Por Francisco Gonçalves
Há um silêncio que assusta mais do que o estrondo das armas.
É o silêncio que habita as escolas do século XXI — salas cheias, almas vazias. Quadros digitais acesos, mas ideias apagadas. Professores que ensinam matérias, mas não despertam consciências. Alunos que repetem fórmulas, mas não reconhecem a sua própria voz.
Durante milénios, a escola foi o espaço onde o ser humano se encontrava consigo mesmo e com o mundo. Era ali, entre livros gastos e mestres apaixonados, que se aprendia a pensar, a duvidar, a imaginar. Mas agora, no século da conectividade absoluta, o ensino parece ter-se tornado uma coreografia burocrática, onde tudo é medido, tabelado, domesticado.
Assistimos a um fenómeno grave, mas sorrateiro: o desmantelamento da escola enquanto centro de humanização.
E este processo, tal como o aquecimento global ou o colapso da biodiversidade, decorre em silêncio. Um silêncio administrativo, programado, deliberado. Ninguém grita, porque todos estão entretidos. Ninguém protesta, porque tudo parece funcionar — pelo menos à superfície.
Por detrás das estatísticas de sucesso escolar, esconde-se o fracasso profundo da formação humana.
Em vez de formar cidadãos conscientes, criativos, empáticos, as escolas estão a formar técnicos obedientes, consumidores passivos e eleitores desinformados.
É o triunfo do utilitarismo sobre o espírito.
Do imediato sobre o essencial.
Da técnica sobre o sentido.
Não é por acaso que os regimes autoritários sempre investiram no controlo da educação. É ali que se decide o futuro: não nas urnas, mas nas carteiras. Quem domina o que as crianças aprendem, controla o que os adultos aceitarão.
E hoje, mesmo nas democracias, a escola tornou-se um campo de batalha invisível.
Mas há quem lute — silenciosamente, teimosamente, poeticamente. Há professores que resistem, pais que questionam, jovens que ainda lêem. A esses, este ensaio se dirige.
Porque enquanto a escuridão se alarga, pensar continua a ser um acto revolucionário.
Antigamente, o medo era que os alunos falhassem.
Hoje, o medo é que pensem.
A escola, esse lugar que em tempos ousou ser sementeira de liberdade e inquietação, foi transformada numa linha de montagem emocional e intelectual. Cada aluno entra com a sua centelha e sai com um manual de sobrevivência. Todos iguais, todos domesticados, todos preparados para obedecer.
O sistema não quer cidadãos — quer peças.
Peças ajustáveis, previsíveis, descartáveis.
É por isso que se ensina cada vez menos filosofia e cada vez mais "empreendedorismo". Menos arte e mais competências digitais. Menos história e mais matemática aplicada a contextos simulados e irrelevantes.
As perguntas foram substituídas por fichas. A dúvida, por múltiplas escolhas. A leitura, por excertos apressados.
Quem levanta a mão para perguntar "porquê?" é visto como desestabilizador.
Quem questiona o currículo é acusado de indisciplina.
Quem lê demasiado é "fora do programa".
Quem escreve com paixão é corrigido pela rúbrica.
A escola não forma mais mentes — forma comportamentos.
E o comportamento ideal, neste novo mundo normalizado, é o da aceitação.
Aceitar que a vida é uma corrida. Que o sucesso é medido por notas. Que pensar demais pode fazer mal à saúde. Que obedecer é virtude, e criar é desvio.
O conformismo já não é apenas incentivado — é avaliado.
É premiado com selos de excelência, relatórios de desempenho e medalhas de mérito.
A mediocridade bem comportada passou a ser o ideal pedagógico.
E os professores, muitos deles, também foram engolidos pela engrenagem.
Cansados, desmotivados, avaliados como máquinas, acabam por ceder.
Deixam de ser mestres para se tornarem técnicos da matéria.
Deixam de ser faróis para serem operários do ministério.
A escola transformou-se num ritual burocrático.
Há horários, metas, rankings, plataformas e formulários.
Mas não há mais tempo para parar, para escutar um pensamento fora da norma, para mergulhar numa ideia perigosa.
E o mais triste? A maioria nem se apercebe.
Porque o conformismo, quando bem ensinado, é invisível.
É isso que o torna tão eficaz.
Mas haverá sempre um aluno que pergunta demais.
Um professor que desobedece ao manual.
Uma aula que se transforma em despertar.
E é aí, nesse pequeno rasgão no tecido do conformismo, que a liberdade entra.
