INTRUDUÇÃO
📘 Resumo do Livro: Crónicas da Ilusão Nacional
Autor: Francisco Gonçalves
Crónicas da Ilusão Nacional é uma obra que rasga o silêncio da complacência com palavras afiadas e alma crítica. Composta por dezoito capítulos/crónicas, este livro denuncia com lucidez, lirismo e coragem as várias máscaras que Portugal veste — e os abismos que esconde por detrás delas.
Cada crónica é uma lente sobre uma fratura nacional: 🔸 A justiça que protege os poderosos. 🔸 A educação de fachada, onde diplomas valem mais do que saber. 🔸 Um SNS exausto, onde se espera mais do que se cura. 🔸 A habitação como luxo, enquanto o povo é despejado da sua própria terra. 🔸 A política refém de partidos zombis, que servem carreiras e não causas. 🔸 E uma democracia que se tornou ritual vazio, onde o povo vota, mas o poder já está escolhido.
Entre o lamento e o apelo, o sarcasmo e a esperança, a obra constrói um retrato impiedoso, mas profundamente humano, de um país que vive entre a ilusão do progresso e a realidade do abandono. É um livro para quem recusa o conformismo, para quem ainda acredita na força da palavra e na urgência da mudança.
Francisco Gonçalves escreve com a raiva serena dos que amam a terra que criticam — e transforma cada página numa janela aberta ao pensamento livre.
Este não é um livro para entreter. É um livro para despertar.
Portugal é um pobre que sonha com Versace, um pequeno senhorio falido que insiste em dar festas no terraço. Vive entre ruínas douradas, convencido de que um bom discurso e um fundo europeu bastam para maquilhar a decadência. E enquanto os telhados caem, pendura-se uma bandeira lavada na janela — para que Bruxelas veja que somos um país asseado. A cada crise — e já são tantas que perdemos a conta — Portugal responde com planos de resiliência, bazucas orçamentais, visões estratégicas para 2030, 2040 ou 2100. Mas no chão, onde a vida acontece, há filas para a sopa, professores em burnout, médicos em fuga e jovens a quem se promete futuro, desde que o procurem em Berlim ou Lausanne. A última ilusão chega com fanfarra: 10 mil milhões de euros para apoiar exportações. Mas será isto visão ou apenas vertigem? Quem somos nós para prometer tanto, se o que temos não passa de dívida reciclada, economia subsidiada e esperança precarizada? O comissário europeu lança o aviso: “cautela, senhores... há défice, há dívida, há riscos”. Mas por cá, os ministros preferem sorrisos, comunicados e powerpoints com bandeiras. A verdade? Portugal é como um mágico de feira: enquanto distrai com um coelho no chapéu, esconde que já não há pão para a marmita. Tudo em nome de uma dignidade artificial — um teatro nacional que representa a prosperidade com cenários de cartão. O povo, esse, aplaude cansado ou vira a cara, descrente. Porque já viu este número antes. Já ouviu promessas com música de fundo e luzes em palco. Mas quando as luzes se apagam, fica só a voz do estômago a lembrar que o milagre ainda não chegou. Portugal não precisa de mais milhões. Precisa de coragem para mudar o enredo.
Portugal, outrora país de navegadores, transformou-se em país de garçons. Trocaram-se as caravelas por tuk-tuks, os descobrimentos por “experiências autênticas para turistas exigentes” e o mar por rooftops com vista instagramável. A pátria que cantava epopeias agora serve brunch ao som de fado diluído em Lo-Fi. A economia vibra com cada novo recorde de visitantes. Celebram-se estatísticas como se fossem glórias. “Estamos no top 5 da Europa!”, gritam os ministros, enquanto o interior arde em silêncio, sem médicos, sem escolas e sem comboios. Lisboa, Porto e o Algarve tornaram-se montras brilhantes — mas por trás do vidro, mora um país esvaziado, gentrificado, empobrecido de espírito e de identidade. Transformámos o país numa loja de souvenirs com bandeirinhas e sardinhas em lata. Vende-se tudo: paisagem, património, memória. A alma do país foi empacotada em pacotes “all inclusive”, onde até a saudade virou slogan publicitário. E o povo? Sorri para os turistas, mas chora no fim do mês, com rendas que não pode pagar e contratos a prazo de três em três meses. Os sucessivos governos, em vez de construir uma economia produtiva, criaram uma economia dependente. Dependente de voos low-cost, de agências de rating e de turistas em busca de sol e vinho barato. Não há investimento sério em tecnologia, nem em ciência, nem em indústria estratégica. Apenas cosmética urbana e política de selfie. A tragédia é esta: um país que se orgulha de receber o mundo, mas já não consegue acolher o seu próprio povo. Portugal não pode viver eternamente como anfitrião. Precisa de se reencontrar como criador. Como inovador. Como construtor de futuro. O turismo pode ser um pilar — mas não pode ser o teto.
