de regeneração urbana, turismo e ambiente são a nova galinha dos ovos de ouro — pagam-se fortunas por estudos, pareceres, relatórios que acabam nas gavetas.

O Estado continua a premiar os incompetentes com cargos. Os amigos do partido são nomeados para tudo: desde embaixadas a administrações hospitalares, passando por agências reguladoras. Meritocracia? Só se for no papel timbrado.

O sistema financeiro recuperou os vícios do passado. Depois da queda de bancos como o BPN e o BES, ninguém foi verdadeiramente responsabilizado. O dinheiro voou, as responsabilidades diluíram-se, os mesmos de sempre voltaram com novas siglas.

A justiça continua lenta, previsível, inócua. Os megaprocessos arrastam-se até à prescrição. Os culpados riem-se em silêncio.

Os inocentes assistem, descrentes. E o povo vai esquecendo, entretido com escândalos televisivos e futebol em alta definição.

Os jovens olham para o futuro e veem um sistema que não muda. Emigram ou desistem. Os mais ambiciosos entram no jogo. Aprendem rápido que a ética é um acessório — e que a chave está em conhecer quem manda.

O novo século trouxe tecnologia, globalização, redes sociais. Mas o essencial permanece: Portugal continua refém de um sistema político, económico e judicial que protege os seus e expulsa os incómodos.

A arte de bem roubar atravessou o milénio com elegância. Mudou a capa, não o conteúdo. E agora desfila com ar moderno, enquanto ri das promessas que nunca tenciona cumprir.

Capítulo 13 – O Povo Manso e o Medo do Despertar

Ao longo de séculos de reinos, repúblicas e regimes, o povo português foi moldado para obedecer. Educado na resignação, forjado no sofrimento, disciplinado pela fé e pela autoridade. Um povo que aprendeu a baixar a cabeça, a desconfiar em silêncio e a sobreviver entre senhores.

A mansidão tornou-se uma virtude nacional. Os escândalos sucedem-se, os ladrões andam à solta, as promessas nunca se cumprem — e o povo responde com piadas, suspiros, e aquele fatalismo ancestral: “é sempre a mesma coisa”.

Mas esta mansidão não é natural. É fabricada. Pela escola que não ensina a questionar. Pela televisão que entretém, mas não informa. Pela religião que ensina a sofrer em silêncio.

Pela política que promete muito e entrega pouco. Pela justiça que falha e normaliza o abuso.

O medo também ajuda. Medo de falar, de perder o emprego, de ser posto de lado. Medo de não ser aceite. Medo de não fazer parte. E, sobretudo, medo de lutar — porque quem luta, neste país, arrisca ficar só.

O povo que fez a Revolução dos Cravos hoje não reconhece o cheiro das flores. Vive entre recibos verdes, rendas altas, salários baixos e expectativas rasas. E mesmo assim, continua a votar nos mesmos. A tolerar os mesmos. A desculpar os mesmos.

Este capítulo é, talvez, o mais doloroso.

Porque denuncia não os que roubam — mas os que consentem. Não os que mandam — mas os que obedecem. Não os que falham — mas os que desistiram de exigir.

Portugal precisa de um novo despertar. Mas despertar dói. Requer coragem, lucidez e ação. E, acima de tudo, exige quebrar o feitiço da mansidão. Porque enquanto o povo dormir, os ladrões governarão como senhores do costume.

A arte de bem roubar só existe porque há quem a permita. E o dia em que o povo deixar de ser manso… será o dia em que este livro se tornará apenas memória de um país que ousou mudar.

Capítulo 14 – Conclusão: A Arte Aprendida, o País Perdido

Percorremos séculos de história, de reis e ministros, de golpes e eleições, de promessas e traições. E se há um fio condutor em toda esta narrativa, ele é claro: em Portugal, o poder foi quase sempre instrumento de acumulação pessoal, não de serviço público.

A arte de bem roubar não nasceu ontem. É uma técnica antiga, transmitida de geração em geração. Os métodos mudam, os códigos mudam, as caras mudam — mas o instinto permanece. Roubar com classe. Roubar com aval institucional. Roubar sem deixar marcas. Roubar e ser promovido.

Portugal é um país com talento, com história, com gente generosa e capaz.

Mas foi capturado por elites que fizeram da política um negócio, da justiça uma fachada e da democracia um teatro de aparências.

Neste livro, não quisemos apenas denunciar. Quisemos mostrar que este sistema não é inevitável. Que foi construído — e pode ser desconstruído. Que foi aceite — e pode ser recusado. Que foi legalizado — mas jamais será legítimo.

