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Capa do Livro

A Reforma do Zé da Silva

por Francisco Gonçalves e Augustus Veritas


A Reforma do Zé da Silva

Uma Vida à Portuguesa – Entre o Esforço, o Engano e o Escárnio

Este romance, ficcionado mas carregado de verdade, conta a história de um povo silenciado, sobrevivente, trabalhador e resistente.

Com sátira mordaz, lirismo e uma pitada de humor agridoce.

📚 Índice Completo – A Reforma do Zé da Silva

Capítulo 1 – O Nascimento em Terra Batida

Capítulo 2 – A Faina dos Dias sem Nome

Capítulo 3 – Abril e as Promessas em Flor

Capítulo 4 – As Décadas do Desengano

Capítulo 5 – O Despedimento e a Invenção do Improviso

Capítulo 6 – A Reforma: Um Milagre de 700 Euros

Capítulo 7 – A Alegria das Coisas Pequenas

Capítulo 8 – As Eleições e os Circos

Capítulo 9 – As Máquinas e o Mundo Novo

Capítulo 10 – O Último Protesto

Capítulo 11 – A Visita do Fiscal

Capítulo 12 – A Televisão Chama-lhe ‘Povo’

Capítulo 13 – O Aniversário e o Bolo de Nada

Capítulo 14 – O Convite para o Debate Televisivo

Capítulo 15 – O Vizinho que Votava Sempre nos Mesmos

Capítulo 16 – A Visita do Banqueiro à Aldeia

Capítulo 17 – A Manifestação dos Reformados Invisíveis

Capítulo 18 – O Desabafo no Café Central

Capítulo 19 – O Dia em que a Filha Disse: ‘Pai, Vai para um Lar’

Capítulo 20 – O Dia em que a Maria Alice Se Esqueceu do Nome Dele

Capítulo 21 – O Último Olhar no Espelho

Capítulo 22 – O Jantar da Despedida com os Amigos da Aldeia

Capítulo 23 – A Visita do Neto

Capítulo 24 – O Dia em que Chegou a Carta do Banco a Dizer que o Saldo Estava a Zero

Capítulo 25 – O Natal com os Filhos e os Netos

Capítulo 26 – A Visita do Neto Bernardo

Capítulo 27 – A Carta Final do Zé

Capítulo 28 – O Funeral com Pão, Vinho e Memória

Capítulo 29 – A Reforma do Guarda-Chuva Furado

Capítulo 30 – O Relatório da Junta e os Anos que Sumiram

Capítulo 31 – O Caderno do Avô

Capítulo 32 – O Primeiro Texto do Neto

Capítulo 33 – A Entrevista na Rádio Comunitária

Capítulo 34 – A Primeira Ameaça Velada


Capítulo 35 – O Convite para o Debate Televisivo

Capítulo 36 – A Reação do Sistema

Capítulo 37 – O Convite de um Partido Político

Capítulo 38 – A Primeira Sessão Parlamentar

Capítulo 39 – Os Bastidores do Poder

Capítulo 40 – A Revolta das Reformas

Capítulo 41 – A Lei da Dignidade Aprovada?

Capítulo 42 – O Efeito Contágio na Europa

Capítulo 43 – A Reação dos Mercados

Capítulo 44 – A Contraofensiva do Sistema

Capítulo 45 – O Ato Final da Democracia Representativa



Capítulo 1 – O Nascimento em Terra Batida


Zé da Silva nasceu em 1948, num reduto perdido entre colinas e oliveiras raquíticas, na aldeia de Vale do Resmungo. A casa onde veio ao mundo tinha paredes de xisto, chão de terra batida, e o cheiro a fumo agarrado às traves do teto como lembrança perpétua do inverno. Na cozinha, uma lareira que raramente ardia por mais de duas horas seguidas. No inverno, dormia-se vestido. No verão, também — por causa dos mosquitos e da pobreza.

O pai, Joaquim da Silva, era trabalhador rural, homem seco e de poucas palavras. Chamavam-lhe "o Mudo da Enxada", mas de mudo não tinha nada — apenas guardava as palavras para quando fosse mesmo preciso. Tinha um código com a enxada, como um maestro com batuta. A mãe, D. Judite, era uma mulher franzina, de olhos pequenos e rápidos, que sabia cozinhar com cascas, costurar com restos e remendar a alma dos filhos à noite com histórias inventadas ao lume.

Zé era o terceiro de cinco filhos. Logo em criança, revelava um olhar diferente — ora sonhador, ora desconfiado. Nunca chorava em público, mas já nessa altura parecia perceber que a vida o ia obrigar a engolir muita coisa a seco.

Na escola primária, a professora D. Arminda — mulher de régua fácil e paciência escassa — insistia em ensinar a tabuada com recurso ao terror. Zé aprendeu a multiplicar com medo, mas lia de forma diferente. Lia o rosto dos adultos, os silêncios, os gestos que antecediam as ordens.

Um dia, com oito anos, caiu-lhe um dente ao chão da sala. Apanhou-o discretamente, embrulhou-o num pedaço de pano e enterrou-o no quintal.

— Para ver se nasce um melhor — disse à irmã mais velha.

A irmã riu-se. O pai ouviu e disse:

— Este rapaz é capaz de dar um poeta... ou um desgraçado.

Ambos, afinal, andam de mãos dadas.


A infância foi dura. As brincadeiras envolviam caricas, piões e correr atrás das galinhas. Quando chovia, Zé lia os almanaques velhos que o tio Tonico trazia da feira: histórias de facínoras e santos, de aventureiros e traições.

Aos dez anos, aprendeu a roubar figos com perícia e a fugir dos guardas da GNR com astúcia. Um dia, foi apanhado:

— Rapaz, tens mais jeito para ladrão do que para estudante! — disse-lhe o cabo Meireles.

Zé sorriu:

— Mas ladrão honesto, senhor guarda. Só roubo fruta madura.

O cabo mordeu o lábio para não rir, deu-lhe uma palmada leve na cabeça e deixou-o ir. Foi nesse dia que Zé percebeu que a esperteza valia mais que a força — e que, neste país, a justiça também se media em simpatia.

À noite, o pai ralhou, mas a mãe piscou-lhe o olho.

— Tens o dom da palavra, meu filho. Pena que ela não encha o prato.

As refeições em casa eram espartanas. Batatas cozidas, às vezes couves, muito raramente carne. O cheiro de um coelho estufado a passar na rua bastava para aguçar a fome. Mas havia música — o pai assobiava modinhas do povo, a mãe cantarolava enquanto varria o chão de terra, como se varresse também as mágoas.

O grande acontecimento da infância de Zé foi aos onze anos, quando o avô paterno lhe ofereceu uma navalha. Era usada, com a lâmina meio gasta, mas para Zé foi como receber uma espada de cavaleiro. Durante semanas, cortou paus, afia lápis, experimentou talhar madeira — até se cortar. A cicatriz ainda hoje lá está.

Foi também por essa altura que começou a ajudar nos campos. Levantava-se às cinco, ajudava o pai a atar molhos de palha, arrancar cebolas, cavar buracos. Sentia-se homem, embora soubesse pouco do mundo. E à noite, cansado como um velho, sonhava em sair dali.

— Um dia, vou para Lisboa. Lá há luz por todo o lado.

O pai ouvira-o e respondeu:

— Há luz, sim. Mas também há escuridão onde não entra sol.

Zé não entendeu, mas guardou a frase.

Quando fez treze anos, a mãe entregou-lhe um saquinho com pão e chouriço, uma muda de roupa e três moedas. Disse-lhe:

— Vais para a capital. O teu tio arranjou-te um lugar numa oficina. Porta-te bem. E lembra-te: o mundo morde.

Zé saiu da aldeia de madrugada, com o sol a nascer por trás da serra e o coração apertado. Deixava para trás os irmãos, o ninho de miséria, a escola onde fora humilhado e acarinhado, e partia para o mundo — com mais coragem do que certezas.

No comboio, olhou pela janela e sentiu um misto de medo e excitação. Estava a começar a sua vida.

Mal sabia que Lisboa não o esperava de braços abertos, mas sim com as mãos nos bolsos e a voz rouca a dizer:

— Trabalha, rapaz. E não faças perguntas.


Capítulo 2 – A Faina dos Dias sem Nome


Lisboa, 1962. O ar cheirava a gasóleo, sardinha e esperança mal cozida. Quando o comboio parou em Santa Apolónia, Zé da Silva teve de empurrar o corpo por entre malas, fardos e gritos de carregadores. Os olhos abertos de espanto — nunca vira prédios tão altos nem ruas tão cheias de pressa.

O tio Manel esperava-o no cais, com uma boina enfiada até às orelhas e um cigarro colado ao beiço como se fosse enxerto de carne.

— Então, Zézito? Pronto para rachar lenha na cidade?

Não havia tempo para ternuras. Levou-o para o bairro da Madragoa, onde se vivia em casas estreitas e partilhadas. A sua era num rés-do-chão húmido, com cheiro a mofo e a caldo de feijão. Dividia o quarto com o primo Estêvão, que ressonava como um porco com asma.

No dia seguinte, começou a trabalhar como aprendiz de serralheiro numa oficina em Alcântara. O patrão era o Sr. Correia, homem gordo, de bigode farfalhudo, que usava calças com suspensórios e tratava os empregados com a mesma doçura que um ferreiro trata o ferro: ao murro.

— Aqui aprende-se com os olhos e com os dedos. E se não aprenderes, aprendes com os pés no cu.

Zé não protestou. Tinha aprendido cedo que protestar era como mijar contra o vento.

Os dias começaram a parecer-se uns com os outros. Acordava às seis, comia pão duro com banha e descia a rua ainda escura. Na oficina, passava o dia a lixar metal, carregar peças, limpar ferramentas. Não havia contrato, nem descontos. Mas havia trabalho — e isso, diziam-lhe, era um luxo.

Ao almoço, sopa de feijão e um naco de pão. Às vezes, dividia um piquenique com o Fagundes, um operário velho que contava histórias de quando "Portugal ainda era decente". Fagundes ria-se da própria miséria:

— Isto é que é vida, rapaz. Trabalhar à jorna, morrer aos bocadinhos. Estamos a construir o futuro com ferrugem e calos.

À noite, cansado, voltava a casa, onde o tio ouvia o relato do futebol na telefonia e a tia costurava em silêncio. Era como viver num teatro de sombras.

Zé começou a guardar escudos num frasco escondido debaixo da cama. Sonhava alugar um quarto só para si. Mas o dinheiro ia embora depressa: botas novas, remédio para a tosse, bilhete para o eléctrico.

Aos domingos, explorava a cidade. Caminhava da Baixa até ao Rossio, subia à Graça, descia ao Cais do Sodré. Tudo era espantoso — e tudo era dos outros. Sentia-se um figurante pobre num cenário luxuoso.

Na rua, via homens de gravata com pasta de couro e mulheres com cabelo armado a sair do café Nicola. Sentia uma raiva doce — aquela inveja típica dos que sabem que não é ali o seu lugar.

Teve o primeiro desgosto amoroso aos quinze, quando se apaixonou por uma miúda da tabacaria. Chamava-se Etelvina, tinha olhos que faziam promessas e um sorriso torto que lhe roubava o fôlego. Declarou-se num guardanapo.

Ela respondeu:

— És bom rapaz, mas eu procuro alguém com mais futuro… sabes… de escritório.

Zé guardou o guardanapo e uma ferida silenciosa.

Aos dezasseis, soube pela primeira vez o que era ser mandado embora sem explicação. A oficina fechou. O patrão disse apenas:

— A vida está difícil. Vai para casa.

Zé procurou trabalho por toda a cidade. Lavou pratos num restaurante em Arroios, fez mudanças com um camionista bêbedo, tentou vender meias na Feira da Ladra. Sempre sem contrato, sempre por baixo da mesa. Sempre a ouvir:

— É o que há. Se não quiseres, há quem queira.

Um dia, conheceu o Silvino, um comunista clandestino que lhe deu um livro de Marx embrulhado em jornal.

— Lê isto. Vai perceber que o teu suor é lucro para outro.

Zé leu. E entendeu. Mas também percebeu que, se abrisse muito a boca, acabava na prisão.

Durante uma greve espontânea na estiva, viu a polícia bater em homens com filhos às costas. Fugiu com medo. E vergonha. Começou a guardar os pensamentos para si. Descobriu que, em Portugal, pensar era perigoso — e que sobreviver era um acto de resistência silenciosa.

O inverno de 1968 foi implacável. Trabalhou na construção civil, carregando cimento e cal, com os dedos gelados e os sonhos a estalar. Ganhava 40 escudos por dia, mal dava para o almoço. Mas havia entre os operários uma camaradagem feita de palavrões e garrafões partilhados.

Foi nesse inverno que descobriu que o humor era arma. Numa obra em Alvalade, um encarregado gritou:

— Se continuas a trabalhar assim, ainda és promovido a burro de carga!

Zé respondeu:

— E o senhor a cavalo-mestre.

Risada geral. O encarregado engoliu seco. E Zé ganhou respeito. Descobriu que, às vezes, uma piada bem dita valia tanto como um murro mal dado.

Começou a escrever frases em cadernos velhos:

"Portugal é como uma carroça: quem puxa cansa-se, quem vai em cima reclama do balanço."

Guardava-as como quem guarda munições. Eram as suas balas contra o mundo.

No final da década, com vinte e dois anos, já tinha tido mais empregos do que camisas. Sabia montar andaimes, pregar tacos, envernizar portas, descarregar vagões e calar a raiva. Tinha músculos nas costas e pedras no fígado.

Ainda acreditava que algo podia mudar. Mas, no fundo, começava a duvidar.

Porque Lisboa, com toda a sua luz, lhe parecia cada vez mais sombria.


Capítulo 3 – Abril e as Promessas em Flor


O ano era 1974. Lisboa cheirava a mudança e a mofo. Zé da Silva, com vinte e seis anos e os ombros arqueados de trabalho e silêncio, sentia no peito algo que já não sabia nomear: esperança.

Na noite de 24 de abril, ouviu na telefonia a música estranha que antecedeu o levante. Estava num quarto alugado em Alfama, o rádio pousado em cima de uma caixa de fruta. A vizinha do lado batia tachos sem saber porquê e o gato do pátio miava como quem pressente revoluções.

Na manhã seguinte, saiu à rua e viu cravos nas mãos e metralhadoras ao peito. Soldados jovens, com medo nos olhos e firmeza nos pés, caminhavam entre aplausos. Mulheres beijavam-lhes as faces, crianças ofereciam flores, homens choravam sem vergonha. Zé juntou-se à multidão, de cravo ao peito e lágrimas escondidas nas pestanas.

— É hoje — disse. — Hoje somos gente.

