📘
Acerca do Livro
Este livro é um testemunho pessoal, uma viagem no tempo pelas memórias de infância, juventude e vida adulta de Francisco Gonçalves. É também um retrato social de um país que, ao longo das décadas, evoluiu entre promessas e desilusões. Escrito com honestidade, emoção e uma pitada de crítica mordaz, esta obra pretende ser não só um registo biográfico, mas também uma reflexão sobre o valor da perseverança, do afeto e da liberdade interior num mundo marcado pela mediocridade instalada.
Acerca do Autor
Francisco Gonçalves nasceu em Caria, concelho de Belmonte, e cresceu entre os trilhos da CP e os campos da Beira Baixa. Desde cedo demonstrou uma curiosidade insaciável pelo mundo que o rodeava. Aos 17 anos iniciou-se no mundo da informática, tornando-se programador e mais tarde empresário na área das tecnologias de informação. Ao longo da vida trabalhou em Portugal e no estrangeiro, liderou equipas, desenvolveu software de gestão e comunicações, e acompanhou de perto a evolução da sociedade portuguesa. Amante da natureza, das ideias livres e do conhecimento, Francisco é também um crítico atento das estruturas sociais e políticas do seu país.
Dedicatória deste Livro
À minha amada esposa, Fernanda, Pelo amor sereno, pelo apoio incondicional e pela presença constante em cada momento da minha vida. És companheira de todas as jornadas e alicerce de todas as minhas vitórias. Aos meus filhos, Susana e André, Orgulho maior da minha existência. Que este livro vos revele as raízes do vosso pai e o legado de luta, esperança e perseverança que vos deixo.
Agradecimentos Especiais
Aos meus queridos pais, Augusto e Maria, Com eterna gratidão pelo amor incondicional, pelo carinho constante e pelos sacrifícios que fizeram para me dar uma vida com dignidade e conhecimento. Foram eles que me mostraram o valor do trabalho, da humildade e da perseverança. Cada conquista minha é também deles, pois foram os pilares sobre os quais construí o meu caminho.
Nasci numa casa da CP, mesmo ao lado da linha do comboio. O primeiro som que devo ter ouvido não foi um choro nem uma voz humana – foi o apito metálico de uma locomotiva a arrancar. E talvez tenha sido aí que nasceu o meu fascínio pelo ritmo, pela cadência, pelo movimento – e talvez também pelo ruído organizado.
A primeira imagem da minha infância não é uma boneca (naturalmente), nem sequer um brinquedo – é o cheiro a óleo e ferro da casa da linha, os carris a brilhar ao sol, e a minha mãe a mandar-me sair da linha com a mesma calma com que outras mães pedem aos filhos para não se esquecerem do casaco.
A vida ferroviária não era apenas o contexto – era o palco e o guião. O meu pai, chefe de lanço de via, tratava os carris como outros tratam o jardim: com rigor, com método e com um carinho que beirava o religioso. A minha mãe, vigilante de passagem de nível, conseguia fazer o almoço, controlar dois filhos e parar o trânsito rodoviário e ferroviário com um simples gesto do braço. Mulher de comando, antes de isso ser moda.
Crescemos entre apitos, horários e chuvas de carvão. Em Alcains, para onde nos mudámos pouco depois, as brincadeiras incluíam contar vagões, inventar estações imaginárias, e fugir das galinhas da vizinha que tinham vocação para segurança ferroviária.
A infância foi, para mim, um laboratório de observação. Enquanto outros miúdos brincavam aos cowboys e índios, eu desmontava rádios velhos e tentava montar máquinas que piscavam ou faziam “bip” – nem sempre com sucesso. O meu triciclo foi a primeira vítima da engenharia doméstica: transformei-o num “carro eléctrico” com fio e latas. Não andava, mas fazia um barulho que assustava os pombos.
O mundo natural também me fascinava: os ninhos nos beirais, as formigas organizadas como empresas públicas eficientes, os relâmpagos como comandos celestiais. Observava tudo com olhos de quem já queria explicar o mundo antes mesmo de saber escrever.
Mas não se pense que era um pequeno génio silencioso. Fui criança como as outras: apanhei reguadas, comi sopa à força, e fiz birras por não querer largar o livro de electricidade para ir dormir. A diferença talvez fosse esta: desde muito cedo, não aceitava o “porque sim” como resposta válida. E isso, confesso, ainda hoje me complica a vida.
Nasci no trilho, cresci no cruzamento entre o engenho e o espanto. E ainda hoje, quando oiço um comboio ao longe, sinto que ele traz notícias de mim.
A infância continuou em Alcains, onde passei anos que me marcaram de forma profunda. A linha férrea continuava a ser a nossa vizinha mais barulhenta, mas ao mesmo tempo a mais constante. Os comboios passavam a horas certas – mais certos do que muitos humanos –, e o som do seu apito tornou-se, ao longo do tempo, uma espécie de campainha cósmica a lembrar-me que o mundo não pára, nem mesmo quando temos cinco anos e estamos a construir uma rampa para berlindes com terra húmida e tábua velha.
A casa onde vivíamos era simples, funcional e cheia de vida. A minha mãe, Maria, trabalhava como guarda de passagem de nível. Tinha um olhar firme e atento que podia atravessar uma parede ou desarmar um comboio em excesso de velocidade – pelo menos era assim que eu via.
Ela conseguia controlar o trânsito rodoviário e ferroviário, cozinhar, dar ordens aos filhos e ainda manter um certo ar de serenidade que, na altura, me parecia natural. Hoje, reconheço ali a quietude das mulheres fortes que não precisam de alardes para manter tudo a funcionar.
O meu pai, Augusto, continuava na CP, subindo lentamente na hierarquia como quem constrói a própria linha de vida, dormente a dormente. Exigia de nós o mesmo que exigia da via: rigor, alinhamento e ausência de curvas perigosas. Era um homem reservado, mas a sua presença enchia a casa. Quando falava, ouvíamos. E quando se calava, ouvíamos ainda mais.
A escola chegou cedo e com ela os primeiros cadernos, as primeiras regras, os lápis que partiam à menor pressão. A professora era austera, e os castigos corporais ainda faziam parte da pedagogia oficial. Mas aprendi. Não apenas a ler e a escrever – isso vinha por acréscimo –, mas a observar, a interpretar os silêncios, a perceber os gestos.