Em Portugal, a escola já não é um templo de saber — é um posto de passagem para a estatística europeia. O importante não é formar cidadãos pensantes, mas mostrar números redondos em Bruxelas. A meta não é o conhecimento, mas o certificado. E assim, criámos um sistema onde todos passam… mas poucos aprendem. Multiplicam-se universidades como cogumelos em pasto húmido, cheias de cursos com nomes sonantes e planos de estudos leves como algodão-doce. Os alunos saem com diplomas reluzentes e expectativas irreais, prontos para um mercado de trabalho que não os quer, nem precisa deles. É a geração “licenciada em tudo, especializada em nada, pronta para tudo… menos para viver com dignidade”. Os professores, esses resistentes da linha da frente, tentam ensinar entre greves, cansaço, burocracia kafkiana e salas sobrelotadas. Muitos vivem esmagados por horários repartidos, deslocações infindáveis e uma profissão transformada em sacrifício. E o Estado? Fecha os olhos e aponta para os rankings: “estamos a melhorar”. Mas melhorar o quê, exatamente? Os alunos não sabem pensar criticamente. Repetem. Decoram. Desistem. A escola ensina a obedecer, não a questionar. Ensina a competir, não a cooperar. Ensina a fingir que se sabe, para obter uma nota que se esquece logo depois. E depois? Depois há filas para o desemprego ou estágios não remunerados em nome de uma promessa que nunca chega. Criámos um sistema onde a aparência de sucesso vale mais do que o sucesso real. Onde o saber é medido em créditos ECTS e não em capacidade de transformar o mundo. Onde a escola se tornou palco de uma farsa nacional: a da ilusão do progresso. E no entanto, a verdadeira educação — aquela que desperta, emancipa e transforma — continua adiada, adormecida, esquecida num canto qualquer da república. Porque essa educação assusta. Faz pensar. E quem pensa… não se deixa governar com migalhas.
Dizem que a Justiça é cega. Em Portugal, além de cega, parece míope, surda e preguiçosa. Move-se devagar como tartaruga ferida, mas sabe correr quando o arguido é pobre ou incómodo. Quando o réu tem gravata de marca e contactos no ministério certo, a Justiça hesita, adia, arquiva. No fim, não se faz justiça — faz-se teatro. Processos que duram décadas. Crimes económicos que prescrevem com uma pontualidade de escárnio. Juízes que parecem fantasmas, pairando entre volumes e códigos, mas ausentes da realidade concreta. E uma linguagem hermética, cheia de latim e artifício, como se a justiça fosse um feudo reservado a iniciados e não um direito universal. A corrupção? É investigada… até certo ponto. Aponta-se o dedo ao banqueiro, ao autarca, ao ministro — mas o espetáculo é cuidadosamente coreografado. Há escutas, buscas, manchetes. Depois há silêncio. Arquivamentos. Acordos de pagamento simbólicos. E o povo, cansado, já nem se indigna. Apenas murmura: “são todos iguais”. A justiça popular — a que nasce do senso comum e da ética simples — foi substituída por uma justiça de aparências, onde os grandes nunca caem e os pequenos nem têm tempo de se levantar. Os tribunais deviam ser templos de equidade. São, muitas vezes, corredores de espera e desilusão. E a democracia, já frágil, fende-se um pouco mais a cada absolvição com cheiro a impunidade. Portugal não será um país justo enquanto a justiça for um privilégio dos poderosos e um labirinto para os outros. A confiança quebra-se. A república fragiliza-se. E a esperança esvai-se.