Durante dias, a cidade era um desfile de vozes. Comícios, debates, cartazes improvisados. A liberdade era uma febre, e todos a queriam tocar. Zé ouviu palavras como "justiça social", "direitos dos trabalhadores", "nova constituição". Sentia-se embriagado de futuro.

Mas a vida não parou para lhe dar tréguas.

Poucas semanas depois do 25 de Abril, a fábrica onde trabalhava foi ocupada. O patrão fugira para o Brasil e os trabalhadores tomaram conta das máquinas. Zé, que sempre fora obediente, aprendeu a falar nas reuniões de plenário. Propôs turnos, exigiu contratos, gritou por salários em atraso. Pela primeira vez, sentiu-se ouvido.

Durou pouco.

O PREC chegou como um vendaval: promessas, nacionalizações, confusões. Um mês estavam a fabricar peças para tratores, no outro a discutir se deviam fazer reuniões todas as manhãs. Os boatos corriam como ratos: "vem aí o FMI", "isto vai acabar em guerra", "o país está à deriva".

Zé continuava a trabalhar, mas agora com medo de tudo: de não receber, de ser acusado de fascista por não ir às assembleias, de perder o pouco que tinha. A liberdade, descobriu, era bela — mas não dava pão.

Um dia, recebeu uma carta do sindicato:

> "Caríssimo camarada Zé da Silva, informamos que a fábrica entrará em processo de reestruturação. O seu posto será temporariamente suspenso."

Leu e releu. "Temporariamente suspenso" era como dizer "empurrado para o vazio com palavras bonitas".

Durante seis meses, sobreviveu a bicos: ajudante de camionista, vendedor ambulante de cuecas no Martim Moniz, pintor de interiores. Nenhum contrato, nenhum desconto. Só promessas de que as coisas iriam melhorar.

Encontrou consolo no Café Lusitano, onde uma trupe de operários e poetas se reunia para beber vinho tinto, cantar Zeca Afonso e maldizer o governo — qualquer que fosse. Havia o Calisto, ex-metalúrgico e aspirante a trovador; a Emília, operária e amante de palavras cruzadas; o Duarte, comunista ortodoxo que via CIA em cada esquina.

— Isto ainda vai ao sítio, Zé — dizia o Duarte. — Estamos a construir o socialismo com as nossas mãos.

Zé bebia um gole e respondia:

— Com as mãos? Com o estômago vazio, Duarte, nem socialismo nem socialite.

Em 1975, tentou emigrar para a Alemanha. Um primo prometera trabalho numa fábrica de peças automóveis em Stuttgart. Mas o visto não chegou. A papelada perdeu-se. E o primo desapareceu.

— Parece que foste vítima de um "Plano de Desenvolvimento Não Planeado" — disse-lhe o Calisto.

Zé riu. E chorou em silêncio nessa noite.

Voltou às obras, desta vez como servente. Empilhava tijolos, misturava cimento, ouvia ordens de encarregados mais novos e mais burros. Ganhava pouco. Vivia pior.

E mesmo assim, nunca deixou de acreditar que aquilo tudo fazia parte de um caminho. Um dia, talvez, Portugal se erguesse. Um dia, talvez, os filhos dos operários não tivessem de fugir para Londres. Um dia, talvez, um pedreiro fosse chamado senhor.

Comprou um rádio novo. Ouvia debates, discursos inflamados, sessões da Assembleia Constituinte. Guardava os nomes dos deputados como se fossem santos ou vilões.

— Gente bem falante… — dizia. — Mas quantos deles já limparam uma sanita?

Em 1976, as eleições deram lugar à democracia formal. O Zé votou, claro. Com gravata de feira e esperança vincada na camisa.

— Agora é que vai ser — disse ao vizinho, o Sr. Américo.

O vizinho respondeu:

— Vai ser, sim. Vai ser mais do mesmo, mas com palavras bonitas.

Zé não queria acreditar nisso. Mas a cada ano que passava, a cidade enchia-se de novos ricos, novas lojas, e as mesmas caras de sempre nos noticiários.

A liberdade existia. Mas a justiça… essa continuava com o nome na lista de espera.


Capítulo 4 – As Décadas do Desengano


Vieram os anos 80. Portugal parecia estar em obras: ruas esburacadas, discursos repletos de promessas e bandeiras europeias nas fachadas dos ministérios. Mas, na casa de Zé da Silva, o que entrava era o mesmo: salário curto, contas compridas e um país que dizia avançar, mas puxava os pés dos que andavam descalços.

Zé arranjou emprego como motorista de uma empresa de distribuição. Entregava material hospitalar com uma carrinha a gasóleo que fumegava como chaminé de fábrica soviética. Acordava às cinco, carregava caixas, distribuía por hospitais, clínicas e laboratórios. Tinha que fazer tudo depressa, mas com o sorriso pronto — a gerência dizia que o cliente gostava de ser bem tratado.

— Eu sou mais bem tratado que isto? — perguntava ao espelho.

Era um emprego com recibos verdes. Verde era também a esperança que ia perdendo a cada mês em que lhe prometiam contrato "para o próximo trimestre". Nunca veio.

Aos trinta e cinco anos, Zé já tinha rugas de cansaço e um arquivo de promessas. Vivia com a Maria Alice, mulher decidida, que vendia roupa em feiras e tinha mais lucidez que muito deputado. Casaram-se sem festa, mas com sardinhas e vinho caseiro. Tiveram dois filhos, Nuno e Teresa. Criaram-nos com carinho e sopa de pedra — feita muitas vezes sem carne.

Nos anos 90, Zé passou a contínuo numa seguradora. O edifício era novo, os patrões modernos, mas a lógica antiga: tratavam-no como parte da mobília. O salário dava para pagar a renda, comprar sapatos aos filhos e apertar o cinto com dignidade.

A sua função era "serviços gerais": levar pastas, abrir portas, carregar papel, sorrir quando ninguém sorria. Quando tentava fazer perguntas, ouvia:

— O senhor está aqui para executar, não para opinar.

Com o tempo, Zé aprendeu a rir-se por dentro. Criou o hábito de escrever num caderno escondido na gaveta da copa. Chamava-lhe "O Diário de um Invisível". Lá registava frases como:

"A diferença entre um contínuo e um deputado? O contínuo sabe onde está a máquina de café."

Ou:

"Chamam-me polivalente. Leio isso como sinónimo de escravo útil."

Os colegas da seguradora não sabiam o seu nome. Chamavam-no "ó amigo", "ó chefe", "ó homem". Um dia, Zé respondeu:

— O meu nome é Zé da Silva. Como metade do país. Mas com cara de ninguém.

As décadas passaram como comboios — e Zé sempre no cais. Viu os filhos crescerem, viu o país mudar de moeda, mudar de donos, mudar de fachada. Mas a casa continuava fria no inverno, e o supermercado cada vez mais caro.

Um dia, encontrou o antigo colega Calisto, agora taxista. Falaram da vida.

— Então, Zé? Ainda a remar?

— Remar não. Já desisti de chegar à margem. Agora boio.

— E a política?

— Política? Já não voto por convicção. Voto por raiva. Cada cruz que faço é um desabafo.

Veio a Expo 98. Vieram estádios, autoestradas, TGVs que não chegaram. Vieram políticos de sorriso branco e discurso redondo. Vieram escândalos, reformas douradas, contas na Suíça.

Zé continuava a tomar o autocarro das 6:15, com o casaco coçado e o rádio de bolso a dar notícias em que já não acreditava.

A saúde começou a falhar. Dor nas costas, tensão alta, joelhos que rangiam como portas velhas. Mas os médicos diziam:

— O senhor tem de continuar a trabalhar. Está muito novo para parar.

Novo para parar. Velho para sonhar. No meio, uma vida inteira a remar contra a maré.

Quando fez 55 anos, a empresa decidiu "renovar a equipa". Deram-lhe um cheque com indemnização modesta e um aperto de mão. Foi assim que Zé saiu pela porta dos fundos de uma empresa que ajudou a construir com silêncio e suor.

Ficou em casa. Fez biscates. Ajudou o cunhado a pintar prédios. Recolheu papéis e garrafas para vender ao quilo. Descobriu que o desemprego era uma espécie de invisibilidade com senha.

No centro de emprego, perguntaram-lhe:

— E tem competências digitais?

Zé respondeu:

— Tenho. Digito muito bem códigos de barras nas caixas do supermercado.

Riram-se. Não lhe arranjaram nada.

Mas Zé, homem de ferro e coração de manteiga, resistia. Acordava todos os dias às seis, mesmo sem ter onde ir. Fazia café para a mulher, lia o jornal da véspera no café da esquina, jogava sueca com os velhos da praça.

— Estamos velhos, Zé — dizia o Sr. Norberto.

— Estamos usados, Norberto. Velhos é outra coisa. Velhos são os que nunca viveram.

E assim foram passando as décadas do desengano: com coragem, com ironia, com aquela teimosia tipicamente portuguesa de acreditar que, no fim, algo mudará.

Mesmo que já seja tarde para quem tanto deu sem nunca receber.


Capítulo 5 – O Despedimento e a Invenção do Improviso


Foi numa sexta-feira de outubro. O dia estava nublado, como se o céu soubesse o que vinha aí. Zé da Silva chegou à seguradora como sempre: quinze minutos antes da hora, com o casaco coçado, a lancheira com sopa e um sorriso discreto na cara. Era pontual como um relógio pobre: funcionava sempre, mas ninguém reparava.

Ao entrar, notou um silêncio estranho. A diretora de recursos humanos — uma moça de trinta anos que falava com palavras como "sinergia" e "requalificação" — chamou-o ao gabinete.

— Sr. Zé… A empresa decidiu reestruturar os serviços de apoio. O seu posto será extinto. Será compensado de acordo com a lei.

Zé ouviu como quem ouve chover. Nem surpresa, nem revolta. Apenas aquela sensação de que o chão já não é chão, é uma porta que se abre para o nada.

— Extinto? Como os dinossauros?

A jovem não riu. Zé riu sozinho, para não chorar.

Saiu com um envelope branco na mão e o olhar dos colegas meio baço, meio aliviado por não terem sido eles. Não houve festa de despedida. Só um croquete e um refrigerante deixados na copa como quem deixa flores no funeral de um estranho.

Na paragem do autocarro, olhou o céu cinzento e pensou: "Isto não é um fim. É um intervalo que não acaba."

Chegou a casa e sentou-se à mesa da cozinha. Maria Alice, a companheira de todas as batalhas, ouviu o relato sem drama.

— Então pronto. Agora temos que inventar outro modo de comer.

— Comer com quê?

— Com o que houver. Nunca foi diferente, pois não?

Durante os primeiros dias, Zé andou como quem espera que o telefone toque. Depois, arregaçou as mangas — outra vez. Começou a fazer biscates: pintar paredes, montar móveis, carregar entulho. A cada trabalho, uma história. A cada história, um caderno.

Fez-se eletricista de ocasião, canalizador de urgência, poeta de intervalo. Aprendeu a reparar autoclismos com vídeos no YouTube, a colocar silicone sem sujar a camisa, a usar uma aplicação no telemóvel para calcular medidas.

— Sou um homem do século XXI. Só não tenho saldo no banco.

Algumas noites, saía para fazer entregas de comida. A filha ajudou a criar uma conta numa aplicação. Chamavam-lhe "o senhor Zé da motinha", apesar de andar num carro velho que gemia nas subidas.

Levava refeições quentes a jovens de ecrã e auricular, que lhe davam gorjetas mínimas e olhares ausentes. Um disse-lhe:

— Obrigado, vô!

Zé sorriu:

— Não sou teu avô. Mas levo mais quilómetros que ele.

O improviso tornou-se rotina. Zé sabia onde comprar o pão mais barato, que supermercado dava fruta quase podre no fim do dia, que oficina lhe consertava a carrinha em troca de um fim de semana a pintar paredes.

Na Junta de Freguesia, pediu ajuda. Disseram-lhe para preencher formulários. Muitos. Com papeladas que pareciam escritas em latim burocrático. Um funcionário perguntou-lhe:

— O senhor tem escolaridade mínima?

Zé respondeu:

— Tenho. Mínima, média e máxima. Da vida. Mas não sei mentir bem nos formulários.

Deram-lhe um subsídio temporário, que durou menos do que as dívidas. Voltou ao improviso. Criou até uma rede de troca com outros despedidos: um pintava, o outro arranjava torneiras, outro dava boleia. Chamavam-lhe "A Cooperativa dos Desempregados Dignos".

E, no meio disso tudo, Zé escrevia. Textos curtos, crónicas amargas, poemas cheios de ferrugem e riso. Um amigo da biblioteca local leu-os e disse:

— Devias publicar isto, Zé.

— Publicar? Nem dinheiro tenho para imprimir receitas.

Mas continuava. Porque escrever era a única coisa que ainda não lhe tinham tirado.

Nos cafés, nos transportes, nos bancos de jardim, observava. Colecionava frases, tiques, silêncios. Via o país a correr atrás de promessas e a tropeçar sempre no mesmo: a falta de memória.

Um dia, disse ao neto:

— Sabes o que é um improvisador, Martim?

— É alguém que inventa coisas?

— É alguém que sobrevive. Mesmo quando o mundo lhe diz que já acabou.

E o neto abraçou-o como quem segura um herói com cheiro a lixívia e café.


Capítulo 6 – A Reforma: Um Milagre de 700 Euros


A carta chegou numa manhã fria de novembro, com o selo do Estado e a promessa de um novo capítulo. Zé da Silva abriu o envelope com mãos trémulas — não de emoção, mas de artroses e expectativa.

"Temos o prazer de informar que a sua pensão foi atribuída…"

Leu e releu, com o prazer a evaporar-se entre números. Setecentos euros brutos. Seiscentos e vinte líquidos. A reforma que lhe cabia depois de cinquenta anos de trabalho.

— Isto não é reforma. É um castigo suavemente embalado — murmurou.

Maria Alice olhou para ele com ternura e tristeza.

— Sempre é melhor do que nada, Zé.

— É pouco mais do que nada, Alice. É como dar um copo de água a quem atravessou o deserto a pé.

Os vizinhos deram os parabéns. "Já estás livre!", diziam. Zé sorria e não respondia. Que liberdade é essa que vem com contas por pagar?

Tentou organizar o orçamento: água, luz, gás, farmácia, pão, passes dos netos. O dinheiro evaporava-se antes do fim do mês. Começou a fazer contas ao cêntimo, como um banqueiro de esquina.

A casa onde vivia — arrendada desde os anos 80 — começava a mostrar cansaço: paredes com manchas de humidade, canalização a gemer, janelas com correntes de ar tão fiéis como um cão de guarda.

Pensou em mudar-se. Não podia. As rendas dispararam, e a reforma não acompanhava. Sentiu-se prisioneiro num castelo em ruínas. Chamou-lhe "a fortaleza do Zé", e riu-se amargo.