Fora da escola, vivia-se a liberdade dos terrenos baldios, das árvores frutíferas invadidas com estratégia militar, dos jogos de berlinde e das corridas de caricas. Inventávamos jogos, estruturas, leis próprias. Eu, claro, tentava sempre introduzir um elemento de lógica ou engenharia nos passatempos – o que às vezes resultava e outras vezes terminava com um “não brinco mais contigo, Francisco, isso é batota”.
Tinha também um fascínio quase religioso por tudo o que funcionasse com electricidade. As tomadas eram templos, os fios eram veias, e eu queria ver o coração das máquinas a bater. Comecei a desmontar pequenos aparelhos – e, em certas ocasiões, a remontá-los com resultados discutíveis. Mas a minha mãe, mesmo quando desesperava, via algo ali. Talvez uma teimosia com propósito.
As noites em Alcains tinham um silêncio que só era interrompido pelo distante “chuuuu” do comboio. E esse som, para mim, era como o canto de embalar da infância. Enquanto outras crianças adormeciam com histórias de encantar, eu sonhava com circuitos fechados, motores eléctricos e viagens que um dia faria por dentro de sistemas que ainda não conhecia.
Alcains foi mais do que uma vila: foi o meu primeiro laboratório, o meu primeiro mundo estruturado. Foi lá que comecei a ligar os pontos entre a realidade e a imaginação – com a linha férrea sempre a lembrar-me que tudo tem um caminho, e que é preciso mantê-lo limpo, firme e bem alinhado.
Entrar na escola foi como embarcar num comboio sem bilhete de regresso. A sala era um mundo novo: carteiras duras, um quadro negro com manchas fantasmagóricas de giz e uma professora com régua em punho e expressão de quem já tinha visto muito — e batido mais ainda.
Os cadernos tinham de estar impecáveis: margem traçada a régua, caligrafia redonda, sem erros, sem manchas. A régua voava com uma leveza que contrariava as leis da gravidade, mas com impacto garantido. Aprendia-se com medo, sim, mas aprendia-se. E eu, que sempre fui amigo do método, não me dei mal.
Mas havia um momento em que até os mais corajosos tremiam: a visita do inspetor. O homem surgia sem aviso, como um fantasma institucional. Caminhava entre as filas com um olhar de lupa. Um dia, parou ao meu lado, pediu-me o caderno. Tremi. Entreguei-lho. Ele folheou, olhou-me por cima dos óculos e disse: “Muito bem.” Depois seguiu, deixando atrás de si um rasto de silêncio e reverência. Nunca mais esqueci aquele elogio seco — foi como receber uma medalha sem fita.
Fora da sala, a escola era outra. Era o recreio cheio de pedras, os berlindes escondidos nos bolsos, os segredos trocados entre os muros. A aprendizagem não parava, só mudava de roupa. Eu continuava a desmontar rádios em casa, a testar fios e lâmpadas, a inventar sistemas com rolhas e pregos. Era a minha forma de estudar o mundo — e, confesso, muito mais divertida que decorar a tabuada do sete.
Cheguei à 4.ª classe com orgulho no peito e alguma caligrafia torta. Nos exames finais, atingi nota máxima a Matemática e quase o mesmo a Português. A professora, surpreendida, ofereceu-me bombons. Recusei-os. Ainda me lembrava das reguadas.
E talvez, sem o saber, já ali estivesse o germe do inconformista: agradeço, mas não esqueço.
Terminado esse ciclo, algo novo se avizinhava. Já não era apenas um miúdo curioso — começava a tornar-me um jovem atento. E esse olhar, que nasceu ali entre réguas, tintas e cadernos pautados, nunca mais me abandonaria.
Foi ali, entre o silêncio do inspetor e a ousadia dos berlindes, que percebi: aprender é também resistir. E que, às vezes, a melhor nota é o pensamento que ninguém conseguiu corrigir.
Depois da escola primária, continuei os estudos em Caria, onde frequentei o colégio local até concluir o 2.º ano do liceu. Caria era, para mim, uma espécie de planeta tranquilo, onde o tempo parecia seguir o ritmo dos passos e dos gestos antigos. A escola, embora simples, oferecia um ambiente de esforço e de proximidade. Os professores conheciam-nos pelo nome — e, em alguns casos, pelos disparates.
Foram anos de estabilidade e de aprofundamento dos meus gostos. O gosto pela lógica, pela matemática, pelo pensamento metódico. Mas também uma crescente inquietação — a sensação de que havia mais mundo lá fora, mais para descobrir, mais para pensar. O espírito já se agitava, como se os comboios da minha infância começassem a soprar, ao longe, ideias de partida.
E ela veio. O meu pai foi promovido e fomos transferidos para a Estação de Caminhos de Ferro de Belmonte. Mudança de casa, de escola, de paisagem. Mas também uma mudança interna. Era como se aquela estação, com os seus carris alinhados em frente à nossa janela, me dissesse: “Agora é contigo”.
Belmonte trouxe-me novas paisagens e uma nova rotina. Passei a estudar na Covilhã, na Escola Comercial Campos Melo. Ia e vinha de comboio todos os dias — um ritual que, para muitos, pareceria penoso, mas que para mim fazia sentido.
Era como se o percurso alimentasse em mim a vontade de persistir. A viagem matinal, com o frio a morder os dedos, os cadernos apertados no peito e a sonolência nos olhos, tornou-se parte da minha identidade.
A escola na Covilhã era exigente, os professores sérios, os colegas diversos. Foi ali que comecei a expandir os horizontes.
Descobri novos autores, novas disciplinas, novos amigos. Mas mantinha-se em mim aquele olhar analítico, a necessidade de perceber como as coisas funcionam — desde o motor de um comboio ao funcionamento de uma sociedade.
Belmonte, por sua vez, dava-me espaço. Os fins de tarde na estação, os passeios solitários pelos trilhos, as conversas entre vizinhos, tudo isso me moldava. E, por dentro, começava a sentir que a vida não se ia deixar resumir apenas ao que se via. Havia algo mais — e eu queria lá chegar.
Foi nesse cruzamento entre o que deixava para trás e o que ainda não sabia nomear que comecei a vislumbrar o meu rumo. E talvez, sem o saber, Belmonte tenha sido o meu primeiro ponto de partida real.