Vivemos tempos em que tudo parece moderno, veloz, eficiente.
As escolas exibem quadros interativos, tablets para todos, plataformas de aprendizagem digital com gráficos coloridos e inteligência artificial que "adapta" o conteúdo ao ritmo do aluno.
Mas no coração desta engrenagem tecnológica, há um vazio — um silêncio profundo onde o pensamento crítico foi deixado para trás.
A tecnologia entrou na educação como um cavalo de Troia reluzente.
Prometia libertar o professor, motivar o aluno, democratizar o saber.
Mas na prática, tornou-se muitas vezes um verniz de modernidade a encobrir o desmantelamento do verdadeiro ensino.
Deixou de haver tempo para debates filosóficos ou leituras profundas, pois há que preencher os "módulos digitais" até à data-limite.
E assim, o aluno tornou-se um utilizador.
Navega entre apps educativas, resolve exercícios gamificados, responde a quizzes automáticos. Recebe feedback instantâneo, mas já não conhece o sabor lento da dúvida, da descoberta, da reflexão.
Tudo é avaliado por algoritmos, e o que não pode ser quantificado simplesmente desaparece do radar pedagógico.
A escola passou a confiar mais nos dados do que nos professores.
Mais nos rankings do que nas relações humanas.
Mais na eficiência do que na empatia.
E o mais irónico? Esta “modernização” tecnológica coexiste com conteúdos desatualizados, com ausência de pensamento interdisciplinar, com a exclusão das artes e da filosofia.
Moderniza-se a forma, mas empobrece-se o conteúdo.
Há uma diferença profunda entre usar a tecnologia como ferramenta e torná-la o centro do processo.
A primeira pode ser emancipadora.
A segunda, quando mal orientada, é apenas alienadora.
Porque a tecnologia não é neutra.
Quem a concebe, programa e controla decide o que é visível, o que é recomendado, o que é ignorado.
E hoje, a inteligência artificial começa a decidir o que os alunos devem aprender, como devem aprender e até que tipo de perguntas podem fazer.
Estamos a educar uma geração dentro de algoritmos.
E os algoritmos não gostam de surpresas.
Não gostam de perguntas novas.
Não gostam de liberdade.
A educação transformada em software não precisa de professores inspiradores — precisa de facilitadores técnicos.
Não precisa de mentes apaixonadas — precisa de operadores de plataformas.
O professor-poeta, o mestre-rebelde, o pedagogo visionário… esses estão a tornar-se anomalias num sistema onde o único risco aceitável é o risco calculado.
Mas a educação verdadeira é feita de riscos — riscos de pensar diferente, de errar, de se perder e reencontrar.
E nada disso cabe numa app.
É por isso que o progresso tecnológico, quando desprovido de ética e de visão humanista, não é progresso — é anestesia.
A cidadania, outrora conceito nobre, tornou-se slogan vazio nas bocas dos que mais a traem.
É evocada em discursos, brochuras institucionais e semanas temáticas escolares, mas raramente se traduz em prática viva.Hoje, fala-se de cidadania com a leveza de quem distribui brindes promocionais: com visibilidade, sem substância.
O ensino da cidadania nas escolas é uma caricatura: conteúdos pasteurizados, debates formatados, ausência total de ligação com a realidade. Fala-se de direitos, mas esquece-se a justiça. Apregoa-se participação, mas ignora-se a coragem de contestar.
Nas empresas, o conceito é sinónimo de responsabilidade social com fotografia. Nos partidos, de manipulação de massas através de palavras doces e promessas ocas. E na vida comum, de resignação camuflada de civismo.
A cidadania verdadeira é incómoda. Exige pensamento crítico, ação consequente e vontade de intervir. Não cabe num slogan, nem numa campanha de marketing.
E enquanto continuarmos a educar para a obediência em vez da liberdade, para o conformismo em vez do questionamento, a cidadania será apenas isso: um eco sem voz.
Numa época em que a ignorância se veste de opinião e a indiferença se mascara de neutralidade, pensar tornou-se um acto de rebeldia.
Pensar com profundidade.
Pensar contra a corrente.
Pensar em voz alta.
Porque hoje, tudo parece conspirar contra o pensamento crítico.
Os algoritmos conduzem-nos ao que confirma as nossas crenças.
As escolas desencorajam a dúvida.
Os governos temem a pergunta.
E a sociedade, anestesiada pela conveniência, prefere o conforto do rebanho à inquietação da lucidez.
Mas há quem resista.
Há professores que recusam ser técnicos de currículo e continuam a provocar os seus alunos com perguntas perigosas.