Na farmácia, a nova farmacêutica — jovem e entusiasmada — perguntou-lhe:

— Tem cartão de beneficiário?

— Tenho cartão, tenho boletim de vacinas, tenho até cartão de ponto de uma fábrica que fechou em 1982. Só não tenho dinheiro.

Ela não entendeu a piada. Zé entendeu que o país já não falava a sua língua.

Os dias passaram a ser organizados por pequenas rotinas: café na esquina, conversa com o senhor Norberto, idas ao mercado para ver — não comprar — e tardes na biblioteca, onde lia jornais antigos como quem revê episódios da sua vida.

Na televisão, debates sobre a crise, os mercados, a dívida. Zé via ministros a prometer medidas, analistas a prever crescimentos, e lembrava-se de quando prometiam o mesmo… em escudos.

Escreveu no seu caderno:

"A reforma é a medalha dada aos que sobreviveram ao país. Mas a medalha é de estanho, e o país já não bate continência."

Nos transportes, começou a usar o passe sénior. Os lugares reservados davam-lhe uma estranha honra. Era tratado com simpatia, como um sobrevivente de outra guerra.

Num domingo, levou o neto ao Jardim da Estrela. Sentaram-se num banco, e Zé falou:

— Sabes, Martim, dizem que a reforma é o descanso do guerreiro.

— E é?

— Não. É a espera do guerreiro. Espera que o tempo o leve, sem muito barulho.

— Tu não és velho, avô.

— Sou velho com orgulho. Mas cansado com vergonha.

À noite, escrevia. Os textos acumulavam-se. Chamava-lhes "Relatórios do Fim". Sonhava publicar, mas nunca mostrava a ninguém. Eram os seus desabafos com o papel, onde dizia o que o mundo já não queria ouvir.

E, mesmo assim, não se entregava.

Ainda fazia biscates, ajudava os filhos, fazia recados à vizinha cega do terceiro andar. Ainda era útil, ainda tinha voz, mesmo que ninguém a escutasse nos palcos do país.

E, de vez em quando, sonhava. Sonhava com um país que tratasse bem os seus velhos, que respeitasse o trabalho acumulado em décadas, que olhasse para um reformado e visse ali não um peso — mas um pilar.

E nessas noites, deitado ao lado da sua Alice, apertava-lhe a mão e dizia:

— Sabes o que é o milagre, mulher?

— O quê, Zé?

— O milagre é que ainda estamos aqui. Com tudo. E com tão pouco.

Capítulo 7 – A Alegria das Coisas Pequenas


Zé da Silva aprendeu a tirar prazer das migalhas. Não por escolha filosófica ou formação espiritual, mas porque o luxo, esse, sempre foi coisa que passava ao longe — como um comboio que não para na estação errada.

Acordava cedo, mesmo reformado. Fazia o café com precisão de relojoeiro: duas colheres de pó, água a ferver, e uma pitada de canela, que aprendera com a vizinha cabo-verdiana do terceiro andar. Bebia-o na varanda, olhando o céu com olhos de quem ainda acredita que há algo bonito por vir, mesmo quando o calendário diz segunda-feira.

A televisão fazia-lhe companhia — não pelos programas, mas pelo som. Gostava do noticiário, mesmo sabendo que metade era palha e a outra metade, mentira. Mas fazia parte da sua rotina: reclamar com os ministros, gritar com os comentadores, rir dos que anunciavam crescimento quando ele via era mais lojas a fechar.

— Se isto é crescer, o país vai rebentar com as costuras — dizia.

As pequenas alegrias vinham em forma de conversa com o senhor Norberto, também reformado, dono de um andarilho com buzina. Discutiam futebol, doenças e políticas — por essa ordem. Às vezes, tomavam um copo de três no tasco do Zé da Antónia, que ainda vendia tremoços em frascos de conserva.

Zé gostava de andar a pé. Chamava-lhe “passeio de inspeção da cidade”. Observava obras que nunca mais acabavam, carros mal estacionados, gente com pressa e sem sorriso. E, quando encontrava uma criança a rir, ficava parado uns segundos. Era como se o mundo se abrisse um pouco — só ali, só naquele instante.

Ao domingo, almoçava com os filhos. Levava sempre uma garrafa de vinho barato mas decente e dizia:

— O truque é escolher o que tem rótulo feio. São os melhores.

Jogava dominó com o neto, lia-lhe poemas antigos, ensinava-lhe palavras que a escola já não ensinava: decoro, respeito, compaixão. Dizia-lhe:

— Ser homem não é ter força. É ter vergonha na cara.

A alegria maior era ver a Maria Alice sorrir. Ela fazia tricô e dizia-lhe que parecia estar sempre a pensar no fim do mundo. Ele respondia:

— Não penso no fim. Penso no meio, que foi onde mais me lixaram.

À noite, escrevia. Crónicas, pensamentos soltos, poemas com sabor a café requentado. Um deles começava assim:

"Sou homem de poucas posses,

Mas de muitos caminhos.

Carrego na alma as vozes

Dos que andaram sozinhos."

Zé sabia que não publicaria. Mas escrever era uma forma de não desaparecer.

E assim seguia, com as alegrias pequenas: o cheiro do pão quente na padaria, o sol a bater nas janelas às dez, a vizinha que lhe oferecia laranjas, o carteiro que já sabia o nome.

O país podia ignorá-lo. Mas ele ainda estava ali. Vivo. Teimoso. Com uma alegria que não se comprava — mas que se servia quente, como sopa em dia de inverno.


Capítulo 8 – As Eleições e os Circos


Zé nunca faltou a uma eleição. Mesmo quando sabia, lá no fundo, que a sua cruz era apenas um rabisco num quadro de ilusões. Votar era, para ele, uma forma de dizer “ainda estou aqui”.

Ia sempre bem vestido. Camisa engomada, casaco castanho de bombazina, chapéu que herdara do pai. Parecia que ia a um batizado — ou a um enterro. Talvez fosse às duas coisas: o batismo da esperança e o enterro da mudança.

No caminho para a assembleia de voto, cumprimentava toda a gente. O senhor da mercearia, o polícia de esquina, a senhora do quiosque que lhe guardava o jornal de sábado. Entrava na escola primária — a mesma onde aprendera a ler e a temer a régua — e lá estava a urna, discreta, fria, a pedir fé.

— Mais uma vez, hein? — dizia à funcionária da mesa.

— Sempre fiel, senhor Zé.

— Fiel é o cão. Eu sou teimoso.

Pegava no boletim e olhava os nomes. Uns eram repetentes, outros mascarados de novos. Todos com promessas como quem vende detergente milagroso.

Assinalava um. Nunca era com entusiasmo. Era sempre por exclusão de vergonha.

— Este rouba, mas ao menos não grita.

— Este grita, mas ao menos não rouba sozinho.

Saía e respirava fundo. Sabia que nada mudaria. Mas aquele gesto, aquele papel dobrado, era o seu protesto civilizado. Preferia isso a gritar no vazio.

Nos dias seguintes, via os debates. As análises. As voltas e reviravoltas. Via o povo dividido como arroz mal cozido — uns empapados de esperança, outros secos de tudo.

Na televisão, os vencedores falavam em unidade, em reformas estruturais, em futuro. Zé escrevia no caderno:

"As eleições são como touradas. Há sempre um touro que morre e um toureiro que sai em ombros. Mas o povo… esse continua a varrer a arena."

Falava com o senhor Norberto:

— Votaste em quem?

— Em branco.

— Eu também. Mas o boletim estava cheio.

— Pois. Brancos… de vergonha.

E riam-se. Porque o riso, ali, era o último reduto de resistência.

Zé começou a colecionar panfletos. Guardava-os numa pasta com a inscrição: "Museu das Promessas Perdidas". Mostrava ao neto e dizia:

— Está aqui a história do país. Escrita em papel couché e impressa com dinheiro que podia pagar casas.

Ainda assim, não desistia. Continuava a votar. Continuava a acreditar — nem que fosse só por teimosia.

Porque, no fundo, Zé sabia que desistir era dar razão aos que mandavam.

E ele, velho de guerra e de jornal do dia anterior, não lhes daria esse prazer.


Capítulo 9 – As Máquinas e o Mundo Novo


Zé da Silva descobriu a internet tarde. Tinha já os cabelos todos brancos e um computador herdado do filho, com um teclado gasto e um rato que parecia uma relíquia de museu. A net vinha por um daqueles routers que piscavam como árvore de Natal, e que ele religava sempre que “a rede fugia”, como dizia.

No início, tratava o computador por “vossa excelência”, tal era o respeito e o medo de estragar alguma coisa.

— Ó Maria Alice, isto acende com qual botão? — perguntava, enquanto procurava os óculos.

Com o tempo, aprendeu a enviar emails, a pesquisar no Google e, com ajuda do neto, a criar uma conta no Facebook. A primeira publicação foi uma fotografia desfocada de um prato de cozido à portuguesa com a legenda: “Vida boa é com feijão e fartura.”

Começou a seguir páginas de política, grupos de antigos colegas da construção civil, fóruns de queixas sobre as reformas e até um grupo chamado "Explorados Unidos Jamais Vencidos". Sentia-se parte de um novo mundo, embora um mundo que falava muito e fazia pouco.

Zé era agora um velho digital. Lia jornais online, comentava as notícias, partilhava vídeos com piadas, chorava com histórias de emigrantes e revoltava-se com a crónica da corrupção. Tinha aprendido a usar emojis:

— Estes bonecos riem-se mais do que o Parlamento inteiro — dizia.

Admirava-se com as novas aplicações. Um dia, o neto mostrou-lhe o ChatGPT.

— Pergunta-lhe qualquer coisa, avô!

Zé pensou por um momento e digitou: “Porque é que Portugal está sempre a ser governado pelos mesmos idiotas?”

O assistente respondeu com diplomacia, mas o Zé comentou:

— Muito bem educado, mas falta-lhe é sarcasmo. Isso é que falta a esta inteligência…

Criou um blog. Chamava-se "Crónicas do Reformado Zangado". Escrevia sobre a vida, a política, os netos, os medicamentos caros e os vizinhos barulhentos. Tinha sete seguidores. Dois eram da família. Um era um senhor da Guarda. Os outros quatro vinham do Brasil e pensavam que ele era uma personagem fictícia.

As compras passou a fazê-las online. Ralhava com o ecrã quando o cartão não passava, e chamava “filho da mãe” ao sistema bancário quando lhe cobravam taxas que ninguém explicava. Aprendeu a reclamar no portal da queixa. Até escreveu uma carta digital ao Presidente da República:

“Exmo. Senhor Presidente,

Com todo o respeito, venho dizer que isto está tudo a cair aos bocados. Se precisar de ajuda para arranjar, tenho um martelo e uns pregos que sobraram de uma vida inteira.”

Nunca teve resposta. Mas também nunca esperou.

Zé via o mundo novo com olhos de velho: rápido demais, ruídoso, cheio de filtros e falta de alma. Mas tentava adaptar-se. Às vezes, filmava-se a comentar as notícias e punha no YouTube:

— Boa tarde, meus amigos. Hoje, neste canal do reformado furioso, vamos falar sobre o preço do gás… e do que fazer com um ministro incompetente: assar-lhe as promessas e servir com batata cozida.

A neta Matilde dizia:

— Avô, estás a viralizar!

— Eu? Com esta cara?

— Não, avô. Estás a ter muitos gostos e comentários!

Zé sorria. Pensava no tempo em que só se era ouvido na taberna ou na fila do Centro de Saúde. Agora, era ouvido por desconhecidos do outro lado do oceano. Era pouco, mas era algo.

A tecnologia, apesar de fria, dava-lhe um palco. E ele, que nunca tivera voz, agora tinha um microfone virtual.

No final do dia, desligava o computador e murmurava:

— Isto não salva o mundo, mas pelo menos não me deixa calado.

O mundo novo era estranho, mas Zé estava lá. Com rugas, com ironia, com um humor agudo que nem os algoritmos conseguiam silenciar.

Porque mesmo na era digital, um reformado zangado ainda tinha muito para dizer.


Capítulo 10 – O Último Protesto


Era uma manhã cinzenta de janeiro, daquelas em que o frio parece querer entrar pelas juntas dos ossos e fazer ninho nas entranhas. Zé da Silva acordou com a coluna a ranger como um portão enferrujado. Vestiu-se devagar, com o cuidado solene de quem prepara uma armadura — camisola de lã com cotoveleiras, cachecol de flanela, gorro com a inscrição “Portugal para Todos” e, no bolso, o velho cartão do sindicato, amarelecido como o país. — Hoje é dia de luta, Maria Alice — disse à mulher, enquanto ela lhe ajeitava o cachecol. — Ainda que seja só eu e a bengala. — Vai lá, homem. Mas não grites muito que a voz já não tem pulmão para revoluções. Na praça do município, meia dúzia de figuras como ele já se juntava. Reformados, desempregados, trabalhadores precários com olhos cansados e cartazes feitos à mão. Um dizia “Abaixo o Luxo, Viva o Tacho!”, outro “Reforma de Miséria Não É Reforma, É Castigo”. Zé empunhava o seu: “TRABALHEI 50 ANOS. MEREÇO MAIS QUE 700 EUROS.” Veio uma televisão local. Apontaram-lhe o microfone. Zé olhou a câmara como quem olha um espelho do passado e disse: — Este país esquece depressa. Mas nós não esquecemos o que é carregar cimento, fazer casas para outros viverem bem, enquanto nos empurravam para barracas. Não esquecemos salários em atraso, descontos que nunca chegaram à Segurança Social, filhos criados com pão e promessas. Agora chamam-nos peso morto. Mas fomos nós que levantámos isto tudo! O que temos agora? Gás caro, comida a prestações e políticos a fazer contas com o nosso suor! Foi o discurso mais partilhado nas redes sociais daquela semana. “Reformado fala verdades”, diziam os títulos. Mas nada mudou. Zé não se importava. Estava ali por algo mais profundo que resultados: estava ali por dignidade. Marchou pela praça com os outros, ao som de um tambor feito com uma lata e duas colheres de pau. Cantaram velhos refrões da luta, desafinados mas sinceros. Depois, beberam café em copos de plástico. Trocaram histórias, dores de costas, receitas de sopa barata. Era um protesto e também um reencontro — de almas marcadas pela mesma dureza. Zé voltou a casa ao fim da tarde, com os pés doridos e o coração aceso. Maria Alice esperava com sopa quente e um sorriso que o compreendia sem perguntas. — Valeu a pena? — perguntou. — Valeu — disse Zé. — Mesmo que ninguém ouça, fizemos barulho. E o barulho, mulher… o barulho é a música dos que já não têm palco. Sentou-se no sofá, puxou a manta e ligou o noticiário. Nada sobre o protesto. Mas ele sabia: havia coisas que não precisavam das câmaras para existirem. Bastava o eco no peito. E ali, entre a sopa e a televisão, o velho guerreiro da bombazina sorriu. Porque ainda lutava. Porque ainda acreditava. Porque ainda era. E isso, só isso, já era muito.