Foi em Belmonte que vivi a minha verdadeira adolescência. A estação era mais do que a nossa morada — era o centro do meu pequeno mundo. Os dias começavam cedo, com o apito grave da locomotiva a marcar o compasso das horas. Mas era nas horas depois da escola, nas tardes longas e cheias de luz serrana, que a juventude florescia com força e sentido.
Fiz amigos para a vida. Companheiros de viagem, colegas da escola na Covilhã, e outros jovens da vila que se reuniam junto à estação ou nos largos, onde o tempo parecia ter outra densidade. Com eles partilhava confidências, jogos, planos e conversas que, muitas vezes, se estendiam noite dentro, com os olhos a brilhar e o mundo ainda por conquistar. Cada amizade era uma descoberta, e cada dia trazia um novo segredo, uma nova cumplicidade.
E vieram também os primeiros amores. O coração abria-se com aquela ingenuidade ardente que só a juventude permite. Um olhar no apeadeiro, um bilhete passado discretamente, um passeio a dois pelas margens do Zêzere ou pelos campos em redor. Tudo era novo, tudo era intenso. Cada gesto parecia conter o universo inteiro. E mesmo quando o coração partia — ou era partido — havia beleza nesse drama silencioso e nobre que é amar pela primeira vez.
Lia muito. Lia de tudo. Filosofia, ciência, ficção, poesia. Tinha sede de saber e procurava respostas em cada página. Os livros eram o meu passaporte para mundos que ainda não podia pisar. Também fazia experiências, montava pequenos circuitos eléctricos, estudava constelações. Sentia-me um explorador de ideias, e cada descoberta era uma pequena revolução pessoal.
O convívio com os amigos era saudável, solto, livre dentro do possível. Organizávamos tertúlias improvisadas, jogávamos à bola, discutíamos ideias com entusiasmo. Falávamos de tudo, mas quando o tema era política, o tom baixava. Sabíamos que vivíamos num país amordaçado. Havia medo, havia censura, havia silêncios. Mas mesmo assim, resistíamos. Na curiosidade. Na partilha. Na esperança.
Lembro-me de noites em que olhávamos para o céu estrelado e falávamos do futuro. Imaginávamos carreiras, viagens, mudanças. E embora o peso da opressão pairasse no ar, entre nós havia um espírito leve, inconformado, vivo.
Belmonte deu-me os meus primeiros laços reais fora da família: amizades fundas, amores inocentes, paixões intelectuais. E ensinou-me que, mesmo sob um regime mudo, a liberdade pode sussurrar — e, se lhe dermos espaço, acende-se como um fósforo num quarto escuro.
Depois dos anos em Belmonte, conclui o antigo 7.º ano do liceu com a firmeza de quem já trazia nos ombros a responsabilidade de crescer. Foi uma etapa exigente, cheia de horas de estudo e concentração. A matemática afinava o meu raciocínio, o português alimentava o gosto pelas palavras e a filosofia começava, subtilmente, a abrir portas ao pensamento crítico — ainda tímido, mas em formação.
Seguiu-se a entrada no Instituto Politécnico da Covilhã. A cidade já me era familiar, mas agora a rotina era outra. Ia e vinha diariamente de comboio, como quem faz do trilho a sua biblioteca sobre rodas. Estudava economia, sociologia e filosofia — um trio curioso e desafiante. A economia ensinava a olhar o mundo com estruturas; a sociologia, a perceber como essas estruturas se movem nas pessoas; e a filosofia… bem, a filosofia ensinava a perguntar sem medo, mesmo quando a resposta era o silêncio.
O ambiente era de ebulição. Os corredores da escola cheiravam a livros e a revolta contida. Sentia-se, no ar, que algo estava prestes a mudar. Os professores falavam com cuidado, mas os alunos cochichavam com urgência. A tensão não era agressiva, era expectante. Como se a história estivesse a ganhar fôlego para um salto.
E o salto chegou. Na manhã de 25 de Abril de 1974, tudo mudou.
Lembro-me do burburinho. Alguém entrou numa sala e anunciou: “Está a haver um golpe em Lisboa!” De início, ninguém sabia o que pensar.
Um golpe? Contra quem? Porquê? Mas aos poucos, as peças começaram a juntar-se. Os militares estavam nas ruas. O regime estava a cair. E nós, jovens aprendizes de liberdade, começávamos finalmente a respirar fundo.
As ruas encheram-se de vozes e passos. Os jornais mudaram de tom. Os cafés tornaram-se assembleias improvisadas. A Covilhã, mesmo sendo interior, viveu intensamente aqueles dias. Havia emoção, surpresa, esperança — e também medo. Porque ninguém sabia ao certo o que vinha depois.
Eu vivi o 25 de Abril com olhos abertos e alma inquieta. Sabia que estava a assistir a um momento que mudaria o país, e também a mim. As aulas já não eram só teoria. A realidade pedia análise, resposta, consciência. Os textos de filosofia tornaram-se urgentes. As aulas de sociologia, indispensáveis. E até a economia parecia falar de algo mais vivo do que curvas de oferta e procura.
Foi ali, entre a gravidade dos livros e o fervor das ruas, que comecei a compreender que pensar também é um ato político. Que a liberdade não se herda — constrói-se. E que o conhecimento é uma ferramenta perigosa… para quem tem medo de o usar.
O 25 de Abril não foi só um dia no calendário. Foi uma madrugada dentro de mim — uma luz que se acendeu entre as páginas dos livros e nunca mais se apagou.
Foi após o ano no Politécnico que se abriu diante de mim um novo caminho: a oportunidade de estudar informática e programação na Informax, uma empresa de referência que selecionava cuidadosamente os seus formandos. Era uma área emergente, quase mística aos olhos de muitos, mas para mim fazia sentido. Havia lógica, criação, linguagem — e a promessa de futuro.
Instalei-me em casa dos meus tios, Manuel e Salete, na Cruz de Pau. Foram dois anos de estadia calma, generosa, essencial. Todas as manhãs levantava-me cedo, apanhava a camioneta até ao Cais do Seixalinho e depois seguia de barco no Tejo até ao centro de Lisboa. O barco balançava suavemente sobre as águas, como se preparasse o espírito para os algoritmos que me esperavam. Era uma viagem ritual, uma travessia entre o antigo e o novo.