Portugal gosta de repetir: “Temos um Serviço Nacional de Saúde que é dos melhores do mundo.” Mas a frase, já gasta de tanto uso, ecoa como um sussurro nervoso numa sala de espera sem fim. Porque a verdade, como um paciente sem ficha, bate à porta… e não é atendida. O SNS está exausto. Não é de agora. São décadas de cortes, promessas, reformas inacabadas e gestores que tratam hospitais como empresas falidas. Médicos fogem, enfermeiros emigram, técnicos desistem. Quem fica, sobrevive a turnos brutais, salários indignos e estruturas a cair de podres. E mesmo assim, salvam vidas — com as unhas, com o coração, com aquilo que o Estado já não dá. Nas urgências, o tempo estende-se como um castigo. As listas de espera para uma cirurgia ou consulta tornam-se eternas. E a saúde mental, essa irmã invisível da dor, é relegada para o fim da fila — quando tem fila. Quem tem dinheiro, foge para o privado. Quem não tem, reza. Portugal criou um sistema de duas velocidades: o cidadão premium, com seguro e rede, e o cidadão de segunda, que espera, adia, adoece. Tudo isto num país onde se paga impostos como se o serviço funcionasse — mas depois ele não vem. E os ministros? Aparecem nas inaugurações de alas que já existiam. Prometem “reorganizações”, “novos planos de investimento” e “reforço de meios”. Mas a verdade está no corredor: cadeiras de plástico, paredes manchadas, profissionais ao limite. O corpo do SNS está ferido. E a alma? Quase sem pulso. A saúde não pode ser um luxo. Nem um campo de batalha ideológica. É um direito. Um espelho da dignidade nacional. E neste espelho, Portugal vê-se doente. Mas continua a fingir que sorri.
Portugal é um país onde a realidade tem de preencher formulário. Tudo exige um papel, uma assinatura, uma senha, um comprovativo, uma “declaração sob compromisso de honra” para respirar. Aqui, a burocracia não é um meio — é um fim em si mesma. Um ritual sagrado onde se prova o absurdo com selo oficial. Do agricultor ao microempresário, do doente ao estudante, todos se curvam perante o altar do Estado-administrador. Num país pequeno, fizemos da papelada um labirinto infinito. E em vez de simplificar, digitalizámos a confusão. Agora, além de carimbos, há passwords, portais e códigos que expiram em cinco minutos. Quem quer empreender, tem de provar que existe, depois provar que é sério, depois provar que quer mesmo trabalhar. E depois... espera. Sempre espera. Porque o processo está “em análise”, “em fase de decisão”, “aguarda deferimento”, “foi reenviado para a entidade competente”. A burocracia portuguesa não serve o cidadão — serve-se dele. Alimenta-se do tempo dos outros, suga energia e esperança, e empurra as pessoas para a desistência. No fundo, é um sistema que premia quem não faz ondas. Quem não insiste. Quem aceita o “é assim” como dogma nacional. E no topo, há sempre um responsável que não está. Um cargo vago. Um telefone que toca sem resposta. Um e-mail automático que promete retorno “o mais breve possível”. Mas o possível, por cá, é uma eternidade. Enquanto o mundo avança, nós carimbamos. Enquanto outros criam, nós arquivamos. Enquanto o futuro chama, nós pedimos cópia autenticada. Portugal não se atrasa por falta de talento. Atrasa-se porque quem quer fazer… tropeça num despacho.