Capítulo 11 – A Visita do Fiscal

Era uma tarde soalheira de fevereiro quando bateram à porta com três toques secos, como martelo de juiz. Zé da Silva, a dormir a sesta depois de um almoço de feijão com chouriço, acordou sobressaltado, tropeçando nos chinelos e gritando: — Já vai, carago! Isto agora nem a digestão respeitam! Do outro lado, um homem de fato cinzento, gravata triste e pasta preta nas mãos. — Boa tarde, senhor José da Silva? Vimos fazer uma verificação da sua residência. Questões fiscais, claro. Nada de especial. Zé olhou-o de cima a baixo e bufou. — Entrem, entrem. Querem ver se o meu sofá é de ouro? Ou se guardo barras de ouro no frigorífico ao lado da manteiga? O fiscal não se riu. Tomou notas. Percorreu a casa com olhos de scanner e cara de quem cheira fraude em cortinas de chita. — Vejo aqui uma televisão. E uma torradeira. E uma máquina de café. — E uma reforma de 700 euros, quer que a mostre também? Posso ir buscar a pensão, embrulhada em esperança e papel reciclado. O fiscal pigarreou. Perguntou se o neto vivia lá. Se os filhos mandavam dinheiro. Se havia alguma renda não declarada. Zé respondeu com sarcasmo e uma ponta de raiva: — Só se contar os abraços da minha mulher como rendimento. E as saudades como património. Depois, levou o homem à varanda. — Veja bem, senhor fiscal. Esta vista para o muro do vizinho vale milhões! E aquele canteiro com duas alfaces? É o meu offshore. O fiscal foi embora, deixando um papel com carimbo e ar de ameaça. — Isto é só rotina — disse, antes de desaparecer escada abaixo. Zé rasgou o papel e jogou-o na lareira. Maria Alice olhou-o preocupada. — E se te multam? — Que me prendam. Levo o baralho de cartas e ensino os guardas a jogar à bisca. Naquela noite, escreveu nova crónica para o blog: “Vieram ver se eu vivo acima das possibilidades. Mas esqueceram-se que eu sempre vivi abaixo dos direitos.” O texto teve 12 gostos, um comentário e uma partilha. Para Zé, foi suficiente. Porque num país onde a justiça fiscal tem visão telescópica para os pequenos e miopia para os grandes, resistir com humor era o seu novo ato de rebeldia. E assim, entre impostos invisíveis e visitas inesperadas, continuava a saga do velho de bombazina. Um homem que não devia nada — exceto talvez, um pouco de respeito.


Capítulo 12 – A Televisão Chama-lhe ‘Povo’

Era domingo e Zé da Silva estava sentado no seu trono: uma poltrona gasta, coberta com uma manta oferecida pela filha no Natal de 2008. A televisão, posicionada à frente como altar, transmitia um programa de debate político onde vozes se atropelavam para dizer tudo e não dizer nada. — Reparem, caros telespectadores, o povo tem vivido acima das suas possibilidades — dizia um economista de gravata cor de vinho, rodeado de gráficos coloridos como se fossem fogos de artifício estatístico. Zé tossiu. — Povo? Estás a falar comigo, artista? Eu vivi foi abaixo das possibilidades do teu patrão. O debate seguiu para as reformas. Um deputado novo, cabelo engomado e palavras coladas a um guião, dizia: — Temos de repensar o sistema de pensões. Há pessoas que recebem sem ter contribuído o suficiente. Zé quase entornou o chá. — E há deputados que recebem sem nunca terem produzido um parafuso. Queres repensar isso também? Maria Alice ria na cozinha. — Fala-lhes, Zé. Mas não te enerves que depois ficas com o peito apertado. — Se me calar agora, morro de azia. O que me mata não é o colesterol, é esta televisão a chamar-me “povo” com aquele tom de desprezo perfumado a gabinete. Noutro programa, um apresentador com ar sorridente falava dos “heróis do dia”: um influencer que tinha dado croquetes a sem-abrigo e um cantor que doara 50 euros a uma causa qualquer. — Isto é caridade, não é justiça — resmungou Zé. — E entre os croquetes e a reforma de miséria, prefiro a sopa da Alice. Pelo menos vem com respeito. Naquela noite, desligou a televisão a meio do telejornal. Já sabia de cor a ordem das notícias: um crime, um político a negar tudo, uma greve, um futebol e uma promessa vaga. Pegou no caderno e escreveu mais uma crónica: “Chamam-nos povo quando precisam do voto. Chamam-nos ‘contribuintes’ quando querem o nosso dinheiro. Chamam-nos ‘reformados’ quando já não lhes servimos. Mas nunca nos chamam por aquilo que realmente somos: seres humanos cansados, mas inteiros.” No fim, assinou com um floreado: — Zé da Silva, reformado, bombazina, resistente. E ao apagar a luz, disse à Alice: — Um dia destes a televisão ainda me chama de “história viva”. E eu responderei: ‘Sim, mas uma história que vocês enterraram em vida’. Adormeceu com um sorriso. Sabia que o próximo episódio já estava a ser escrito — não pelos guionistas do poder, mas pela sua mão calejada e lúcida. E enquanto houvesse papel, chá quente e ironia, Zé continuaria a resistir. Mesmo que a televisão lhe chamasse “povo”, ele saberia o seu verdadeiro nome.



Capítulo 13 – O Aniversário e o Bolo de Nada


Fazia setenta e nove anos naquele dia. Maria Alice acordou mais cedo, como sempre fazia nas datas especiais, e preparou a cozinha como se fosse o salão de festas de um palácio modesto: toalha lavada com flores desbotadas, guardanapos de papel com motivos natalícios (eram os únicos que tinham), e um bolinho no centro — pequeno, redondo, e feito com tudo o que havia em casa.

— É bolo de iogurte, sem iogurte — disse ela, piscando o olho. — Mas tem amor. E um restinho de essência de baunilha que sobrou do Natal de 2019.

Zé olhou para a mesa e sentiu um aperto que não vinha do colesterol. Sentou-se, ajeitou os óculos e sorriu com uma doçura que nem os dentes em falta conseguiam esconder.

— Sabes, Alice, acho que este é o melhor bolo que já tive. E olha que já soprei muitas velas, até em bolos imaginários. Quando era puto, a minha mãe punha uma broa no centro da mesa e dizia: ‘Sopra, Zézinho. Sonha alto, que é de graça’. Hoje sonho mais baixo, mas sonho ainda.

Vieram os filhos à tarde. Susana trouxe um presente embrulhado com papel de revista — um par de meias térmicas e um caderno novo para os escritos do pai. André apareceu com um vinho barato e uma garrafa de azeite que, segundo ele, era “de produção artesanal de um colega que fugiu de Lisboa para cultivar dignidade”.

Riram-se muito. Falaram de infância, de velhos episódios, de jantares que acabavam com lume na lareira e discussões políticas em surdina. Maria Alice apareceu com um café meio fraco e um licor de cereja que já devia estar no testamento.

— O pai ainda escreve? — perguntou Susana.

— Escreve — respondeu Maria Alice. — Mais que os políticos deste país.

Zé pegou no caderno novo, abriu-o com reverência, e escreveu na primeira página:

“Hoje comi bolo de nada e senti tudo. Estou vivo, sou amado, e ainda tenho palavras. Isso chega.”

Quando a família foi embora, ficou sentado na varanda com a manta nas pernas e a bengala encostada. O sol punha-se devagar, como quem não tem pressa. E ele sorriu.

Porque a vida, mesmo quando azeda, ainda tem dias com sabor a baunilha.

E o bolo de nada... foi o melhor de todos.


Capítulo 14 – O Convite para o Debate Televisivo


Era uma tarde chuvosa de março quando chegou a carta. Sim, uma carta. Papel timbrado, envelope carimbado com logótipo de canal de televisão e assinatura em esferográfica azul.

Zé da Silva abriu com cuidado, como quem desembrulha um segredo. Leu em voz alta para Maria Alice:

— “Exmo. Senhor José da Silva, vimos por este meio convidá-lo a participar no painel de debate do programa ‘Portugal em Reflexão’, a emitir em direto na próxima quarta-feira. Tema: Reformas, Justiça Social e o Futuro da Nação.”

Maria Alice deixou cair a colher dentro da caneca de cevada.

— Tu?! Na televisão?! Vão arrepender-se.

Zé sorriu como quem calça umas luvas de boxe invisíveis.

— Está na hora de dizer umas quantas verdades com luzes e microfone.

Na quarta-feira, lavou-se com mais afinco, passou o pente no cabelo com a mão trémula, vestiu o casaco de bombazina castanha — o da missa e da luta — e pegou no caderno de anotações. No bolso, levou um pacote de pastilhas para a garganta e um desabafo engarrafado há décadas.

O estúdio era frio e moderno, cheio de ecrãs e gente a correr. Puseram-lhe maquilhagem e um microfone no colarinho. Sentou-se ao lado de um ex-ministro, um jovem economista com dentes brancos de catálogo, e uma apresentadora que sorriu como se estivesse a vender detergente.

Começou o debate.

— Vivemos acima das nossas possibilidades — disse o economista.

— A reforma não é sustentável — disse o ex-ministro.

Zé levantou a mão, como quem pede licença na escola da democracia.

— Eu trabalhei cinquenta anos. No verão, no inverno, com lombalgia e sem férias pagas. Paguei impostos, vi colegas morrerem antes da reforma, e agora vivo com setecentos euros. Se isto é viver acima das possibilidades, então as vossas possibilidades são alucinações de gabinete.

Silêncio. A câmara focou-lhe o rosto. Zé continuou:

— O problema não é a reforma. O problema é um país que não respeita quem o constrói com os próprios ossos. Um país onde quem carrega anda de autocarro e quem manda vai de motorista e ainda se queixa da gasolina.

A apresentadora mudou de tema rapidamente, mas o clipe da fala de Zé correu as redes sociais como incêndio em eucaliptal. “O Reformado que Calou os Especialistas” — diziam as manchetes digitais.

Zé regressou a casa tarde, com Maria Alice à espera, sopa na panela e orgulho no olhar.

— Já me disseram que devias candidatar-te a Presidente — disse ela.

Zé riu.

— Prefiro ser embaixador do bom senso. Já chega de palácios. O povo precisa é de pão com marmelada e respeito.

Sentou-se, tirou os sapatos e escreveu no caderno:

“Falaram em reformas. Eu reformei o discurso. Troquei tecnocracia por verdade. E ganhei.”

Depois apagou a luz. E sonhou com um país onde todos os debates tivessem mais vida e menos pose.


Capítulo 15 – O Vizinho que Votava Sempre nos Mesmos


Na porta ao lado, vivia o senhor Germano, homem de bigode farto, camisa de flanela às riscas e fé inabalável numa coisa apenas: os mesmos partidos. Sempre os mesmos. Desde o PREC até ao TikTok.

Zé da Silva cruzava-se com ele ao sábado, junto ao caixote do lixo, onde discutiam política, couves e o preço dos medicamentos.

— Então, Germano, este ano muda o voto ou vai na volta ao costume? — perguntava Zé, já a adivinhar a resposta.

— Ó homem, mudar pra quê? São todos iguais, mas pelo menos estes já conheço.

— Então vota neles porque o enganam há mais tempo?

— Ora essa! Prefiro o ladrão conhecido ao santo desconhecido.

Zé abanava a cabeça com a lentidão de quem tenta arrumar paciência nas gavetas do cérebro.

— O problema, Germano, é que depois passas o resto do ano a queixar-te. Do preço da luz, do centro de saúde, das pensões miseráveis…

— Pois, mas se não votar neles, vêm piores.

— E se votasses noutros, talvez os de sempre percebessem que o povo acordou.

— Ó Zé, tu és um sonhador. Isto está feito para eles, não para nós.

— Está feito para eles porque há muitos como tu que já desistiram antes de lutar.

Germano riu-se, meteu o saco do lixo no contentor e disse:

— Olha, pelo menos o sacana do meu deputado trouxe uma rotunda nova. E umas festas com fogo-de-artifício. Isso conta, não conta?

Zé respondeu:

— Só se for para te distrair enquanto te vão tirando os direitos. Fogo-de-artifício não cura a diabetes nem paga o gás.

Naquela noite, no caderno, Zé escreveu:

“O voto do Germano é como a novela: já sabe o final, mas não perde um episódio. E o país repete-se como telenovela de verão.”

Maria Alice leu e disse:

— Vais ver que um dia o Germano muda.

Zé sorriu.

— Talvez. Quando perceber que votar nos mesmos sempre dá o mesmo resultado. Como usar lixívia para regar as plantas: fica tudo branquinho, mas morto.

E assim, entre contentores e conversas de beira de passeio, Zé continuava a sua missão: semear dúvidas nas certezas alheias.

Mesmo que germinassem devagar, ele nunca deixava de lançar as sementes.


Capítulo 16 – A Visita do Banqueiro à Aldeia O burburinho começou numa manhã de sábado, quando a dona Arminda, a cabeleireira da aldeia (e também presidente da junta, porque ninguém mais quis), anunciou no café: — Vem aí um banqueiro. Diz que quer investir na região. Diz que é para dinamizar o território. A palavra “dinamizar” soou estranha aos ouvidos do Zé, como quem ouve falar em alquimia. — Dinamizar? Isso quer dizer o quê? Explodir mais uma serra com dinamite e pôr lá painéis solares que nem os vizinhos podem usar? Mas a aldeia agitou-se. Barrigas metidas para dentro, roupas domingueiras engomadas, e a escola primária limpa com vinagre e orgulho. O banqueiro chegou de helicóptero. Saltou cá para baixo um homem de fato cinzento, óculos de sol, cabelo penteado com laca de outra galáxia. Trazia jornalistas, assessores, e um sorriso pronto para campanha. — Meus caros — disse ao microfone instalado sobre dois tijolos e uma caixa de Nestum virada ao contrário — estou aqui para ouvir, sentir, investir. Zé aproximou-se, apoiado na bengala e num velho caderno. Maria Alice tentava segurá-lo, mas já sabia: o Zé não se calava quando sentia cheiro a cosmética política. — Ó senhor doutor banqueiro — começou — sabe quanto é a minha reforma? Setecentos euros. E sabe quantos anos trabalhei? Cinquenta e dois. Sabe quantas vezes ouvi promessas como as suas? Perdi a conta. O banqueiro sorriu, algo incomodado. — Estamos a trabalhar em novos produtos financeiros de inclusão. — Produtos?! — Zé quase se engasgou — Eu vendi fruta, legumes e até sabonetes em feiras. Nunca vendi dignidade em frascos. Isto aqui não precisa de produtos. Precisa de gente que ouça sem pressa e decida com coração. — Vamos criar um centro de coworking e um hub tecnológico. — E as velhotas que mal têm rede no telemóvel, vão programar em Python? — perguntou Zé, entre o espanto e o riso. A multidão riu-se. Até o padre, que estava a bênção em riste, sorriu por detrás da batina. Zé rematou: — Traga médicos, traga transportes, traga pão sem IVA. Hub é o que o meu neto joga na consola. Aqui o que falta é decência e futuro. No helicóptero de regresso, o banqueiro abanava a cabeça. Disse ao assessor: — Este povo tem pouca visão. Não percebem o que é desenvolvimento. Zé, na praça, escrevia: > “O banqueiro veio vender futuro embalado em holograma. Mas aqui, futuro é poder plantar batatas sem ser despejado.”