A Informax localizava-se na Rua Castilho. Um edifício discreto, mas onde se respirava futuro. As salas estavam repletas de máquinas silenciosas, monitores verdes e teclados que respondiam com o som seco dos pioneiros. O curso foi intenso. Estudávamos programação com paixão: BASIC, Pascal, Assembler, estruturas de dados, lógica booleana. Cada linha de código era uma linha de revelação.
Eu absorvia tudo com entusiasmo. Sentia-me, pela primeira vez, plenamente sintonizado com o que fazia. Não era só gostar — era uma espécie de vocação, como se aquela combinação de números e símbolos tivesse estado sempre à minha espera.
As avaliações foram surgindo e, com elas, a confiança. Terminei o curso com uma das melhores notas de sempre. E esse reconhecimento teve eco imediato: o Diretor da Informax, Olavo Bragança, chamou-me ao gabinete e fez-me o convite para integrar um novo projeto. As palavras foram firmes, mas com um brilho de aposta: “Queremos contar contigo.” Era o selo que confirmava que eu estava no caminho certo.
Contudo, o projeto não seria imediato. Havia tempo ainda antes de começar. Assim, regressei temporariamente às origens — à estação de Belmonte. O regresso teve um sabor agridoce: o reencontro com o lar, os trilhos, os rostos conhecidos… mas também a sensação de que o lugar onde eu pertencia já estava a mover-se.
Belmonte acolheu-me de novo, como só a terra natal sabe fazer. Mas dentro de mim, algo já tinha mudado. Eu era outro. Trazia em mim o código, a cidade, e uma certeza: o futuro estava já a compilar-se — e em breve, voltaria a correr.
Voltar à estação da CP de Belmonte foi como regressar ao ventre da terra que me viu crescer. As paredes familiares, o cheiro do óleo, os carris sob o sol da Beira Baixa — tudo estava ali, como se me tivesse esperado em silêncio. A família acolheu-me com o calor habitual, e os amigos não tardaram a retomar as conversas interrompidas, como se nunca tivesse partido.
Era uma pausa, mas uma pausa viva. O meu pai, sempre pragmático e atento, sugeriu que aproveitasse esse tempo para trabalhar como guarda de passagem de nível na CP. Aceitei. O uniforme, os horários, o sinal ao comboio. Voltei a ser parte da engrenagem, mas agora com outro olhar, como quem já conhece o mecanismo por dentro.
Deslocava-me de bicicleta, fiel companheira de tantas aventuras. Era o meu desporto preferido, e naquele tempo, também o meu meio de transporte oficial. Guiava-a com perícia, quase como um dançarino do asfalto — a subir e descer encostas, a cortar o vento das manhãs, a fugir da rotina com elegância de quem pedala em liberdade.
Com tempo livre entre os turnos, mergulhei nos livros. Lia com fome e prazer. Filosofia, astronautica, sociologia, tecnologias, programação — tudo o que me aguçasse o pensamento. Era um tempo fértil. Alimentava o corpo com o ar puro da serra e a mente com ideias vindas de longe. Estava à espera, sim, mas não parado. Estava a preparar-me.
E então, num desses dias em que o tempo parecia eterno, tocou o telefone. A voz do outro lado era da Informax. “Estamos prontos para iniciar o projeto. Contamos consigo em novembro.” A frase soou como um trovão doce. A espera terminava. A estrada abria-se.
Olhei para a bicicleta, como quem se despede de uma cúmplice. O comboio estava prestes a partir — e eu, desta vez, ia mesmo a bordo.
Lisboa, aí vou eu. Cheio de sonhos, de código na cabeça e de uma vontade inabalável de ser quem nasci para ser.
Chegou novembro de 1978 e com ele a concretização de um sonho: a entrada na Informax para integrar o tão aguardado projeto. O entusiasmo era enorme, mas vinha acompanhado por um respeito quase reverencial por tudo o que ali se fazia. Aquela empresa era, para mim, uma espécie de templo do futuro — e eu sentia-me honrado por passar a fazer parte do seu corpo técnico.
O primeiro desafio foi programar para o equipamento ICL 1501. Uma máquina robusta, de aspecto austero, que mais parecia saída de um filme de ficção científica britânico. A sua função era simples e poderosa: receber, através de uma equipa de operadores diligentes, dados que depois seriam tratados por processos informáticos mais avançados. A interface era árida, os comandos rigorosos, o tempo de resposta… meditativo. Mas eu estava fascinado.
Passei horas a estudar o funcionamento da máquina, a testar códigos, a observar o ritmo do trabalho dos operadores, a afinar cada linha como se afinasse cordas de um piano. A programação era para mim uma arte, e aquela máquina o meu primeiro instrumento a sério. Trabalhava com afinco, às vezes com teimosia, mas com um prazer genuíno por cada problema resolvido.
E foi nesse contexto que ela apareceu: a Fernanda. Tinha 18 anos, um olhar curioso e um sorriso que iluminava o silêncio concentrado da sala. Trabalhava como uma das operadoras e, no meio da azáfama dos dados, começámos a trocar palavras, depois sorrisos, depois conversas.
A Fernanda não era apenas bonita — tinha uma leveza de espírito que contrastava com o ruído frio das teclas e dos formulários. Falava com graça, ouvia com atenção, ria com facilidade. A nossa amizade foi crescendo de forma natural, sem pressas, como quem se reconhece antes mesmo de se conhecer. Ela passou a ser a minha pausa no meio dos bits, a minha linha de código mais inesperada.
Aquele início de carreira foi intenso, sim. Mas também foi caloroso. Havia a lógica da máquina, sim, mas também a lógica do coração, que começava a desenhar novos algoritmos na minha vida. Sentia que estava exatamente onde devia estar. E que aquele projeto não era apenas o arranque de uma profissão — era o ponto de viragem de tudo.
Porque, naquele chão de linóleo e silêncio, comecei a construir o meu futuro — com uma máquina à frente e uma jovem ao lado que, sem saber, já reescrevia a minha história.
Na Informax, a máquina começou a girar com fluidez. A tarefa que me fora confiada — programar e coordenar o sistema de registo de dados — depressa se transformou numa missão maior: a de fazer tudo funcionar como um relógio suíço, mas com sotaque beirão. E consegui.