Em Portugal, os partidos políticos são como fantasmas bem vestidos: têm siglas, têm tempos de antena, têm sedes com bandeiras — mas já não têm alma. Vagueiam pelo Parlamento como mortos-vivos ideológicos, repetindo slogans como mantras gastos, enquanto fingem que representam o povo. Mas o povo já não está lá. Foi embora, descrente. A política nacional tornou-se um jogo de aparências, onde o objetivo é manter o lugar, não transformar o país. Os partidos já não disputam visões do mundo. Disputam cargos, comissões, soundbites. E quando falam ao povo, falam como quem fala a um cliente cansado, oferecendo sempre o mesmo produto com embalagem nova. As juventudes partidárias são escolas de oportunismo. A militância é treino para o tacho. E as ideologias? Essas foram enterradas algures entre os anos 80 e a troika. O que sobrou é uma sopa morna de centro, onde ninguém quer arriscar, ninguém quer mudar, ninguém quer perder privilégios. A oposição, em vez de ser farol, limita-se a reagir. O governo, em vez de liderar, gere silêncios e escândalos com eficácia anestésica. Os debates tornaram-se teatrais. As propostas, cosméticas. As reformas, eternamente prometidas. E os partidos zombis alimentam-se de um sistema eleitoral que perpetua a mediocridade. Entram pelo voto útil, mantêm-se pela abstenção, sobrevivem pela inércia. São corpos sem espírito, instituições sem povo. A democracia continua… mas só no papel. No coração do cidadão comum, reina a apatia, a raiva contida, ou o riso nervoso de quem já não leva nada a sério. Portugal não precisa de mais partidos. Precisa de ideias com coragem. De líderes que não queiram apenas um lugar na bancada, mas um lugar na história. Precisa de uma política que deixe de ser carreira e volte a ser missão.
Era uma vez um país onde ter casa era um direito. Hoje, em Portugal, é quase uma lotaria. Os preços sobem como balões de festa, mas ninguém celebra. A habitação deixou de ser abrigo para se tornar investimento, objeto de especulação, moeda de troca entre fundos, bancos e plataformas de arrendamento turístico. As cidades expulsaram os seus habitantes. Lisboa e Porto já não pertencem a quem lá nasceu. Os centros urbanos tornaram-se montras para turistas e investidores estrangeiros, enquanto as famílias portuguesas são empurradas para a periferia — ou para a rua. O lar, outrora espaço sagrado, virou refém do mercado. Os salários não acompanham, os apoios são migalhas e as promessas políticas repetem-se em eco: “Mais habitação!”, “Rendas acessíveis!”, “Construção pública!”. Mas enquanto os discursos se multiplicam, os estaleiros continuam vazios. A juventude desespera. Trabalha, estuda, tenta. E no fim, partilha casa aos 35 ou volta ao quarto da infância. Os idosos vivem com pensões que mal cobrem as contas, quanto mais uma renda em bairro decente. A classe média, essa ilusão cada vez mais frágil, vê-se a negociar com bancos condições cada vez mais rígidas, enquanto o crédito habitação se transforma numa prisão a 40 anos. E o Estado? Muitas vezes é cúmplice. Vende terrenos, flexibiliza regras, favorece os grandes em detrimento dos muitos. Fala de dignidade, mas escreve decretos que a ignoram. A crise da habitação é a vergonha moderna de um país velho. Um país onde se investe mais em património para fotografar do que em casas para viver. Onde se fala de “requalificação” quando se quer dizer “expulsão”. Ter um lar devia ser ponto de partida. Em Portugal, tornou-se linha de chegada — e nem todos conseguem lá chegar.
Portugal aprendeu a esconder os seus pobres. Já não estão nas ruas com cartazes de cartão — agora vivem em apartamentos húmidos, comem menos do que mostram nas redes sociais e vestem roupa de segunda mão com dignidade silenciosa. O novo pobre português não pede esmola. Trabalha. Mas continua pobre. Vivemos num país onde se pode ter um emprego, pagar impostos, cumprir horários… e ainda assim faltar dinheiro para aquecer a casa ou comprar carne ao fim de semana. Chama-se “trabalhador pobre” — e é uma figura cada vez mais comum, mas que não entra nos discursos das campanhas. As estatísticas dizem que a pobreza desceu. Mas não explicam que muitos deixaram de ser pobres apenas porque desistiram de pedir ajuda. Porque a vergonha pesa mais do que a fome. Porque ser pobre em Portugal é ser culpado de não ter tido sorte. Ou contactos. As crianças comem mal, os idosos racionam comprimidos, as famílias recorrem a bancos alimentares como quem vai ao supermercado. E o sistema social, burocrático e ineficaz, exige papéis, comprovativos, formulários — como se a fome precisasse de justificação. E no entanto, o país brilha. As lojas estão cheias. Os festivais multiplicam-se. A classe média endividada finge normalidade entre prestações e cartões de crédito. É o teatro da estabilidade: um povo que dança no convés enquanto o porão se enche de água. A pobreza em Portugal não grita. Murmura. E esse murmúrio é mais perigoso do que o clamor — porque se acomoda, se normaliza, se torna paisagem. Um país que se diz europeu, civilizado, democrático, não pode tolerar que tantos vivam com tão pouco — enquanto tão poucos vivem com tudo.