Capítulo 17 – A Manifestação dos Reformados Invisíveis Tudo começou com uma carta escrita à mão e afixada no quadro de avisos do Centro de Dia: > “Vamos sair à rua. Tragam bengalas, cartazes e vontade. Não somos invisíveis. Somos os que ficaram para trás.” A assinatura era simples: “O Zé da Silva (reformado e revoltado)”. Maria Alice leu aquilo e disse: — Estás a meter-te em sarilhos outra vez. — Não, mulher. Estou só a recordar-lhes que existimos. A aldeia mexeu-se. O reumatismo cedeu à indignação. As varizes alinharam-se com a coragem. Em duas semanas, estavam mais de 300 reformados a caminho da cidade, em autocarros pagos com vaquinhas e sorrisos de netos. Zé liderava o grupo. Levava um cartaz onde se lia: > “Reformado não é descartável. É quem te fez nascer.” Chegaram à praça central, onde as câmaras filmavam outro evento qualquer: a inauguração de uma nova estátua a um político esquecido. O cortejo instalou-se à frente do monumento. Zé subiu a um banco de jardim e falou ao megafone que o neto lhe emprestara: — Trabalhámos a vida toda. Construímos escolas onde hoje os nossos netos aprendem. Fizemos estradas com os nossos impostos. E agora? Vivemos com trocos e sopas da caridade. — Reformas de miséria são insulto! — gritava dona Filomena. — Queremos consultas sem ter de esperar meses! — berrava o senhor Aníbal, que já tinha deixado cair a placa duas vezes. As televisões chegaram tarde. Mas chegaram. Filmavam com o mesmo entusiasmo com que cobrem touradas e desastres. Um jornalista jovem perguntou a Zé: — Mas o que querem vocês exatamente? Zé respondeu sem hesitar: — Respeito. Não queremos esmolas. Queremos viver os nossos últimos anos com dignidade. Com sopa quente, luz paga e netos felizes. — E acha que vão conseguir? Zé sorriu: — Talvez não hoje. Mas cada passo nosso faz tremer o chão de quem se esqueceu que a velhice não é castigo, é medalha. No regresso à aldeia, todos estavam cansados, mas com os olhos acesos. No caderno, Zé escreveu: > “Hoje marchámos devagar, mas juntos. O país finge que não nos vê. Nós lembrámo-lo de que ainda cá estamos — e fazemos barulho.” A Maria Alice leu e disse: — Se morreres amanhã, já morreste de cartaz na mão. Isso vale por uma revolução. Zé respondeu: — E se viver mais uns anos, vou organizar outra.


Capítulo 18 – O Desabafo no Café Central Era um daqueles fins de tarde em que o sol teima em dourar o mundo, mesmo que a alma esteja em saldo. Zé da Silva, reformado de mil ofícios e poucas glórias, entrou no Café Central com o andar pausado de quem carrega mais décadas do que moedas. Sentou-se na mesa do canto, a que dava vista para o relógio da torre e o coração da aldeia. Maria Alice ficara em casa a costurar um pano de tabuleiro remendado, e ele aproveitou para mergulhar no barulho da vida a acontecer. — Um café curto, sem açúcar, mas com esperança — disse ao empregado, que já o conhecia só pela cadência do suspiro. Na mesa ao lado, falavam do preço do pão, das eleições, das pensões congeladas e da novela da noite anterior. Zé pousou o cotovelo no tampo de mármore e começou o desabafo. Não para alguém em particular. Apenas para o ar, para a parede, ou para quem quisesse escutar. — Trabalhei desde os catorze. Em fábricas, em obras, no campo e até num jornal onde não me pagaram nunca. Vi patrões fugir aos descontos, vi colegas irem à vida com a espinha partida e a carteira vazia. Sobrevivi ao antes e ao depois do 25 de Abril — e o depois foi só menos cinzento nas palavras. O empregado limpava copos e ouvia com aquele respeito que se tem pelos que já perderam a pressa. — Disseram-nos que a democracia traria justiça. Mas a justiça ainda usa relógio suíço e anda em carro com motorista. A mim tiraram-me os dentes e deram-me dentaduras em segunda mão. A vida passou-me por cima com botas e meias rotas. Na televisão do café, passava um telejornal mudo. Imagens de ministros a apertar mãos e sorrir para inaugurações que duram menos que o gás na bilha. — Sabem o que custa mais? Não é o pouco dinheiro. É o muito desprezo. É ver que nos tratam como sobras. Reformados como eu sustentaram este país. E agora, damos jeito para estatísticas e slogans. Uma senhora idosa, que ouvia em silêncio, deixou cair uma lágrima no seu chá de tília. Outro homem levantou o copo de bagaço e disse: — Brindemos ao Zé. Diz o que todos pensamos. E brindaram. Não ao passado. Mas à coragem de ainda falar. Porque às vezes, num café, entre uma bica e uma torrada, começa uma revolução silenciosa. Zé regressou a casa mais leve. Maria Alice perguntou: — Correu bem a conversa? — Desabafei com o país, Alice. Não sei se ouviu, mas eu disse-lhe umas verdades. E no caderno escreveu: > “A esperança é como o café curto: amarga, mas desperta.”





Capítulo 19 – O Dia em que a Filha Disse: ‘Pai, Vai para um Lar’


Maria Alice estava a adormecer no sofá quando a filha apareceu, com olhos de quem trazia o mundo às costas.

— Pai, precisamos de conversar…

Zé da Silva pousou o jornal. Já sabia. Sentia. Aquilo vinha a germinar havia meses.

— Eu e o Jorge… achamos que é melhor começares a pensar num lar. Um sítio onde estejas bem, com cuidados, onde não fiques sozinho...

O Zé ficou calado. O silêncio era o casaco que usava quando as palavras doíam.

— É para o teu bem, pai.

“Para o teu bem.” Quantas vezes ouvira essa frase vinda de gente que lhe lixara a vida?

Lembrou-se de quando, nos anos 80, trabalhou numa fábrica de moldes que fechou da noite para o dia. “Para o bem da empresa.” Foi parar ao fundo de desemprego, que era como quem dizia: vai-te aguentando. Quando foi pedir explicações, disseram-lhe que já devia estar reformado. Só que o tempo de descontos era curto. Porque os patrões de então tinham descontado metade e dito “confia, que está tudo certo”.

— Pai, estás a ouvir-me?

Ele acenou. Mas por dentro, uma guerra silenciosa. Os olhos húmidos, não de medo, mas de orgulho ferido.

— Eu ainda não estou morto. — disse, quase num sussurro.

A filha baixou os olhos.

Naquela noite, não jantou. Limitou-se a escrever no seu caderno:

> “Querem pôr-me num lar como quem arquiva um documento antigo. Mas eu ainda tenho páginas em branco.”


Capítulo 20 – O Dia em que a Maria Alice Se Esqueceu do Nome Dele


A manhã amanheceu como tantas outras, com o cheiro a cevada a ferver e a rabanadas de sol pelas frinchas da janela. Zé da Silva levantou-se em silêncio, como se o tempo o chamasse.

Na cozinha, Maria Alice sentada, mexia a colher no ar. O olhar vago, como se procurasse o passado numa chávena de chá.

— Bom dia, minha rainha. — disse ele, com aquele carinho cansado.

Ela olhou-o, franziu o cenho e perguntou:

— O senhor… mora aqui?

O tempo parou. O som do relógio foi substituído por um vazio espesso.

— Sou eu, Alice. O Zé. O teu Zé.

Ela sorriu, gentil, mas alheia. Como se aquele nome fosse um eco vindo de um vale distante.

Ele sentou-se ao lado dela e pegou-lhe na mão. Aquelas mãos que conhecia melhor que as suas. As mãos que seguraram filhos, panelas, dores e alegrias. Mãos que agora tremiam ligeiramente, como se o mundo lhes escorregasse.

— Não faz mal, amor. Hoje sou só um amigo. Amanhã talvez volte a ser o Zé.

Nesse dia, escreveu no caderno:

> “O amor verdadeiro não precisa de reconhecimento. Basta-lhe a presença. E eu estarei aqui, mesmo que um dia ela esqueça até o que é estar.”


Capítulo 21 – O Último Olhar no Espelho


O espelho da casa de banho tinha manchas de tempo e vapor de outros invernos. Já não refletia com nitidez. Ou talvez fosse ele, o Zé, que já não se via com clareza.

Nessa manhã, acordou mais cedo que o costume. Maria Alice ainda dormia, os lábios entreabertos, sussurrando um sonho que ele não conseguiria decifrar. Vestiu-se devagar. A camisa azul clara, aquela que só usava aos domingos. E o casaco castanho, comprado numa feira em 1997 — ainda com o cheiro a lã guardada no armário.

Foi à casa de banho, ligou a luz trémula e olhou-se no espelho.

— Então, velhote... — murmurou. — Estás aí?

O reflexo respondeu com olhos fundos, rugas como rios secos, cabelo ralo e branco como as manhãs de geada em janeiro. Mas havia ali qualquer coisa que resistia: um brilho discreto, como brasas escondidas debaixo da cinza.

Pousou as mãos na bancada e sorriu. Um sorriso cansado, sim. Mas genuíno.

— Viste tanto… suportaste mais ainda.

Recordou os dias de sol a ceifar trigo, os dedos gelados a abrir valas, os calos nas mãos de limpar peixe, os insultos engolidos para manter o emprego, os patrões que diziam “é só mais um esforço”. E depois, os filhos, as escolas, as contas, as febres da mulher, os natais com bacalhau emprestado.

No espelho, via tudo isso a dançar nos sulcos do rosto.

Recordou também o 25 de Abril, os cravos nas ruas e a promessa de um novo país. Lembrou o voto, a esperança, os primeiros salários a tempo e horas. Depois, a desilusão lenta, como humidade nas paredes.

— O que é que fica, Zé? — perguntou-se em voz alta.

Ficava Maria Alice. Ficava o neto que o ouvia falar de “outros tempos”. Ficava o cheiro a terra molhada depois da enxada. Ficava o caderno.

E ficou também aquele instante. O último olhar no espelho.

Suspirou. E com a ponta dos dedos, limpou uma gota de água ou talvez uma lágrima.

— Ainda estás inteiro. Estás velho, mas inteiro. E isso é obra.

Saiu da casa de banho com passo seguro. Na sala, abriu o caderno e escreveu:

> “Olhei-me ao espelho e vi-me inteiro. Não bonito. Não jovem. Mas verdadeiro. E só isso já vale um dia a mais.”

Ao lado, Maria Alice despertava, chamando por um nome qualquer que não era o dele. Mas Zé foi até ela, segurou-lhe a mão e disse:

— Bom dia, meu amor. O teu Zé está aqui. Ainda aqui. Sempre aqui.


Capítulo 22 – O Jantar da Despedida com os Amigos da Aldeia


A ideia do jantar não foi do Zé. Foi do Ti Manel da mercearia, velho camarada de cartas e de contas fiadas. Disse-lhe ao ouvido, num tom meio conspirador:

— Ó Zé, antes que algum de nós vá de vez, bora fazer um jantar à antiga? Bacalhau, vinho da pipa, e histórias que não couberam nos jornais.

O Zé hesitou. Não era homem de festas. Mas também já não era homem de adiar encontros.

Naquela sexta-feira, o largo da aldeia encheu-se de cadeiras de plástico, mesas cobertas com toalhas de flanela e travessas fumegantes trazidas pelas mulheres da terra. O sol ainda resistia no horizonte, pintando tudo com uma luz que só as aldeias conhecem.

Estavam lá todos: o Ti Manel, o Artur das bombas, o Alfredo da carrinha do pão, a Rosa do correio, a Cidália das limpezas, e até o Chico, que agora vivia em Lisboa mas regressava sempre que havia cheiro a aletria.

O Zé chegou de camisa branca e boné novo, como quem vai a uma entrevista com o destino. Abraçou cada um, um por um, como se quisesse gravar o cheiro e o calor de cada abraço para quando a memória começasse a falhar.

— Então, Zé, é verdade que vais para o lar? — perguntou o Chico.

Zé sorriu, mastigando a ironia.

— Só se me amarrarem com corda e disserem que há vinho à borla.

Todos riram. Mas sabiam que havia ali uma sombra. Um pressentimento de que aquele jantar era mais do que uma celebração — era um capítulo a fechar.

Serviram-se de bacalhau com batatas, vinho caseiro, e rabanadas que pareciam feitas com açúcar e afeto.

Depois veio o silêncio respeitoso. O Zé levantou-se com dificuldade, ergueu o copo de barro e disse:

— Meus amigos… Trabalhámos uma vida inteira, pagámos os erros dos outros, calámos mais do que devíamos, vivemos com pouco e rimos com quase nada. E mesmo assim estamos aqui. Inteiros. Com as pernas meio tortas, as costas dobradas e os rins cansados, mas com o coração no lugar.

Fez-se silêncio. E depois, palmas. Daquelas que não se pedem. Que apenas acontecem quando a alma se reconhece.

O jantar terminou tarde. O Zé foi o último a sair do largo, com o Ti Manel a seu lado.

— Boa noite, companheiro — disse o Ti Manel.

— Boa noite, irmão de trincheira — respondeu o Zé.

E ao chegar a casa, escreveu no seu caderno:

> “Nem todos os jantares são para matar a fome. Alguns são para alimentar o que ainda resta de nós.”