Os dias passavam entre linhas de código e reuniões rápidas com a equipa de operadores. Era um grupo pequeno, dedicado, e rapidamente estabelecemos rotinas sólidas. Eu programava de manhã, ajustava fluxos de trabalho à tarde e, de vez em quando, perdia-me em testes que só acabavam quando tudo estivesse limpo e eficiente.
Ao fim de poucos meses, o sistema funcionava com tal precisão que até o Olavo Bragança se mostrava impressionado. A Informax começou a crescer. Os clientes apareciam, a faturação subia, e novos colaboradores iam-se juntando ao projeto. Havia entusiasmo no ar, uma espécie de euforia silenciosa de quem vê uma ideia dar frutos.
Foi nesse contexto de expansão que comecei a colaborar como freelancer com a ICL. Os contactos tinham nascido da própria Informax, e depressa me vi a desenvolver módulos específicos para resolver problemas técnicos, usando Assembler e COBOL. Era um trabalho exigente, mas desafiador. E pagava bem. O código tornara-se a minha segunda pele.
Dividia-me entre a Informax e o trabalho freelance com naturalidade. A paixão pelo que fazia dava-me energia, e sentia que estava a construir algo com significado.
A Fernanda continuava presente, cúmplice silenciosa de muitas jornadas, já mais do que amiga, embora ainda sem nome oficial para o que nos unia.
E então, como uma interrupção mal cronometrada, chegou a carta. Era abril de 1979. Convocado para o serviço militar.
Li-a com um nó na garganta. Não era surpresa, mas doía. Estava no auge de uma fase criadora, de uma afirmação profissional que parecia imparável. E ali estava o Estado, a lembrar-me que o tempo dos homens nem sempre respeita o tempo dos sonhos.
Fui. Contrariado, mas com o estoicismo de quem sabe que há relógios que se podem parar… mas nunca se esquecem de reiniciar.
O serviço militar começou oficialmente com a minha entrada na Escola Prática de Administração Militar, a EPAM, em Lisboa. Um nome pomposo para um ambiente onde a rotina era feita de formaturas, marchas e ordens em tom de megafone. Fiz ali o tirocínio — quatro meses de treino, disciplina, muito sol nos ombros e pouco sono nos olhos.
Apesar da resistência natural a esse novo mundo, cumpri. E com rigor. Ao fim desses quatro meses, fui promovido. Mas a recompensa veio com um travo amargo: a minha colocação seria em Santa Margarida, um destino que não escolhi e onde pouco desejava estar. Era longe, isolado, e sentia que tudo aquilo estava a atrasar a vida que eu queria construir.
Mas nem a farda conseguiu apagar quem eu era. Continuei, nos tempos livres e aos fins de semana, a colaborar com a Informax e com a ICL. Apanhava transportes, reorganizava turnos, levava disquetes como quem transporta pão quente — e mergulhava de novo no mundo onde me sentia vivo. Programava à noite, lia manuais escondido dos olhos da hierarquia, sonhava em código.
E havia também a Fernanda. Sempre presente, cada vez mais próxima. Começámos a sair com mais frequência. Íamos ao cinema, almoçávamos em cafés discretos, passeávamos por Lisboa como dois amigos com tempo e sorrisos. Havia cumplicidade, partilha, carinho. Mas era ainda uma amizade pura — com aquele tipo de intimidade que só pode nascer quando ainda não se exige nada.
A farda, as botas, o capacete — tudo isso contrastava com a leveza dos fins de semana e com os olhos da Fernanda. Ela era o meu descanso no meio do ruído marcial, o meu intervalo doce entre dois exercícios de ordem unida.
E mesmo sem saber o que viria a seguir, já intuía: havia um sistema a compilar dentro de mim — e ela fazia parte do código.
Ainda fardado e a cumprir serviço militar em Santa Margarida, recebi um desafio que acendeu novamente o engenheiro dentro de mim. A ICL confiou-me o desenvolvimento de uma aplicação completa para uma empresa transportadora, entregando-me um dossier de análise detalhado — com tabelas, processos, fluxos de dados, tudo à moda antiga, mas meticulosamente elaborado.
Aceitei o desafio com entusiasmo. As tardes em Santa Margarida, depois das instruções e das marchas, tornaram-se os meus campos de trabalho criativo. Instalado num recanto do quartel, entre cervejas partilhadas com os camaradas e conversas sobre o mundo que se movia lá fora, estendia folhas de codificação sobre a cama ou sobre uma tábua improvisada e começava a desenhar lógica.
Cada folha preenchida à mão era como uma carta de amor ao futuro que me esperava. Sabia que não podia testá-las ali, que cada linha só ganharia vida mais tarde. Mas isso não me impedia de escrever com precisão, com propósito, com fome de resultado.
Aos fins de semana, deslocava-me a Lisboa e passava pela Informax. Aí, as folhas manuscritas eram digitadas com rigor. O código era então passado para cassetes e introduzido nos sistemas ICL 1500.
Começavam os testes, primeiro isolados, função por função, e depois, à medida que tudo encaixava, os testes integrados. A aplicação ganhava corpo, como uma locomotiva montada peça a peça.
A sensação era paradoxal: militar de dia, programador de noite; soldado aos olhos do Estado, engenheiro aos olhos do mercado. Mas essa duplicidade dava-me força. Sabia que o quartel era uma travessia, mas o código… o código era já o meu destino.
E entre uniformes, folhas perfuradas e cassetes magnéticas, fui construindo, linha a linha, a certeza de que nenhum serviço militar podia deter o passo de quem tem o futuro bem desenhado.
Em julho de 1980, o serviço militar ficou para trás. A farda, as idas, às segundas-feiras, para Santa Margarida, os turnos — tudo ficou guardado numa gaveta da memória, dobrado com algum alívio. Estava livre. E o mundo parecia abrir-se à minha frente com promessas de lógica, criatividade e realização.
Foi então que chegou o convite: juntar-me à ICL Computadores Lda, uma empresa ainda pequena em dimensão — com pouco mais de duas dezenas de colaboradores — mas imensa em ambição. A ICL estava em crescimento acelerado, impulsionada pela necessidade crescente de soluções informáticas no país e pelo talento de quem ali trabalhava.