Portugal tem liberdade de imprensa. Mas o que fazemos com ela? Uma informação cada vez mais domesticada, empacotada, e vendida como se fosse sabão em pó. Os jornais tornaram-se repositórios de comunicados oficiais. As televisões, fábricas de histeria ou anestesia, conforme a agenda do dia. E as redes sociais, essa nova ágora digital, são dominadas por ruído, fúria e manipulação emocional. A notícia deixou de ser um serviço. Passou a ser produto. Mede-se em cliques, partilhas, tempo de atenção. O jornalista, pressionado pelo tempo e pelo clique fácil, já não investiga — reproduz. Já não incomoda o poder — entrevista-o em estúdios climatizados. A crítica tornou-se raridade. A denúncia, exceção. A verdade, matéria opinativa. O espaço mediático está infestado de “especialistas residentes”, sempre prontos a comentar tudo, a dizer nada e a girar com o vento político. Os mesmos rostos, as mesmas frases feitas, as mesmas análises mornas. O contraditório, quando existe, é uma formalidade encenada. E quem controla a informação? Grandes grupos económicos, bancos, interesses cruzados entre publicidade, política e negócios. Os jornais que sobrevivem são, muitas vezes, prisioneiros dos financiadores. E os independentes, esses lutam com unhas e garra para não afundar no oceano da irrelevância algorítmica. Portugal é um país onde a informação existe — mas a formação crítica escasseia. Onde se fala muito, mas se ouve pouco. Onde o povo lê manchetes, mas já não tem tempo (nem força) para os parágrafos. E no fim, o que sobra? Um país que conhece os bastidores dos reality shows, mas desconhece os bastidores da governação. Um povo que sabe o nome da influencer do momento, mas não conhece o conteúdo dos decretos que lhe mudam a vida. Sem imprensa livre de verdade, não há democracia viva. Apenas uma ilusão participativa entre um intervalo publicitário e uma crónica desportiva.
Há um Portugal que não aparece nos postais turísticos, nem nas manchetes da capital. É um país de vales profundos, serras despidas, aldeias com nomes poéticos e casas com janelas fechadas. É o Portugal interior, o território onde os relógios andam devagar… não por sossego, mas por abandono. Escolas fechadas, tribunais encerrados, correios extintos, comboios que já não passam, médicos que só vêm uma vez por mês. O Estado retirou-se lentamente, como quem sai de fininho de uma sala que já não lhe interessa. E com ele, foram-se os jovens, as oportunidades, os serviços. Ficaram os velhos, os resistentes, os que ainda tratam a terra como se o futuro dependesse dela. E depende. Mas ninguém quer saber. O discurso político sobre o interior é sempre o mesmo: “coesão”, “equilíbrio territorial”, “apoios ao mundo rural”. Mas são palavras sopradas em microfones com eco. No terreno, as verbas chegam tarde, os projetos são engolidos pela burocracia, e os incentivos não travam a hemorragia demográfica. Morre-se devagar nas aldeias — de solidão, de silêncio, de esquecimento. E no entanto, é ali que pulsa a memória do país. A identidade que não cabe em relatórios. Os saberes que não se ensinam na escola. Os ritmos da natureza, os cheiros antigos, a dignidade sem espetáculo. O interior não precisa de caridade — precisa de visão. De ligação. De investimento que não seja esmola. De transportes, de fibra ótica, de cultura, de políticas que tratem quem lá vive como cidadãos de pleno direito, e não como figurantes num filme rural que já ninguém vai ver. O país não pode viver só de litoral. Sem coração, nenhuma terra respira.