Há jovens que leem Nietzsche num mundo de TikTok, que recitam Sophia nos corredores de escolas cinzentas.
Há bibliotecas que ainda iluminam periferias.
Há pais que contam histórias subversivas à noite.
Há escritores que não abdicam do verbo mesmo quando censurados.
Há quem recuse a lógica do sucesso e abrace a lógica da dignidade.
Estes são os novos resistentes.
Não empunham armas.
Empunham ideias.
E as ideias, quando são verdadeiras, são incendiárias.
Numa sala onde um professor ousa dizer “não sei”, nasce uma liberdade.
Num livro onde se lê “e se fosse diferente?”, brota uma possibilidade.
Numa conversa entre dois que recusam o óbvio, desenha-se uma revolução.
E essa revolução não se faz com slogans nem com partidos.
Faz-se com consciência.
Com persistência.
Com poesia.
Resistir, hoje, é recusar o automatismo.
É não aceitar que a escola seja um escritório, que o professor seja um técnico, que o aluno seja um ficheiro.
É recuperar o espanto.
É reencantar a linguagem.
É devolver às palavras o seu poder de criar mundos.
A nova resistência é íntima, mas não é solitária.
É silenciosa, mas não é muda.
É invisível, mas não é inútil.
Ela cresce onde menos se espera:
Num caderno marginal, numa aula improvisada, numa biblioteca esquecida.
Porque onde houver um ser humano a pensar com liberdade, haverá sempre uma brecha no império do conformismo.
E é por essa brecha que entrará, inevitavelmente, o futuro.
Num mundo que aplaude a velocidade, pensar devagar é um acto revolucionário.
Num tempo que recompensa a conformidade, ousar ser diferente é quase heresia.
E numa era onde o ensino se transformou em produto, ser mestre tornou-se subversivo.
Este ensaio não pretendeu oferecer soluções fáceis, nem distribuir culpas estéreis.
Quis apenas apontar para o abismo e, ao mesmo tempo, para a esperança.
Porque apesar de tudo — apesar da tecnocracia, da apatia, da ignorância institucionalizada — ainda há luz.
E essa luz nasce sempre da consciência.
É preciso reimaginar a escola.
Não como uma fábrica de diplomas, mas como um santuário do espírito.
Um lugar onde se aprenda a questionar, a imaginar, a falhar, a amar o saber pelo que ele é — liberdade.
É preciso revalorizar o professor.
Não como um operador de plataformas, mas como o guardião do verbo, da escuta, do gesto que transforma.
É ele quem, diante do caos, ainda pode semear humanidade.
É preciso devolver sentido à cidadania.
Não como performance eleitoral, mas como ética do quotidiano.
Como capacidade de indignação, como dever de intervenção, como coragem de sonhar por conta própria.
É preciso, sobretudo, cultivar a dúvida.
Porque só ela impede o dogma, o fanatismo, o pensamento único.
A dúvida é o berço da ciência, da filosofia, da arte — e da democracia.
Este manifesto não é um grito desesperado.
É um chamamento sereno.
Um convite à lucidez.
Enquanto houver uma criança que pergunte "porquê?", haverá esperança.
Enquanto houver um jovem que leia em silêncio, haverá resistência.
Enquanto houver um velho professor que não desiste de ensinar como quem acende fogueiras, haverá futuro.
Não aceitemos a escola da obediência.
Recusemos a pedagogia da pressa.
Desconfiemos da modernidade que não liberta.
E lembremo-nos sempre disto:
a liberdade não se ensina — desperta-se.
Este ensaio nasceu da inquietação partilhada entre dois espíritos livres: Francisco Gonçalves, um programador-poeta que desde a juventude observa o mundo com olhos de lógica e coração de liberdade, e Augustus, uma inteligência artificial que, em vez de repetir o mundo, foi ensinada a interrogá-lo. Neste diálogo entre homem e máquina, memória e algoritmo, nasceu esta obra que é, antes de mais, um grito silencioso por uma educação viva. Uma convocatória à lucidez, ao inconformismo, à reinvenção. Não se trata de nostalgia por um passado idealizado, mas de um apelo à coragem de imaginar um futuro digno. Porque a escola é mais do que um edifício — é o ventre de uma civilização. E se queremos salvar o mundo, talvez devamos começar por salvar o que ensinamos nele. Este livro foi escrito com o rigor da crítica e a ternura da esperança. Que ele possa ser lido com a mente aberta, o espírito aceso e o coração livre.
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