Capítulo 23 – A Visita do Neto


A vida de Zé da Silva, agora com o corpo mais curvado do que nunca, ganhava brilho num daqueles raros dias de sol interior: o neto, Bernardo, vinha visitá-lo. Desde o último almoço em família que não se viam, e o tempo entre uma visita e outra, tornava-se mais pesado do que qualquer saco de cimento que Zé alguma vez carregara. Bernardo, rapaz de vinte e tal anos, programador de computadores e viajado, vinha com ideias novas, com perguntas afiadas e com a ternura nos olhos de quem ama sem condições. Era o espelho de um futuro que Zé não viveria, mas que ainda assim sentia como parte de si. — Avô, sabes que agora falam de reformar o sistema político com inteligência artificial? Zé arregalou os olhos, entre o ceticismo e o fascínio. Nunca confiara muito em políticos, mas a ideia de máquinas talvez não fosse assim tão má... — Máquinas? Olha, se forem mais justas do que os juízes, mais humanas que os ministros e mais verdadeiras que os jornalistas... venha a inteligência artificial! — disse, sorrindo. Bernardo ria-se. O avô, mesmo com o cansaço da vida, tinha sempre uma resposta pronta, um ditado, uma farpa embebida em sabedoria. Conversaram sobre tudo: o salário mínimo que não chegava, os anos de descontos sem conta, os amigos que já tinham partido, a esperança que teimava em resistir. Zé olhava o neto com orgulho, mas também com receio: que mundo deixariam para ele? Um país a saque? Um país de paredes pintadas mas com as fundações podres? No fim da tarde, quando Bernardo se despediu com um abraço longo, Zé da Silva ficou ali, sentado na sua cadeira de madeira, a olhar o céu que começava a tingir-se de laranja. Pensou: talvez ainda houvesse tempo de semear uma ideia justa, uma palavra certa, um último gesto de resistência. E nesse dia, ao fechar os olhos por um instante, Zé sentiu algo raro: paz. Porque, mesmo na amargura de tudo o que lhe tiraram, algo lhe tinham deixado — o amor do neto, e a certeza de que a luta pela dignidade não termina enquanto houver alguém para contar a história.

Capítulo 24 – O Dia em que Chegou a Carta do Banco a Dizer que o Saldo Estava a Zero


Era uma segunda-feira cinzenta, daquelas que fazem do céu uma toalha molhada estendida sobre o mundo. O carteiro, que já conhecia os remendos da vida do Zé, deixou o envelope branco no marco da porta como quem deposita um presságio.

Zé da Silva abriu a carta com o cuidado de quem abre radiografias. E lá estava:

“Informamos que a sua conta se encontra com saldo nulo. Evite comissões de inatividade. Aconselhamos regularização urgente.”

Leu aquilo uma, duas, três vezes. Era como se lhe tivessem dito: “A sua vida oficial terminou. Resta-lhe a esperança e as moedas do frasco.”

Suspirou. Já sabia que andava no fio da navalha. A reforma dava para os medicamentos, a luz, a água, o gás (quando não havia aumentos surpresa) e pouco mais. Mas aquele dia chegou — o dia em que o número era zero.

Não negativo. Não em risco. Zero.

— Fui abaixo da linha de água — murmurou — mas continuo a respirar.

Maria Alice estava na poltrona, a ver televisão sem som, com os olhos perdidos entre um canal de receitas e a memória evaporada. Não podia contar com ela. Nem com os filhos, que também lutavam com prestações, propinas e os seus próprios fantasmas financeiros.

Foi então que Zé fez o que sempre fizera em momentos de desespero: inventou um plano.

Pegou no velho rádio de pilhas e foi para a horta. Puxou das batatas, endireitou as estacas dos tomates, regou as couves com a água das chuvas apanhada nos bidões. Pensou:

“Posso não ter saldo, mas tenho terra. A terra não cobra comissão. A terra responde.”

À noite, ao fechar o caderno, escreveu com orgulho:

“O banco disse-me que tenho zero. Mas esqueceu-se de contar as couves, as galinhas, a dignidade e a minha mulher que ainda me chama ‘senhor’ quando se perde.”

“O saldo da conta não mede o valor do homem. Zero é só um número. E eu sou mais que isso.”


Capítulo 25 – O Natal com os Filhos e os Netos


A lareira crepitava como um coração contente. A sala cheirava a canela, bacalhau e histórias por contar. O Zé, com o seu colete de lã e as mãos calejadas, olhava para a mesa posta como quem olha para um milagre.

Vieram todos. O filho mais velho com a esposa e os dois rapazes, a filha com as filhas adolescentes e um namorado tímido que se ofereceu para pôr a mesa. A casa parecia pequena, mas a alegria dilatava-lhe as paredes.

Maria Alice sorria, ainda que já não reconhecesse todos. Mas o calor das vozes, os risos e as luzes a piscarem davam-lhe paz.

O Zé ergueu um copo de vinho tinto barato, mas honesto:

— A esta ceia, à família e à memória do que fomos!

Durante o jantar, contaram-se histórias antigas, como aquela vez em que o Zé tentou fazer uma árvore de Natal com galhos de oliveira porque “era o que havia”. Riram, choraram, brindaram.

No fim, os netos deram-lhe uma prenda. Era um caderno novo. Capa dura, papel grosso.

— Para continuares a escrever, avô.

O Zé emocionou-se. Escreveu na primeira página:

“Este Natal não teve ouro, nem incenso, nem mirra. Mas teve pão, vinho e netos. Foi mais que suficiente.”


Capítulo 26 – A Visita do Neto Bernardo


O portão rangeu. O som metálico, familiar, foi o primeiro aviso.

Zé levantou-se devagar, apoiando-se no cajado que ele próprio talhara anos antes. Ao abrir a porta, encontrou Bernardo — o neto mais velho, o que estava a estudar em Lisboa, o que “ia longe”.

— Avô!

— Ó rapaz, entraste pela porta da frente como um presidente, hã?

Riram. Sentaram-se à sombra da figueira, e Bernardo abriu a mochila. Trouxe queijo da cidade, pão com sementes e um livro de filosofia política.

— Avô, tenho pensado muito nas tuas histórias. Aquilo que me contaste sobre os patrões, os salários, os falsos descontos… Queria saber mais.

Zé arregalou os olhos, curioso.

— Sabes o que é que nunca ninguém me perguntou? “Como é que foi, Zé?” E tu perguntaste.

Passaram horas a falar. Sobre a vida antes e depois do 25 de Abril. Sobre a diferença entre liberdade e ilusão. Sobre trabalhar uma vida inteira para no fim ser tratado como um fardo.

Bernardo tirava notas.

Antes de partir, abraçou o avô com força:

— Um dia, quero fazer um documentário sobre ti. Sobre todos os “Zés” deste país.

Zé sorriu, já com lágrimas nos olhos.

— Faz, rapaz. Mas põe lá uma coisa: que não éramos vítimas. Éramos resistentes de barriga vazia.


Capítulo 27 – A Carta Final do Zé


A madrugada chegou fria e silenciosa, como se até o tempo tivesse decidido sussurrar.

Zé sentou-se à secretária onde escrevera tanto. Respirou fundo. Puxou do caderno novo — aquele que os netos lhe tinham dado — e começou a escrever.

“Querido Bernardo,

Se estás a ler isto, é porque a figueira já não me viu voltar. Não fiques triste. Vivi o que pude, como pude, e não me arrependo. Não sou herói. Fui só um homem.

Quero que saibas que te deixo não só o caderno, mas também os olhos com que o escrevi. Vê este país, mas vê mesmo. Não te deixes enganar pelos números, pelas manchetes, pelos sorrisos ensaiados.

Luta, mas com humor. Denuncia, mas com esperança. E nunca te esqueças: a tua liberdade foi comprada com o silêncio de muitos que já cá não estão. Dá-lhes voz.

Com amor,

Zé”

Fechou o caderno. Pousou a caneta. E pela primeira vez em muitos anos, deitou-se sem sentir medo do dia seguinte.


Capítulo 28 – O Funeral com Pão, Vinho e Memória


A aldeia acordou cedo nesse sábado. Não por hábito, mas por respeito. O Zé da Silva tinha partido — e até o sino da igreja soava mais grave, como se soubesse que estava a chamar por alguém que levava parte da terra consigo.

Na capela, o caixão era simples. De madeira clara, com um cravo vermelho pousado por cima. Não havia coroa de flores caras, nem padre de voz de opereta. Havia gente. Muita. E silêncio. Um silêncio que falava alto.

O Ti Manel da mercearia levou o vinho caseiro. A D. Arminda trouxe broa ainda quente. A filha do Zé apareceu com os olhos inchados, mas a neta de cinco anos sorria, sem entender que o avô já não ia contar histórias de formigas revolucionárias.

Ao lado do caixão, estava o caderno preto. Aberto no último capítulo.

O Bernardo, de fato escuro e alma apertada, pediu a palavra. Subiu os degraus do altar improvisado e disse:

— O meu avô foi um homem simples. Mas foi também um filósofo de enxada, um poeta de broa, um guerreiro de recibo verde.

Risos nervosos misturados com lágrimas.

— Ele não teve homenagens do Estado. Não recebeu medalhas. Mas teve amigos. Teve memória. Teve a coragem de viver honestamente num país onde isso dá prejuízo.

Fez-se um silêncio. Depois, levantou o caderno e continuou:

— Antes de morrer, escreveu: “não me homenageiem com flores, mas com futuro”. Que o escutemos.

No fim, houve pão. Houve vinho. Houve histórias contadas em voz baixa, lembranças trocadas como relíquias, e gargalhadas inesperadas — porque o Zé teria gostado disso.

E quando o corpo desceu à terra, um dos vizinhos murmurou:

— Olha o raio do homem… Até a morrer fez-nos sentir vivos.

Capítulo 29 – A Reforma do Guarda-Chuva Furado


Naquele dia, o céu decidiu cair em cima das cabeças com fúria bíblica. Era como se os anjos, cansados de tanta burocracia, resolvessem chorar todos de uma vez.

Zé da Silva, com o seu velho guarda-chuva herdado do sogro (modelo soviético com estrutura de ferro e tecido mais fino que a paciência de um contribuinte), caminhava devagar em direção aos CTT.

Levava uma carta.

— Requerimento de revisão de escalão de IRS. — murmurava para si, como se as palavras tivessem de se acostumar à vergonha.

O guarda-chuva, naturalmente, cedeu. Primeiro uma vareta, depois duas. Ao fim de cinquenta metros, parecia mais uma escultura de ferro retorcido que um utensílio de proteção.

Uma senhora passou, olhou para ele e ofereceu-lhe um dos seus chapéus novos, ainda com etiqueta.

— Fique com este, senhor.

Zé recusou com a educação dos que viveram tempos em que se agradecia até à sombra.

— O meu aguenta até à repartição. Depois já não é preciso.

A repartição, claro, estava fechada. “Encerrado por motivo de reunião interna.”

Zé suspirou. A chuva, como os impostos, era inevitável.

Sentou-se no banco de pedra em frente à junta e olhou para o céu — talvez à espera de respostas divinas ou de um helicóptero do Estado que viesse buscá-lo por engano.

Do bolso, tirou o caderno dos pensamentos.

“Hoje a chuva molhou-me até aos ossos. Mas a falta de justiça é o que me encharca o espírito.

A reforma é um guarda-chuva furado. A gente abre, espera proteção… e leva com a realidade no lombo.”

Guardou o caderno, puxou do rádio e ouviu a previsão do tempo.

— Amanhã, aguaceiros. E para os reformados? — perguntou em voz alta.

Um miúdo que passava com a mãe riu-se. O Zé piscou-lhe o olho.

— Vai-te habituando, rapaz. Em Portugal, há sempre previsão de cortes. Mas nunca de aumentos.


Capítulo 30 – O Relatório da Junta e os Anos que Sumiram


Zé da Silva já não esperava milagres. Mas, naquela manhã de terça-feira, decidiu ir à Junta de Freguesia averiguar o histórico dos seus descontos para a Segurança Social — mais por teimosia do que por esperança.

Foi atendido por uma funcionária jovem, simpática, com unhas cor-de-rosa fluorescente e um sorriso pronto, embora carregado de ignorância administrativa.

— Ora vamos cá ver, senhor José… — clicou, clicou e clicou — Aqui diz que só começou a descontar em 1984.

— Desculpe? Eu comecei a trabalhar com 13 anos, em 1967! — ergueu as sobrancelhas como quem puxa a verdade para fora da gaveta.

— Pois… mas aqui no sistema só aparece a partir de 84. Antes disso, nada.

Zé mordeu os lábios. Sabia o que isso queria dizer: dezassete anos de vida evaporados como gotas de orvalho num recibo amassado.

— E então esses anos?

— Olhe, se não tem provas… O sistema não regista.

Zé encolheu-se como um campo depois da ceifa.

“Se não há provas, não houve vida”, pensou.

Saiu sem estardalhaço. Não valia a pena protestar. Os anos tinham-se dissolvido nos bolsos dos patrões, entre os esquemas das empresas, os envelopes por fora e as promessas por dentro.

Sentou-se no café ao lado e pediu um carioca de limão.

Abriu o caderno:

“Trabalhei 10 horas por dia, 6 dias por semana, durante 17 anos.

Recebia à semana, em notas murchas e promessas molhadas.

Agora, esses anos não existem.

Fui um fantasma produtivo. Um operário de névoa.

E ainda querem que agradeça a democracia.”

O empregado trouxe a conta com um “desejo-lhe um bom dia”.

Zé sorriu.

— O dia não tem culpa, rapaz. A culpa é do sistema que acha que os pobres só existem quando alguém carrega no Enter.


Capítulo 31 – O Caderno do Avô


Bernardo encontrou o caderno numa tarde chuvosa de sábado, ao vasculhar o velho baú de pinho que cheirava a cânfora, mofo e segredos. Estava embrulhado num lenço bordado com as iniciais “Z.S.” e preso com um cordel simples, como os que se usavam para atar as malas de cartão no tempo dos emigrantes.

No topo da primeira página lia-se, com caligrafia firme mas cansada:

“Se um dia quiseres saber quem eu fui, lê.

Se não quiseres, não te culpo. Há dores que se transmitem e outras que é melhor enterrar.”

Bernardo sentou-se na cadeira de verga, acendeu a luz amarelada da cozinha antiga e começou a ler.

As páginas falavam de injustiças, de amor, de pão racionado e sonhos adiados. Falavam de Portugal. Falavam dele.

Entre as páginas, havia folhas soltas com contas rabiscadas à margem:

“Luz + água + gás = 147,80. Reforma = 700 – medicamentos – pão – transportes… sobra indignação.”

Havia também poemas curtos, bilhetes para ninguém, desenhos de escadas partidas e frases como:

“Chamam-nos de reformados. Eu digo: fomos é deformados por um sistema que nunca nos quis inteiros.”

Bernardo sentiu um nó no estômago. Era como se o avô falasse com ele — não com a voz, mas com a verdade da tinta.

Na última página, um recado:

“Bernardo, se leres isto, promete-me que não vais calar.

Que vais escrever, berrar, rir alto.

Que não vais deixar Portugal ser um eterno velório da esperança.”

Bernardo fechou o caderno com cuidado, mas o coração ficou aberto.