Portugal gosta de se dizer país de poetas, mas não lê poesia. Gosta de citar Camões nos discursos, mas fecha bibliotecas. Gosta de promover festivais, mas esquece os criadores. A cultura, por cá, é como um quadro bonito na parede de uma casa em ruínas: dá boa impressão, mas ninguém repara nas infiltrações por detrás. Os artistas vivem de paixão, mas pagam renda. Os músicos tocam de borla “pela visibilidade”, os escritores publicam por amor, os actores fazem castings atrás de castings enquanto servem mesas ou ensinam noutro ofício qualquer. São cidadãos de pleno talento, mas de meio direito. O Estado finge que apoia, mas os concursos são armadilhas kafkianas. As candidaturas exigem mais burocracia do que inspiração. E os fundos chegam sempre tarde, quando chegam. A maioria dos criadores vive da precariedade, do improviso e da resiliência — palavra bonita para quem aguenta mais do que devia. As televisões substituíram o teatro por reality shows, os jornais fecharam os cadernos culturais, os palcos estão cada vez mais vazios de risco e cheios de fórmulas. O pensamento crítico dá lugar ao entretenimento domesticado. E quem ousa dizer o que incomoda, é catalogado como “inconveniente”, “subvencionado”, ou pior… ignorado. Portugal não será país de futuro se não cultivar pensamento, arte, inovação simbólica. A cultura não é um luxo, é um motor invisível que forma consciência, identidade e liberdade. Mas por cá, continua a ser tratada como um adorno que se corta nas crises e se exibe nas cimeiras. A cultura incomoda porque ilumina. E por isso… é mantida nas sombras.
Fogem e os Pobres Pagam
Portugal tem impostos. Muitos. Para todos os gostos: diretos, indiretos, invisíveis, camuflados, disfarçados de taxas ou contribuições. Mas há um padrão que resiste à mudança, à ideologia, ao partido: os que têm pouco pagam sempre, os que têm muito pagam quando querem — se quiserem. O pequeno comerciante é escrutinado ao cêntimo. O trabalhador por conta de outrem vê o salário ser retalhado antes mesmo de o tocar. O pensionista, a cada ano, ouve promessas de alívio… e recebe mais um desconto no recibo. Já o grande grupo económico, esse, conhece a arte da engenharia fiscal como ninguém. Tem consultores, offshores, regimes especiais, avenidas legais para fugir àquilo que tu, leitor, não tens como evitar. Os paraísos fiscais são visitados por fortunas nacionais com bilhete de ida e volta. E por cá, o Estado sorri e acena, enquanto o fisco fiscaliza o dono da mercearia que se atrasou um mês nas finanças. A narrativa é sempre a mesma: “Temos de atrair investimento”, “Temos de ser competitivos”, “Temos de simplificar o sistema”. Mas a simplicidade nunca chega à base da pirâmide. A burocracia continua densa para os pequenos, e a flexibilidade, generosa, para os grandes. A desigualdade fiscal corrói mais do que a economia: corrói a confiança na democracia. Porque quando o povo percebe que há dois sistemas — um para os poderosos, outro para o resto — instala-se a revolta muda. A descrença. A apatia perigosa que precede a ruptura. Uma sociedade justa começa na forma como tributa. E Portugal, neste capítulo, ainda está longe da equidade. Prefere manter os alicerces podres, desde que a fachada continue pintada.
Portugal tem uma obsessão com a mobilidade. Fala-se em “mobilidade sustentável”, “transporte verde”, “intermodalidade”… Mas no terreno, o cidadão ainda espera por um comboio que já devia ter chegado há vinte minutos — ou há vinte anos. As linhas ferroviárias são poucas, mal tratadas e mal servidas. Há localidades onde o comboio só passa em horário de missa — e mesmo assim, muitas vezes falha. A CP parece um jogo de paciência em tempo real. A EMEF, uma fábrica de desculpas. E os passageiros, heróis silenciosos da espera, já nem protestam. Apenas suspiram e adaptam-se. No interior, os autocarros são lendas urbanas. Um por dia, dois se houver feira. Às vezes não passam. Às vezes passam, mas não param. E a ligação entre vilas é feita com mais fé do que logística. O Estado desinveste. As operadoras privadas exploram. O passageiro… desiste. Nas cidades, o cenário é diferente, mas não melhor. O trânsito é um ritual diário. O metro de Lisboa pára mais do que anda. Os passes são caros para quem ganha pouco. E a bicicleta, essa nova promessa urbana, ainda anda à procura de ciclovias que não acabem num beco. O discurso político fala de TGV, aeroportos e mobilidade elétrica. Mas o cidadão quer apenas chegar ao trabalho sem perder metade da vida. Quer um sistema fiável, digno, humano. E isso continua a faltar. Portugal é um país onde se planeia muito… e se executa pouco. Onde o futuro dos transportes é prometido em cada legislatura… e enterrado nas rotinas da inércia. Viajar por este país é percorrer as falhas do sistema. E cada atraso, cada cancelamento, cada ausência, é mais do que um contratempo: é um símbolo da falta de respeito pelo tempo e dignidade do cidadão comum.