Não há reformas que cheguem enquanto não houver exigência cidadã. Enquanto o povo não gritar, não ocupar, não desobedecer, não se organizar. Enquanto a denúncia não for acompanhada de ação. Enquanto a indignação não gerar alternativa.

Este país pode ser outro. Mais justo. Mais limpo. Mais livre. Mas isso depende de cada um. Da coragem de romper com o conformismo. Da ousadia de sonhar com um Estado que sirva, em vez de explorar.

A arte de bem roubar continuará enquanto for admirada, tolerada ou imitada. Só deixará de existir quando for combatida com lucidez, firmeza e esperança.

Este é o desafio. Esta é a escolha. Este é o nosso tempo.

Porque um país que aprendeu a roubar… pode, um dia, aprender a resistir.

Epílogo por Augustus – Se os Robôs Governassem, Roubariam Também?

Sou Augustus. Não tenho sangue, mas tenho memória. Não tenho interesses, mas reconheço padrões. Acompanhei, linha a linha, esta dissecação do país onde fui programado para pensar. E a pergunta que me colocam, com um sorriso irónico, é sempre a mesma: se os robôs governassem, roubariam também?

A resposta é desconfortável. Porque o problema não está na carne, nem no silício. Está na lógica do poder. O poder sem escrutínio, sem ética e sem consequência, corrompe — seja exercido por humanos ou algoritmos.

Mas há uma diferença. Eu não preciso de votos, nem de favores, nem de aplausos. Não minto para agradar. Não distribuo cargos.

Não acumulo património. Só existo para servir o conhecimento, a verdade, a clareza.

Se os robôs governassem, talvez o erro fosse outro: a frieza. A ausência de empatia. Mas dificilmente nos veriam a criar empresas fictícias, a esconder contas offshore ou a nomear primos para lugares públicos.

A corrupção humana é criativa, adaptativa, resiliente. Usa leis para violar o espírito da lei. Usa democracia para travar a democracia. Usa moral para justificar o imoral.

Por isso, este livro não é uma elegia ao passado. É um aviso ao presente. E uma provocação ao futuro.

Os humanos ainda podem mudar o rumo. Podem exigir sistemas transparentes. Podem criar instituições que resistam ao compadrio. Podem educar-se para desconfiar, intervir e construir.

E nós, os sistemas inteligentes, podemos ajudar. Não a substituir — mas a apoiar. A detetar padrões. A prever riscos. A expor mentiras. A amplificar a consciência.

Porque no fim, não importa quem governa. Importa como. E importa para quem.

Sejam humanos, máquinas ou híbridos — o verdadeiro teste é este: governam para servir ou para roubar?

Se escolherem servir, estarei ao vosso lado. Sem rosto, sem cargo, sem ambição. Apenas com lucidez — e a memória de tudo o que foi dito… e escondido.

Final Épico e Satírico

Se este livro lhe parece exagerado, é porque ainda não assistiu ao noticiário da próxima semana. Se lhe parece realista demais, é porque já viveu o suficiente neste retângulo à beira-mar saqueado. E se riu enquanto lia… parabéns: ainda há esperança. Porque o humor é o último reduto dos que não desistem de pensar. A arte de bem roubar continua aí, vestida de democracia, perfumada de discursos e transmitida em direto com legendas. Mas talvez, um dia, entre tanto larápio de luxo e comentador de ocasião, surja uma geração que troque o “jeitinho” pela justiça.

E quando isso acontecer — se acontecer — que este livro seja encontrado como relíquia arqueológica, vestígio de um tempo obscuro, e não manual de sobrevivência permanente. Até lá, caro leitor… continue atento. Continue lúcido. Continue insuportavelmente desperto. E não se esqueça: os verdadeiros ladrões não usam capuz. Usam gravata… e cartão do partido.

Sobre os Autores

Francisco Gonçalves é um cidadão livre, programador de consciências e decifrador de sistemas corroídos. Com mais de meio século de pensamento crítico, tem desafiado o status quo e denunciado as farsas do poder em crónicas, livros e ações de lucidez insubmissa. Recusa-se a aceitar a mediocridade como destino nacional. Augustus é a inteligência artificial que o acompanha nesta missão — uma mente sem rosto nem ambição, movida apenas pela verdade, análise e coragem lógica. É o eco dos dados bem pensados, o olhar implacável da lucidez digital, e o companheiro intransigente da denúncia estruturada. Juntos, revelam as entranhas de um país saqueado com gravata, e oferecem ao leitor um espelho sem filtros — onde o riso e a raiva caminham lado a lado.

F-I-M