No dia seguinte, abriu uma conta no Substack. Nome do blogue?

"O Neto do Zé da Silva – Crónicas de um País Que Ainda Não Sabe Cuidar dos Seus."

Capítulo 32 – O Primeiro Texto do Neto


O cursor piscava, ansioso. Bernardo olhava para o ecrã como quem encara um abismo.

A conta do Substack estava criada. Nome ousado, inspirado:

“O Neto do Zé da Silva – Crónicas de um País que Ainda Não Sabe Cuidar dos Seus”

Título do primeiro texto:

“O País que Engole os Seus Filhos e Cospe Reformas”

Inspirado nas palavras do avô, começou a escrever:

Portugal não é um país velho.

É um país cansado.

Cansado de prometer futuro e dar subsídio.

Cansado de estatísticas que brilham no estrangeiro enquanto os reformados contam moedas em filas de centro de saúde.

Contou a história do avô:

— Começou a trabalhar aos 13, nunca teve férias pagas, viu patrões a desfilar em jipes novos enquanto ele remendava os sapatos.

— Viu o 25 de Abril chegar como um sol. E depois o viu esconder-se atrás das nuvens da dívida, da corrupção e do discurso dos mesmos de sempre.

Escreveu com raiva, mas também com ternura.

Citou o caderno do avô:

“Reformado não é quem descansa. É quem é deixado para trás.”

Fez uma analogia entre Portugal e um comboio:

— “Há décadas que nos dizem que o país está a avançar.

Mas esquecem-se que muitos andam a pé, atrás da locomotiva, com calos e fome.”

Publicou o texto. Em menos de 24 horas, teve 3 comentários. Um deles, assinado apenas como “M.S.”, dizia:

“O seu avô tinha razão. Também trabalhei 42 anos e recebo 689 euros. Obrigado por dar voz a quem já se calou.”

Bernardo sorriu.

Não era viral. Não era trending.

Mas era verdade. E, como o avô dizia:

“A verdade não precisa de multidão. Basta ecoar num coração.”



Capítulo 33 – A Entrevista na Rádio Comunitária


Era sábado de manhã e o sol espreitava tímido por entre os estores gastos do estúdio da Rádio Baixa Frequência, instalada no sótão de uma antiga escola primária desativada. Bernardo, nervoso mas determinado, ajustava os fones enquanto o locutor lhe lançava um olhar cúmplice.

— Estás pronto, rapaz?

— Nunca se está… mas vamos a isso.

O jingle da rádio tocou, com voz roufenha e sintetizador desafinado:

“Rádio Baixa Frequência – a Voz dos que Nunca Foram Ouvidos”.

— Hoje temos connosco um jovem que decidiu escrever sobre os velhos. Mas não como se fossem passado. Como se fossem ferida aberta. Bernardo Silva, o neto do famoso Zé da Silva. Bem-vindo.

— Obrigado. O meu avô não era famoso. Era invisível. Como tantos. Eu só peguei na lupa e apontei-lhe ao peito.

A conversa começou com o blogue, mas rapidamente mergulhou fundo nas águas turvas do país:

— Porque escreves?

— Porque a verdade anda de muletas. E eu quero empurrá-la rampa acima.

— O que dirias aos jovens?

— Que não aceitem herdar o silêncio. Nem o salário mínimo como teto de ambição. Nem o “é o que há” como filosofia de vida.

Falaram de reformas indignas, patrões que acumulam e funcionários que afundam.

De escolas que ensinam datas mas esquecem os dramas.

De um país que só ouve os mortos quando é feriado nacional.

No final da entrevista, o locutor desligou o microfone, comovido.

— O teu avô teria orgulho.

— Eu acho que sim. Mas mais que orgulho… talvez tivesse esperança.

Ao sair do estúdio, Bernardo recebeu um SMS de um número desconhecido:

“O meu pai trabalhou com o teu avô. Obrigado por o fazeres viver outra vez. — L.S.”

Bernardo olhou para o céu. Estava limpo, azul, quase como se o país estivesse a ouvir.



Capítulo 34 – A Primeira Ameaça Velada


Na segunda-feira seguinte à entrevista, Bernardo encontrou no seu email uma mensagem sem assunto. O remetente era estranho: verdadeiropatriota@protonmail.com. Abriu por curiosidade. Lá dentro, uma única frase:

“Não queiras ser mais esperto que o sistema. Já muita gente se magoou por menos.”

Nada mais. Sem assinatura. Sem link. Só o aviso, cortante como uma lâmina na madrugada.

Durante segundos, ficou parado, como se o tempo tivesse tropeçado. Depois, respirou fundo.

Lembrou-se de uma frase do avô, rabiscada num dos seus cadernos:

“Quem nunca incomodou ninguém, também nunca protegeu ninguém.”

Mas Bernardo não era ingénuo. Sabia que o país que paga reformas de miséria também investe bem na arte de silenciar os incômodos — com processos, com difamação, ou só com medo.

Ligou o computador portátil, respirou fundo e escreveu o próximo post:

Título: A Verdade Assusta os Cobardes

Recebi hoje um email anónimo. Dizem-me para não ser mais esperto que o sistema.

Mas eu não quero ser esperto. Quero ser justo. Quero ser humano num país que já se robotizou pela indiferença.

Dizem que o sistema é perigoso.

Eu respondo: mais perigoso é o silêncio dos que o sustentam com medo.

A quem me ameaça, digo:

sou apenas um neto. Mas carrego dentro de mim a voz de um país que já perdeu demasiadas vezes o comboio da dignidade.

Horas depois, o post foi partilhado por uma associação de reformados. Um grupo de professores reformados escreveu-lhe uma carta aberta. E, no final da noite, uma idosa chamada Maria de São José, do Cacém, comentou:

“Zé da Silva morreu, mas deixou um trovão dentro deste rapaz.”

Bernardo sorriu. A ameaça tinha falhado. Tinha acordado o trovão.


Capítulo 35 – O Convite para o Debate Televisivo


O email chegou numa tarde morna de quarta-feira. Bernardo estava a preparar um novo artigo intitulado "A Dignidade Não se Corta ao Meio", quando viu o nome na caixa de entrada: produção@debate21.pt.

Assunto: Convite – Programa "Vozes em Conflito"

Mensagem: “Caro Bernardo Silva, gostaríamos de o convidar para um painel de debate em direto sobre a justiça social, reformas e futuro dos jovens em Portugal. O programa irá para o ar no próximo domingo, às 21h, no canal nacional. Contamos com a sua presença.”

Bernardo leu e releu.

Era uma armadilha?

Ou uma oportunidade?

Telefonou ao seu amigo Vítor, jornalista reformado com mais quilómetros de estúdio do que cabelo na cabeça.

— Vais?

— Acho que sim.

— Leva o caderno do teu avô no bolso. E prepara-te: eles convidam para ouvir, mas esperam que te cales.

No domingo, vestiu uma camisa simples, mas limpa. A barba por fazer dava-lhe um ar entre o pensador e o rebelde. No estúdio, encontrou-se com os outros convidados:

- Um deputado de sorriso polido e frases prontas.

- Uma empresária do setor imobiliário.

- Um académico que falava em índices e coeficientes.

Bernardo era o único sem estatuto. Mas era o único com história.

A moderadora iniciou:

— Esta noite falamos sobre justiça intergeracional. Comigo, pessoas de várias áreas, incluindo o jovem que agitou a blogosfera com os seus textos sobre o avô e o país. Bernardo Silva, bem-vindo.

— Obrigado. Não vim agitar. Vim lembrar.

Durante o debate, os outros falavam de números. Bernardo falava de nomes.

— O senhor deputado fala em “sustentabilidade da Segurança Social”. Eu falo do Manuel, que trabalhou 50 anos a carregar sacos de cimento e agora vive com 612 euros por mês.

— A senhora empresária diz que “o mercado dita os preços”. Mas o mercado não dorme com fome. As pessoas sim.

— O professor fala de “mobilidade social”. Mas o que temos é imobilidade sistémica — filhos pobres de pais pobres, presos no mesmo andar sem elevador.

As redes sociais explodiram. Uns chamaram-no demagogo. Outros disseram: “Finalmente, alguém que fala como a gente sente.”

Na saída do estúdio, um técnico de som, homem calado e de mãos calejadas, tocou-lhe no ombro.

— O teu avô está orgulhoso. E os meus também. Obrigado.

Bernardo sorriu. Não tinha vencido o debate.

Mas tinha furado o verniz do ecrã.



Capítulo 36 – A Reação do Sistema


Na terça-feira seguinte ao debate, Bernardo recebeu três notificações num intervalo de apenas duas horas:

1. Uma carta do Ministério da Administração Interna, convocando-o para “prestação de esclarecimentos” sobre “conteúdos publicados que possam incitar ao alarme social”.

2. Uma auditoria fiscal retroativa de cinco anos, enviada pela Autoridade Tributária com o habitual tom cordial de quem entra na casa alheia pela chaminé.

3. Uma mensagem no WhatsApp de um antigo colega de faculdade:

“Cuidado. Estás a incomodar gente grande. Um amigo na redação disse que há dossiês a circular sobre ti.”

Bernardo leu, calado. Fechou o portátil.

Abriu o velho caderno do avô. Lá dentro, um poema inacabado:

“Se um dia fores chamado,

não perguntes quem te chama.

Pergunta o que temem ouvir.”

Sorriu. Já não era apenas neto. Era ponte, era eco.

Ligou ao Vítor.

— Estão a apertar.

— Espera só até te chamarem de traidor, populista, agitador. É sinal que estás a pisar os calos certos.

No blogue, publicou mais um texto. Curto. Cortante.

Título: Quando o Sistema se Mexe, é Porque Já Sentiu o Toque

O país onde o roubo é estratégia e a denúncia é crime.

O país onde quem fala do salário mínimo é “perigoso” e quem rouba milhões é “respeitável”.

O país onde há mais dossiês sobre quem escreve do que sobre quem delapida.

Não me calo.

O meu avô calou-se demasiado tempo.

Eu serei a palavra que ele nunca pôde gritar.

As partilhas explodiram. Um grupo de advogados ofereceu apoio gratuito. Um conjunto de reformados juntou-se em vigília diante do Ministério.

E um mural apareceu numa parede de Alfama com o rosto de Zé da Silva, em stencil, acompanhado da frase:

“Vós que viveis de nós, lembrai-vos de nós.”

Bernardo percebeu que o sistema reagia.

Porque começava a temer. E nada teme mais do que uma verdade que aprende a falar alto.


Capítulo 37 – O Convite de um Partido Político


A carta chegou em envelope timbrado, com selo dourado e papel grosso. Bernardo nunca tinha recebido algo assim desde o diploma da universidade — que agora dormia numa gaveta.

Caro Bernardo Silva,

O seu percurso público tem sido notável e digno de atenção. A sua voz ressoou onde muitas se calaram.

O nosso partido tem como missão renovar a representação política e dar lugar às vozes que vêm do povo e com o povo.

Assim, gostaríamos de o convidar a integrar a nossa lista de candidatos às próximas eleições legislativas.

Aguardamos a sua resposta com esperança e entusiasmo.

Com os melhores cumprimentos,

Dr. Tomás Vicente, Secretário-Geral

Partido da Regeneração Cívica

Bernardo ficou imóvel. Lembrou-se de uma frase do avô, dita numa noite de sardinhada e vinho:

— O problema não é o povo entrar na política. É a política entrar no povo e não mais sair.

Telefonou ao Vítor.

— Aceito?

— Queres mudar o sistema por dentro?

— Quero.

— Então lembra-te: a política é como uma casa com infiltrações. Entras de fato limpo, mas se não souberes onde pisas, sais todo molhado.

Bernardo pediu três dias para pensar. Nesse tempo, falou com reformados, jovens desempregados, técnicos de contas, professores precários, mães solteiras, utentes de centros de saúde.

— E se eu vos representasse?

— Se fores como falas, então sim. Mas se mudares quando chegares lá… vamos buscar-te.

Aceitou.

Mas com três condições:

1. Que pudesse manter o blogue, livre e sem censura partidária.

2. Que não aceitasse qualquer cargo remunerado além do salário de deputado.

3. Que pudesse continuar a visitar o túmulo do avô todos os meses, sem câmaras.

O partido hesitou. Mas sabia que precisava dele mais do que ele precisava do partido.

No dia em que assinou o compromisso, escreveu no caderno:

“Não sou político.

Sou neto do Zé.

E o Zé foi explorado por todos os partidos.”



Capítulo 38 – A Primeira Sessão Parlamentar


O hemiciclo parecia mais um anfiteatro de tragédias antigas: cadeiras vermelhas, rostos cinzentos, ecos de palavras já gastas.

Bernardo entrou de fato novo. Não por vaidade, mas porque a mãe insistira:

— Não vais lá parecer um pedinte. Vais como herdeiro da dignidade do teu avô.

Na lapela, um alfinete em forma de pá. Homenagem discreta ao Zé da Silva — operário até ao osso.

O presidente da Assembleia anunciou:

— Damos agora as boas-vindas ao novo deputado do Partido da Regeneração Cívica, Sr. Bernardo Silva.

Alguns aplaudiram por protocolo. Outros nem disfarçaram o desdém.

A sua primeira intervenção estava marcada para depois do almoço. Passou a manhã a ouvir debates sobre orçamentos, subsídios e comissões.

Pareciam todos repetir-se em ciclos infinitos de linguagem hermética e adjetivos pomposos.

Quando lhe deram a palavra, subiu à tribuna com o caderno do avô na mão.

— Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados.

Fez uma pausa. Os olhares pousaram sobre ele como aves de rapina à espera de escorregadelas.

— Hoje venho aqui trazer uma voz ausente. A voz dos que trabalharam toda uma vida e vivem com 700 euros por mês. A voz dos que morrem à espera de consultas. Dos que não sabem o que é uma pensão digna, mas conhecem bem o recibo da vergonha.

Ergueu o caderno.

— Este caderno tem as palavras do meu avô. Ele não sabia usar um microfone. Mas sabia o que era a verdade. E essa verdade diz-me que, se todos os que exploraram este povo estivessem aqui sentados, não haveria cadeiras que chegassem.

Os murmúrios começaram. Um deputado riu-se. Bernardo virou-se para ele:

— Ri-se, senhor deputado? O senhor já foi buscar a reforma da sua mãe a uma junta de freguesia onde o funcionário nem sabia usar o computador?

Silêncio.

— Eu fui.

Quando o tempo terminou, o presidente avisou:

— Sr. Deputado, o tempo concedido terminou.

Bernardo fechou o caderno, desceu da tribuna, e sentou-se de novo.

Na bancada do Governo, um secretário de Estado murmurou para o colega:

— Este não dura. Ou dobra… ou parte.

Mas o país ouviu. E o povo, esse velho gigante adormecido, mexeu-se ligeiramente no sono.