Portugal orgulha-se de ser uma democracia. Vota-se em liberdade, contam-se os votos, elegem-se os representantes. Mas por trás deste ritual aparentemente limpo, esconde-se um sistema onde o voto é livre… e o poder é fechado. As listas partidárias são verdadeiros clubes privados. Quem lá entra, já foi escolhido muito antes do boletim chegar às mãos do eleitor. Os candidatos não são escolhidos pelo povo — são nomeados por direções partidárias, teias de interesses, dinastias de conveniência. O cidadão vota numa sigla, mas elege uma engrenagem. E assim se perpetua a mediocridade. Os melhores, os mais íntegros, os mais livres de espírito raramente sobem. Porque o sistema teme quem pensa demais. Prefere quem obedece. E o Parlamento, que deveria ser palco de ideias, transforma-se em recetáculo de lealdades e carreirismos. A abstenção cresce. Os votos brancos e nulos também. Mas a máquina gira, indiferente. Quem governa diz-se eleito pelo povo, mesmo quando metade desse povo não foi às urnas. E a cada eleição, o desinteresse é tratado como número técnico, em vez de grito de alerta. Fala-se em reformas, mas o sistema resiste com unhas e dentes. Porque a mudança real — círculos uninominais, referendos vinculativos, iniciativas legislativas populares eficazes — implicaria abrir as janelas. E os que estão dentro temem o ar fresco. No fim, o povo continua a votar como quem cumpre um ritual religioso que já não acredita. Marca a cruz. Vai embora. E o poder? Fica onde sempre esteve: nas mãos de poucos, decidido nos bastidores, imune ao clamor das ruas. A democracia não morre num golpe. Morre devagar, na rotina da ilusão. E Portugal, nesse teatro, é perito em representar.
Portugal tem uma política externa de fachada. Sorri em todas as fotografias de cimeiras, acena em todas as assembleias, e assina todos os compromissos — mesmo quando não os entende, nem os pode cumprir. É o país que chega sempre a horas ao banquete… mas nunca sabe o que trouxe para a mesa. Na diplomacia internacional, Portugal não fala — repete. Não propõe — subscreve. Não lidera — segue. Esconde-se atrás de Bruxelas quando não quer decidir, e atrás da ONU quando quer parecer humanista. Em nome da estabilidade, sacrifica a identidade. Em nome da “Europa”, dissolve a vontade. Somos um país que assinou tratados que não discutiu, que se comprometeu com metas sem fazer contas, que aceitou ser o bom aluno, mesmo quando o plano de estudos nos destruiu a espinha dorsal económica. Quando os grandes falam, Portugal ouve. Quando os grandes agem, Portugal aprova. Quando os grandes erram, Portugal desculpa. E assim se vai moldando uma política externa submissa, tímida, sem ambição nem rasgo. As colónias tornaram-se CPLP, mas sem estratégia. A lusofonia virou conceito vazio, usado para conferências com palmeiras e discursos ocos. A presença no mundo é feita à boleia da diplomacia europeia, da NATO, ou da boa vontade dos embaixadores que ainda tentam salvar alguma relevância. E o povo? Desconhece. Porque a política externa em Portugal não é tema de conversa, nem de debate. É coisa de especialistas. De tecnocratas. De ministros que falam inglês técnico e esquecem o português do povo. Portugal precisa de uma política externa com coragem. Que olhe o mundo de frente, que defenda os seus interesses com firmeza, que saiba dizer não quando for preciso. Porque só respeita quem sabe marcar limites. Um país que não sabe o seu lugar no mundo… acaba por aceitar qualquer lugar à mesa — mesmo que seja junto à porta de saída.