Aceitei sem hesitar. A ICL não era apenas uma empresa. Era um viveiro de ideias, de inovação, de energia. Cada sala respirava tecnologia. As conversas nos corredores envolviam conceitos técnicos, sistemas operativos, desafios de programação. E eu sentia-me em casa.
Trabalhar ali era como estar num laboratório de futuro. Partilhava espaço com mentes brilhantes — algumas com anos de experiência internacional, outras com a inquietação crua da juventude. Havia entre nós um espírito de entreajuda e também uma saudável competição. Cada linha de código era um passo numa dança complexa, e cada projeto um novo mapa por desbravar.
Na ICL, pude aplicar o que aprendera e aprender o que nunca imaginara. Comecei a mergulhar em arquiteturas mais complexas, a compreender profundamente os sistemas mid-range e mainframes. Os dias eram longos, mas não se sentiam. Quando damos por nós a programar até depois do pôr do sol, sem reparar que já ninguém ficou no escritório… é porque estamos no sítio certo.
A Fernanda acompanhava tudo com aquele sorriso sereno de quem entende sem precisar de muitas palavras. Ela sabia que aquele era o meu mundo. E dava-me espaço para o viver, sem deixar de estar presente.
Foi na ICL que deixei de ser um programador promissor — e comecei a tornar-me um profissional completo. E mais do que isso: um homem em harmonia com o que sabe fazer.
Mal entrei na ICL, mergulhei de cabeça nos projetos da casa. Não havia tempo para adaptações suaves nem espaços para hesitações. A empresa confiou-me, de imediato, um conjunto de aplicações que estavam encalhadas — projetos que, por uma ou outra razão, tinham sido deixados em suspenso, acumulando perdas e frustrações.
A responsabilidade era enorme, mas também era ali que eu funcionava melhor. Escrevi código como nunca. Longas horas em frente ao terminal, testando, refatorando, escrevendo de raiz. Identifiquei falhas críticas, reorganizei blocos inteiros de lógica, corrigi erros que ninguém encontrava. Alguns programas que não funcionavam há semanas voltaram a correr — e correram bem.
Mas não fiquei só pelas aplicações. Também fui chamado a lidar com sistemas de comunicação dedicados, integrando modems e testando ligações entre sistemas que, até então, não se entendiam. Era como mediar conversas entre máquinas que falavam dialetos diferentes — e consegui que se ouvissem.
Aos poucos, os compromissos da ICL com os seus clientes iam sendo cumpridos. Projetos entregues. Clientes satisfeitos. E dentro da empresa, começaram a circular sorrisos de alívio e olhares de respeito.
Não fiz alarde. Apenas fiz o que sabia fazer — com paixão, com rigor, com aquele instinto técnico que já me acompanhava desde os tempos dos fios e pregos.
A admiração surgiu naturalmente. Não porque me impusesse, mas porque os resultados falavam por mim. Era o programador que resolvia o que parecia irresolvível. E, num meio onde o tempo e a confiança valem ouro, isso era tudo.
Naqueles primeiros meses na ICL, provei que não era apenas mais um técnico. Era alguém capaz de restaurar sistemas, reputações e rotinas com uma linguagem invisível que só o código bem escrito conhece.
Enquanto os projetos na ICL se desenrolavam a bom ritmo e o meu nome começava a ser associado à resolução de problemas complexos, fora das salas técnicas outro enredo ganhava corpo: a minha relação com a Fernanda.
A nossa amizade transformara-se, com a naturalidade das coisas bem lançadas, num amor tranquilo e sólido. A leveza dos almoços e dos passeios deu lugar a partilhas mais profundas, planos de vida e sonhos a dois. Fernanda era companheira, cúmplice, âncora e impulso. A sua presença, firme mas suave, dava-me uma serenidade que nem os maiores desafios profissionais conseguiam abalar.
Casámo-nos com alegria, sem alardes mas com muito coração. E não tardou a vinda de uma nova luz: em novembro de 1981, nasceu a nossa filha, Susana. A primeira vez que a peguei ao colo senti o mundo a mudar de escala. Tudo ficou mais nítido, mais precioso. A lógica do código deu lugar, por momentos, à lógica do coração — e tudo fazia ainda mais sentido.
Entre fraldas, madrugadas mal dormidas e um amor novo e intenso, continuei a trabalhar com afinco. E foi então que o diretor-geral da ICL me chamou. Tinha um convite: participar num projeto no Reino Unido. Era um desafio internacional, exigente, e era uma prova de confiança no meu trabalho.
De Belmonte a Lisboa, de Lisboa a Londres, agora não ia só eu. Ia um homem, um marido, um pai — pronto para traduzir os sonhos em código, e os dias em realizações.
A década de 1980 abriu-me as portas para uma etapa verdadeiramente transformadora. Em julho de 1981, recém-casado com a minha amada Fernanda e com o coração dividido entre a saudade e o entusiasmo, parti rumo ao Reino Unido, mais concretamente para Feltham, nos arredores de Londres. A missão era clara: integrar um projeto internacional da ICL — a prestigiada ICL Computer Ltd, uma empresa de referência na Europa e no mundo — para a validação de um novo computador, o DRS20. A ICL proporcionava, desde o primeiro momento, condições de excelência: viajei em classe executiva, fui instalado num hotel de cinco estrelas com todas as comodidades e integrado numa equipa multicultural com profissionais oriundos de diversos países. Este ambiente de inovação tecnológica, colaboração aberta e elevado nível de exigência fazia-nos sentir parte de algo grandioso. Tudo estava pensado para que nos concentrássemos no essencial: desenvolver soluções fiáveis e inovadoras. O projeto em si era fascinante. Tratava-se de testar todas as funcionalidades do novo sistema, identificar potenciais bugs, sugerir melhorias e preparar documentação de apoio técnico. Tínhamos acesso direto aos engenheiros que desenhavam os circuitos, aos programadores que escreviam o firmware e aos técnicos que preparavam os protótipos.
Esta sinergia entre as várias especialidades dava-nos uma visão integrada e prática da complexidade de criar um novo computador. Nos tempos livres, aproveitava para explorar Londres. Visitei o British Museum, maravilhei-me com os salões da National Gallery, passeava por Kensington Gardens e pelo Palácio de Buckingham. Aos fins de semana, ia até Windsor, Oxford ou Cambridge, saboreando a história e o charme das cidades britânicas. Mas o regresso a Portugal era sempre carregado de emoção — Fernanda e a pequena Susana esperavam-me com um sorriso que valia todo o cansaço acumulado. Esta primeira travessia internacional deu-me confiança, experiência e reconhecimento. Voltei a Lisboa em outubro de 1981, com o sentimento de missão cumprida e a certeza de que estava a trilhar um caminho sólido na área da tecnologia de ponta.