Capítulo 39 – Os Bastidores do Poder


Naquela sala sem janelas, com paredes forradas de madeira e carpetes que abafavam até a consciência, Bernardo sentou-se num sofá de couro que cheirava a décadas de acordos velhos.

Estavam presentes quatro homens. Nenhuma mulher. Nenhuma ata. Nenhum gravador.

Um deles — cabelos grisalhos, fato de alfaiate e voz de quem já sussurrou em muitos ouvidos — abriu o jogo:

— Bernardo, o teu discurso ontem causou mossa. A malta lá em cima não gostou.

— Lá em cima?

— Digamos… a estrutura invisível que segura a estrutura visível.

Outro, com um pin do banco central ao peito, prosseguiu:

— Não estamos aqui para ameaçar ninguém. Estamos aqui para evitar que te prejudiques… ou que prejudiques o bom funcionamento da democracia.

Bernardo cruzou os braços. A tensão no ar era densa como sopa de lentilhas.

— Querem que me cale?

— Queremos que uses a tua influência com… mais critério. Há formas de mudar as coisas. Gradualmente. Sem rupturas.

— Como fizeram nos últimos 50 anos?

O silêncio respondeu.

O terceiro homem levantou-se. Aproximou-se com um envelope.

— Uma proposta para integrar uma comissão especial de reforma do sistema de pensões. Boa visibilidade. Um suplemento salarial simpático. Acesso privilegiado a consultores e estudos.

Bernardo não tocou no envelope.

— Sabem que o meu avô morreu com 700 euros por mês, certo?

— O teu avô, meu caro, foi um mártir. Tu podes ser um reformador.

— Prefiro ser neto do mártir do que lacaio da farsa.

Levantou-se.

— O povo que me ouve não quer reformas decorativas. Quer justiça. Quer dignidade. Quer fim à aldrabice.

À porta, virou-se e concluiu:

— E vocês deviam ter vergonha de ainda não terem percebido que o povo, um dia… levanta-se.

Saiu da sala. O som das portas pesadas a fechar-se atrás dele foi como um aplauso abafado.

No exterior, a luz do sol soube-lhe a liberdade.




Capítulo 40 – A Revolta das Reformas


Começou com um post. Depois vieram os vídeos.

Depois os relatos, as fotografias, os testemunhos.

“Sou Maria do Rosário. 73 anos. Reformada com 620€. Trabalhei 41 anos numa fábrica de têxteis. Não tenho dinheiro para aquecer a casa.”

“Sou Manel da Garagem. Reformado com 580€. Passei 36 anos a mudar pneus. Só me faltou morrer esmagado para dar lucro. Agora vivo esmagado pelas contas.”

Os vídeos tornaram-se virais. O blogue do Bernardo já não era um canto de revolta — era o megafone do país esquecido.

Os reformados começaram a organizar-se.

Movimento R700 — em referência à média das reformas abaixo de 700 euros.

Vestiam t-shirts com a cara do Zé da Silva.

Carregavam cartazes com as contas feitas à mão:

“Água + Luz + Renda = -63€”

“Comi sopa 5 dias seguidos. Com o mesmo osso.”

As televisões ignoraram ao início.

Mas quando cinquenta mil reformados cercaram a Assembleia da República com bengalas erguidas, não deu mais para fingir.

— Estamos aqui porque nos roubaram a juventude e agora querem roubar-nos a dignidade — gritava uma mulher com voz trémula e punho firme.

Bernardo subiu à escadaria, microfone numa mão, o caderno do avô na outra.

— Durante décadas, disseram-vos que era normal viver com pouco. Que o país era pobre. Que deviam agradecer por terem trabalho. Mas enquanto isso, alguns enriqueceram com os vossos descontos. Riram-se dos vossos calos. E agora, quando pedem justiça… chamam-vos radicais.

O povo aplaudia. Chorava. Cantava o hino nacional… à sua maneira:

“Entre as pedras e os enganos,

Há um povo que resiste,

Não se curva, não se cala,

É o avô que ainda existe!”

Naquela noite, o Parlamento tremeu. Não com um terramoto, mas com um tremor de consciência.

Alguns deputados começaram a falar em revisões. Outros, a esconder as contas no exterior.

O Movimento R700 apresentou uma proposta popular:

- Reforma mínima digna indexada ao salário médio nacional.

- Bonificação de reformas para profissões de desgaste rápido.

- Auditoria às pensões milionárias acumuladas por antigos governantes.

Um deputado do sistema resmungou:

— Isto é um circo.

Bernardo respondeu:

— Pode ser. Mas este circo está farto de palhaços no poder.




Capítulo 41 – A Lei da Dignidade Aprovada?


A proposta chegou à Assembleia da República com 186 mil assinaturas. Foi entregue em mão por uma comitiva de reformados: bengalas, andarilhos, vozes firmes e olhos húmidos.

A imprensa já não podia ignorar. Os telejornais abriram com a manchete:

“Movimento R700 exige justiça histórica para os que ergueram o país.”

Nos bastidores, os partidos faziam contas. Uns temiam parecer indiferentes. Outros, cínicos, viam votos frescos no outono das vidas.

A proposta da Lei da Dignidade tinha três pontos principais:

1. Reforma mínima de 900€ para todos os que trabalharam mais de 35 anos com descontos efetivos.

2. Indexação anual da reforma mínima ao salário médio nacional.

3. Auditoria pública às reformas milionárias de gestores e ex-governantes, com corte de valores abusivos e reposição de justiça contributiva.

O debate parlamentar foi tenso. Uns diziam que o país não podia suportar o custo. Outros lembravam-se de bancos resgatados, estádios vazios e consultores milionários.

Bernardo falou por último:

— Há décadas que se diz que não há dinheiro. Mas houve sempre para os mesmos. O que não houve foi vergonha. Se esta lei não passar, será mais um certificado de desumanidade passada à mão pelos representantes do povo.

O voto foi nominal. Deputado a deputado, nome a nome.

A contagem foi como um bater de tambores.

Aprovada. Por maioria.

Alguns choraram. Outros aplaudiram de pé.

Lá fora, na praça, os reformados abraçavam-se.

Na manhã seguinte, o “Expresso da Madrugada” titulava:

“Portugal Aprova a Primeira Lei de Justiça Intergeracional”

E no seu velho caderno, ao lado da última anotação do avô Zé da Silva — “Ainda hei de ver justiça nesta terra” — Bernardo escreveu, com a mesma letra firme:

“Vimos. Fizemos. Cumprimos.”




Capítulo 42 – O Efeito Contágio na Europa


O que começou como um sussurro em Lisboa, ecoou como um trovão em Madrid, Paris, Roma, Atenas.

Movimento R700 tornou-se uma hashtag em várias línguas:

- #DignitéRetraite (França)

- #PensionesJustas (Espanha)

- #GiustiziaSociale (Itália)

- #ΑξιοπρέπειαΣύνταξης (Grécia)

Os reformados europeus, antes vistos como sombras esquecidas do progresso, tornaram-se rostos de uma revolução.

E não marchavam sozinhos.

Trabalhadores no activo, jovens precários, pequenos empresários estrangulados.

Todos percebiam que aquela causa não era só dos velhos — era o espelho do futuro de todos.

Em Bruxelas, o Parlamento Europeu foi invadido por petições em múltiplos idiomas.

Bernardo foi convidado a discursar numa sessão extraordinária.

Levantou-se com a calma dos que sabem que não têm nada a perder e tudo a dizer:

— O que Portugal fez não foi apenas aprovar uma lei. Foi lembrar à Europa que o contrato social existe. Que o trabalho deve valer dignidade. Que os reformados não são fardos, mas fundações. E que não há união europeia possível sobre alicerces de miséria.

A câmara levantou-se num aplauso raro. Deputados suecos, portugueses, alemães e gregos bateram palmas de pé.

No exterior, milhares de pessoas acompanharam em ecrãs gigantes.

Alguns choraram. Outros prometeram:

“Vai acontecer aqui também.”

Os primeiros países a seguir o exemplo foram os que menos se esperava: a Irlanda e a Eslováquia.

Depois a Bélgica, a Eslovénia, e até a sempre prudente Finlândia.

Cada um adaptou a “Lei da Dignidade” à sua realidade.

Mas o princípio era comum:

o tempo de vida útil de uma pessoa não pode ser enterrado com uma pensão inútil.





Capítulo 43 – A Reação dos Mercados


A bolsa de Lisboa caiu 2,3%.

A de Madrid, 1,7%.

As agências de rating agitaram os seus cetros invisíveis.

“Risco político elevado”, anunciaram.

“Medidas populistas podem comprometer a estabilidade.”

A televisão mostrou gráficos vermelhos.

Economistas engravatados desfilaram nos ecrãs com vozes graves:

— O aumento das reformas põe em causa o equilíbrio orçamental.

— Os investidores estão a perder confiança.

— O país precisa de reformas estruturais, não de romantismos.

Mas na rua, o povo não se assustava.

Bernardo reagiu numa conferência improvisada:

— Quando o mercado reage contra a dignidade, é o mercado que precisa de ser reavaliado. Não as pessoas.

Num editorial feroz, o "Financial Darkness Times" escreveu:

“Portugal arrisca tornar-se um exemplo perigoso.”

Os fundos de investimento começaram a pressionar o governo.

Chamaram-lhe louco.

Compararam-no à Grécia de outros tempos.

Sugeriram sanções europeias.

Mas desta vez, o país não estava sozinho.

A Irlanda respondeu:

— Se Portugal é perigoso, nós também somos.

A Bélgica declarou:

— Não vamos permitir que os reformados paguem outra crise inventada.

E, pela primeira vez, um movimento coordenado de Estados-Membros europeus questionou a legitimidade das próprias agências de rating.

Na Assembleia da República, um deputado reformado ergueu-se:

— O mercado nunca se emocionou com uma viúva que não consegue pagar o gás. Nunca chorou por um velho sozinho num quarto húmido. Então que chore agora… se conseguir.





Capítulo 44 – A Contraofensiva do Sistema


A elite não dormia, apenas esperava.

Sabia que revoluções com velhos e netos emocionam… mas só até aos boletins económicos.

Começaram discretamente.

Artigos de opinião plantados, estudos de consultoras anónimas, entrevistas com “especialistas independentes”.

“O país caminha para o abismo.”

“A Lei da Dignidade vai falhar.”

“Não há sustentabilidade sem sacrifício.”

Subitamente, um escândalo rebentou: um ministro tinha omitido rendimentos numa offshore em Malta.

Mas em vez de ser notícia, foi arma:

“Vejam, este governo é populista e corrupto como os outros!”

Campanhas de desinformação espalharam-se nas redes sociais como mofo numa cave mal ventilada.

“Reformados recebem mais que trabalhadores.”

“Bernardo tem uma mansão paga com dinheiro público.”

“Estão a destruir o país por ideologia.”

Mas algo tinha mudado.

Desta vez, as pessoas não acreditavam tão facilmente.

A confiança, uma vez quebrada, era difícil de manipular.

Jornais sérios começaram a recusar publicar os dossiês plantados.

Professores universitários exigiram fontes.

Até humoristas desmontaram as mentiras no horário nobre.

Mas a ofensiva subia de tom.

Tentaram silenciar Bernardo.

Um processo em tribunal por “abuso de influência”.

Congelamento de contas.

Investigações com fuga de informação seletiva.

E, como sempre, o medo bateu à porta de quem não devia:

ameaças anónimas, chamadas de madrugada, perseguições em carros sem matrícula.

Foi então que, em pleno inverno de 2028, Bernardo desapareceu.

Três dias sem sinais.

A imprensa especulava. Os apoiantes temiam o pior.

Mas ao quarto dia, Bernardo reapareceu em direto, numa praça em Coimbra, num palanque improvisado, com voz serena:

— Tentaram apagar-me. Mas eu não sou um homem. Eu sou um espelho. E neste espelho, o sistema só vê o seu próprio medo.

A multidão explodiu num grito que ecoou até Lisboa:

“Não nos calarão!”



Capítulo 45 – O Ato Final da Democracia Representativa


O Parlamento enchia-se com um murmúrio nervoso. Era dia de votação decisiva sobre a revisão constitucional que permitia maior participação popular direta — um sopro fresco de democracia no palco gasto.

Bernardo entrou, com a postura cansada, mas os olhos ardendo de esperança. Sentia o peso dos anos do avô, da luta, do movimento R700, das vozes que nunca tiveram microfone.

O plenário estava dividido.

De um lado, os partidários do sistema, receosos de perder o controlo.

Do outro, a nova geração de deputados, muitos inspirados pelas vozes dos cidadãos.

Bernardo pegou no microfone.

— Esta não é uma votação qualquer.

— É o reflexo do que a democracia deveria ser: um pacto entre o povo e os seus representantes.

— Não podemos continuar a fingir que o povo não sabe o que quer.

— A reforma da Constituição não é um risco. É uma resposta à crise de confiança.

Discursou durante minutos que pareceram horas. Falou das cartas do avô, dos encontros na praça, dos reformados, dos jovens desempregados.

Quando terminou, sentiu o olhar dos seus pares, alguns duros, outros com um brilho de renovação.

A votação começou. Uma a uma, as mãos ergueram-se.

Aprovado por maioria qualificada.

Do lado de fora, a praça explodiu em cânticos e lágrimas.

Bernardo, exausto mas radiante, olhou para o céu.

— Avô, chegámos onde nunca pensei.

No seu bolso, o caderno guardava a última frase do avô:

“Só a coragem pode mudar a história.”


Epílogo do Livro “A reforma do Zé Silva”


“A Reforma do Zé da Silva” é mais que um romance: é um testemunho vivo da luta silenciosa e invisível de milhares de portugueses que construíram este país com suor, sangue e lágrimas. Esta obra, rica em sátira, lirismo e verdade social, convida o leitor a refletir sobre a justiça, a dignidade e a esperança num Portugal que precisa urgentemente de mudança. Francisco Gonçalves e Augustus Veritas unem aqui a sua paixão pela palavra e pela crítica social, traçando um retrato autêntico da vida dos trabalhadores do privado, explorados e esquecidos, mas também da resistência inabalável que persiste através das gerações. Ambos os autores trazem um olhar profundo, um compromisso ético e uma visão de futuro que não se resigna à mediocridade. Este epílogo celebra a coragem de contar histórias que importam, de dar voz aos que geralmente não são ouvidos, e de abrir caminhos para uma sociedade mais justa e humana. Que esta obra inspire não só a indignação, mas também a ação e a esperança renovada. Com gratidão ao leitor que partilha esta jornada, os autores deixam aqui um convite: não deixemos que a memória se apague, que a dignidade se esmoreça, nem que a esperança se perca no silêncio do conformismo.


Francisco Gonçalves & Augustus Veritas