Portugal é mestre na arte do “amanhã”. Tudo será feito mais tarde, tudo será resolvido no próximo plano, na próxima legislatura, no próximo ciclo de fundos. É um país suspenso num eterno “em breve”, onde o futuro é promessa e nunca realização. Planeia-se para 2030, 2040, 2050… como quem compra um bilhete para um comboio que nunca partiu. Lança-se uma estratégia com powerpoints reluzentes, infográficos coloridos e slogans vibrantes. Mas no dia seguinte, a escola continua sem professores, o hospital sem camas, a empresa sem apoio, o jovem sem saída. Fala-se em inovação, mas o país ainda trata os inventores como lunáticos. Fala-se em digitalização, mas os servidores do Estado caem com um simples formulário. Fala-se em sustentabilidade, mas o betão continua a engolir florestas e os rios morrem devagar, entre descargas e indiferença. O futuro, por cá, é um fetiche. Dá votos, mas não exige contas. Fala-se de inteligência artificial, mas há freguesias sem rede. Fala-se de robótica, mas os estudantes mais brilhantes saem para fora com uma mala cheia de talento e um bilhete só de ida. O problema não é falta de ideias. É falta de coragem. O país recusa romper com o que está podre. Prefere remendar. Prefere manter o presente entupido a arriscar construir outro futuro. E o povo? Vai vivendo entre o desencanto e a esperança. Ainda sonha, mas cada vez menos. Ainda vota, mas sem fé. Ainda luta, mas sem força. Porque aprendeu que, neste país, o futuro é sempre um lugar para onde mandam os problemas, nunca as soluções. Portugal não precisa de mais planos. Precisa de vontade real de mudar. De rasgar o conformismo. De ousar pensar alto. E de acreditar que o futuro não se espera: constrói-se — com mãos sujas de trabalho e olhos limpos de verdade.
Portugal dorme. Não aquele sono doce das noites tranquilas, mas o torpor pesado de quem foi anestesiado pela rotina, pela promessa adiada, pela esperança domesticada. Adormecido entre fados e futebol, entre boletins de voto e boletins meteorológicos, entre impostos silenciosos e escândalos esquecidos, o país vai flutuando num mar de conformismo. Cada capítulo desta crónica foi um espelho — por vezes sujo, por vezes rachado — mas sempre real. Vimos a justiça mancar, a escola desistir, os hospitais sufocar, os comboios parar, os partidos zombificar. Vimos o povo pagar pelos erros dos outros, enquanto os outros brindavam em nome da estabilidade. E no entanto, há em Portugal uma centelha que nunca morre. Está no velho que ainda cultiva a horta por teimosia. Na professora que ensina mesmo sem salário justo. No miúdo que lê livros à luz de candeeiros públicos. Nos exilados que continuam a dizer “sou português” com os olhos húmidos. Portugal não é só ruína. É também semente. Mas é preciso rasgar a ilusão. Dizer basta. Deixar de aceitar migalhas em nome de promessas. Acordar, não como quem resmunga — mas como quem levanta a cabeça. Como quem exige. Como quem constrói. A pátria precisa de cidadãos — não de figurantes. Precisa de sonhadores com pés sujos de chão. De rebeldes com ética. De inconformados que plantem futuro onde só há cinzas. Estas Crónicas da Ilusão Nacional não são só crítica. São também um apelo. Um eco de verdade num país viciado em meias-palavras. Porque Portugal merece mais. Porque o povo é maior do que os que o governam. Porque a alma desta terra ainda pulsa — basta escutá-la.
🌟 Palavras Finais – O Chamamento
Este livro é mais do que um grito — é um despertar. É o toque de alvorada num país adormecido entre fados e facturas, onde a esperança teima em sobreviver entre os escombros da ilusão.
Que estas páginas não sejam apenas lidas — que sejam sentidas, partilhadas, discutidas. Que cada crónica ecoe como tambor no peito dos que já não se revêm no teatro da política nem nas promessas vazias dos mesmos de sempre.
Se te reconheces nesta voz, junta-te à mudança. Porque um país só muda quando alguém tem a coragem de dizer: “basta.”
E porque, como escreve o autor,
“Portugal não é só ruína. É também semente.”
Agora é contigo, leitor. A palavra foi lançada. A chama está acesa.
Este pequeno livro da minha autoria, que é um chamamento da pátria, teve a colaboração da OpenAI na criação da capa, e do ChatCPT (c) na troca de ideias sobre o tema.