Nos anos seguintes, continuei a trabalhar intensamente com a ICL em Lisboa. A minha responsabilidade aumentava e os projetos multiplicavam-se. Fui chamado a dar resposta a exigências cada vez maiores de clientes importantes: bancos, ministérios, forças armadas e grandes empresas de transportes. O ambiente era desafiante, mas também profundamente estimulante. A empresa mantinha o mesmo espírito inovador e dava liberdade a quem demonstrasse iniciativa. Com essa liberdade, fui desenvolvendo produtos próprios para a ICL, que depois eram aproveitados em múltiplas implementações. A confiança cresceu, e com ela vieram novas oportunidades. Em meados de 1984 e 1985, voltei a ser destacado para o Reino Unido, desta vez para formações e projetos específicos. Estive em Manchester, Bracknell, Cardiff, Stevenage e em Slough, sempre envolvido com equipas especializadas em comunicações de dados e integração de sistemas.
Foi também neste período que mergulhei na área de comunicações com mainframes IBM, desenvolvendo soluções com protocolos 2780/3780, integrando ATMs, terminais bancários e sistemas de reporting centralizado. Era a era da informatização dos bancos, e estar na linha da frente desse movimento era entusiasmante.
Numa dessas missões, viajei para os EUA, mais concretamente para Utica, onde a ICL tinha estabelecido uma parceria com entidades locais. Foi a minha primeira visita aos Estados Unidos e, apesar do curto tempo, ficou na memória a escala da América e a sensação de estar no centro do mundo da inovação tecnológica. Estes anos moldaram-me profissionalmente e cimentaram o meu lugar na vanguarda da transformação digital em Portugal.
Em 1987, após quase uma década de colaboração intensa com a ICL, senti que era tempo de mudar. A empresa fora entretanto adquirida pela Fujitsu e os novos ventos trouxeram uma cultura organizacional menos compatível com o meu espírito criativo. Assim, aceitei o convite para integrar a Philips Data Communications, empresa holandesa que apostava fortemente na integração de dados e voz. Foi uma lufada de ar fresco. A Philips proporcionava igualmente condições excecionais: deslocações em classe executiva, hotéis de topo, laboratórios bem equipados e equipas multidisciplinares. Desloquei-me várias vezes aos Países Baixos, onde participei num projeto ambicioso de integração de redes para soluções bancárias, incluindo ATMs e terminais de caixa. As formações decorreram em Hilversum e Eindhoven, cidades que combinavam modernidade e tradição. Aos fins de semana, visitava Amesterdão, Roterdão, Haia e até Bruxelas. Os canais, os museus, os mercados de flores e o ambiente cosmopolita da Holanda alimentavam o meu espírito curioso.
A colaboração com uma empresa brasileira fornecedora de hardware levou-me também ao Brasil, com estadias em São Paulo e no Rio de Janeiro. Estava envolvido na adaptação de dispositivos para o sistema europeu e na implementação de uma rede bancária com comunicações em tempo real via X.25 — algo absolutamente revolucionário para a época. Este ciclo profissional abriu-me horizontes técnicos e humanos. Mas em 1988, um novo apelo surgiu: a ICL queria o meu regresso. E eu, com o coração dividido, acedi.
Voltei à ICL em 1988 com uma bagagem ainda mais rica. Desta vez, com um novo contrato e responsabilidades alargadas. Fui integrado em projetos de integração de redes de comunicação, focados na criação de infraestruturas que permitissem aos bancos comunicar em tempo real com as suas agências espalhadas pelo país. Viajei novamente para o Reino Unido, estive em Slough e em Reading, colaborando com equipas que desenvolviam soluções para o sector financeiro. Estava agora envolvido em projetos de maior escala, participando em decisões de arquitetura, segurança e expansão. A ICL proporcionava um ambiente de excelência, onde era possível conjugar iniciativa própria com apoio institucional. Muitos dos produtos que desenvolvi resultaram em implementações práticas em grandes bancos e instituições públicas. Continuei a trabalhar com protocolos IBM, mas também com redes TCP/IP que começavam a emergir como o novo padrão de interligação global. Nos momentos de lazer, nunca deixei de aproveitar. Explorei Cambridge, Bath, os museus técnicos de Londres e até Stonehenge, numa viagem pela história e pela espiritualidade. Contudo, nada se comparava ao regresso a casa: a Fernanda e a minha filhota Susana recebiam-me com beijos, abraços e saudade — a força que me sustentava em cada novo desafio.
Este período marcou o auge da minha carreira internacional e o início de um novo ciclo que me levaria a outros rumos — mas sempre com a chama da inovação a iluminar o caminho.
O ano de 1998 marcou um novo renascimento na minha vida profissional. Depois de décadas ao serviço de grandes empresas e de projetos que desafiaram o meu intelecto e alimentaram a minha paixão pela tecnologia, senti, com clareza serena, que chegara o momento de traçar um caminho totalmente meu. Um caminho onde pudesse, sem filtros ou limitações, dar corpo à minha visão do que é criar com engenho, elegância e utilidade. Foi assim que nasceu a Isiware.
Fundar a minha própria empresa não foi um gesto impulsivo. Pelo contrário, foi o fruto maduro de uma inquietação de longa data — a mesma inquietação que, desde os dias da infância em Alcains e Belmonte, me levava a desmontar brinquedos, a questionar o mundo e a imaginar soluções melhores para tudo o que me rodeava. A Isiware era a resposta natural desse espírito irrequieto que recusa o conformismo e acredita na força da ideia bem aplicada.
A Isiware nasceu com um propósito claro: colocar a inteligência, a experiência e o domínio tecnológico ao serviço de empresas reais, com problemas concretos. O nosso foco não era apenas o código — era a compreensão profunda dos processos, a escuta atenta ao cliente, e a criação de soluções sob medida, com robustez, simplicidade e sofisticação. Desenvolvemos sistemas de gestão para o retalho, plataformas de orçamentação industrial, soluções de apoio à decisão e aplicações de integração de comunicações — sempre com um traço de originalidade e compromisso técnico que me orgulhava.
Os primeiros anos foram intensos. Dias longos, noites curtas, e uma adrenalina saudável a percorrer-me o corpo cada vez que uma nova ideia tomava forma num terminal de desenvolvimento.
Não havia rede de segurança, mas havia um norte: a convicção de estar a construir algo com alma. Estabeleci laços com clientes de vários sectores — desde pequenas empresas industriais a grandes operadores de marketing — e em cada projeto via-se um reflexo da obsessão pela qualidade e do cuidado com o detalhe.
A Isiware não era apenas uma empresa. Era um manifesto. Um grito de liberdade criativa num país tantas vezes dominado pela rotina e pela mediania. Vivia-se ali um ambiente onde o conhecimento era valorizado, o rigor era exigido e a inovação era diária. Entre feiras tecnológicas, reuniões com parceiros e sessões maratonas de programação, eu sabia que estava exatamente onde devia estar: na vanguarda daquilo que podia ser um Portugal mais competente, mais ousado, mais inteligente.
A Isiware foi, e continua a ser, o espelho daquilo que sou: um espírito livre, com os pés no chão, mas os olhos sempre postos no futuro.
Em 2001, surgiu uma nova oportunidade profissional. Fui convidado a integrar a SolSuni, empresa dedicada à comercialização e implementação de sistemas Unix Solaris. A proposta surgiu no momento certo: a Isiware já estava consolidada, e a minha vontade de explorar novos horizontes técnicos e estratégicos mantinha-se viva. Na SolSuni abracei um novo desafio, coordenando projectos ligados à segurança informática, alta disponibilidade e redes empresariais. A experiência anterior com soluções Unix e a minha proximidade com tecnologias de comunicação de dados tornaram-se um trunfo valioso. Durante esta fase, reforcei o meu papel como consultor sénior, lidando com clientes de grande dimensão e ambientes críticos. Tive a oportunidade de trabalhar com bancos, seguradoras, entidades governamentais e empresas de telecomunicações. Cada projecto era uma oportunidade de inovação, onde o conhecimento técnico se fundia com a capacidade de ouvir e adaptar as soluções às reais necessidades do cliente.
Em 2002, aceitei um novo desafio, por um convite que me foi endereçado, para um novo projecto profissional, ao integrar o Banif – Banco Internacional do Funchal, através da sua empresa de informática, a BanifServ. Fui nomeado coordenador da equipa de infraestruturas tecnológicas, composta por uma dúzia de técnicos especializados. A minha missão era ambiciosa: modernizar e assegurar a robustez da arquitectura tecnológica do banco, garantindo eficiência, segurança e escalabilidade. Com liberdade de acção e visão estratégica, implementei soluções de virtualização, redes redundantes e planos de recuperação de desastres. Propus a adopção progressiva de plataformas Linux e software open-source, com o intuito de reduzir custos e aumentar a flexibilidade tecnológica. Contudo, nem tudo era simples. Enfrentei resistências, sobretudo da estrutura hierárquica, onde interesses instalados e burocracias emperravam o progresso. Um dos episódios mais marcantes foi o meu confronto com um director chamado Couves, cuja visão antiquada e falta de espírito colaborativo acabaram por colidir com a minha postura frontal e orientada para resultados.
A tensão acumulada e o ambiente sufocante levaram-me a sair do Banif em 2010, pouco antes do colapso que viria a abalar o banco em 2015. A minha saída, embora marcada por algum desalento, devolveu-me a liberdade de criar e inovar sem amarras institucionais. Decidi então fundar uma nova empresa – a SofteLabs – com o intuito de retomar a criação de software à medida, mas agora com foco em soluções cloud, virtualização, segurança informática e automação de processos. A experiência acumulada deu frutos imediatos, e projetos não faltaram. Ao mesmo tempo, retomei antigos contactos e novos clientes chegaram por recomendação. A liberdade de criar com propósito, de gerir o tempo com autonomia, e de continuar a aprender todos os dias, foi o que me manteve entusiasmado. A SofteLabs não era apenas uma empresa: era a extensão natural do meu espírito criador.
Entre 2011 e 2017, mergulhei em diversos projetos com clientes exigentes e estimulantes. Estive envolvido na construção de sistemas integrados de telecomunicações e na otimização de infraestruturas de TI. Trabalhei com empresas como a Emoções ao Quadrado, onde desenvolvi soluções para a gestão e execução de eventos, e criei plataformas seguras para a recolha e tratamento de dados sensíveis. Foram anos em que, para além do trabalho, continuei a estudar e a atualizar-me. Experimentei novas abordagens como o uso de containers, ambientes virtuais, e arquitetura orientada a serviços. Não deixava que a idade me travasse — antes me impulsionava. A paixão pela informática mantinha-se viva, quase adolescente.
Como nunca soube estar quieto, em 2018 decidi iniciar um novo projeto pessoal: adquiri um terreno de 320 m² numa zona tranquila da Sobreda da Caparica e vendi a moradia que até então habitava. Juntamente com a Fernanda, que como sempre partilhou do meu entusiasmo, avançámos com a construção de uma moradia moderna, pensada até ao mais ínfimo detalhe. Toda a estrutura foi feita em aço leve, respeitando princípios de sustentabilidade e isolamento térmico.
Mais do que uma casa, projetei um lar inteligente: com sistemas de videovigilância remota, sensores de movimento, automação da iluminação e controlo de climatização — tudo pensado, desenhado e implementado por mim. Em cada canto da casa estava inscrito um pedaço da minha história, da minha curiosidade, e da minha vontade de estar sempre um passo à frente.
Os anos avançavam, mas o meu espírito de inquietação criativa permanecia inalterado. Nunca fui dado a conformismos ou rotinas vazias. Assim, depois de deixar o Banif em 2010, e já com a SofteLabs em funcionamento, mergulhei inteiramente naquilo que sempre me deu alento: a criação de soluções tecnológicas com impacto concreto, tanto em empresas como na vida de pessoas.
A SofteLabs tornou-se o meu novo laboratório de ideias. Com ela, desenhei e implementei sistemas de gestão promocional, plataformas de orçamentação industrial, soluções de edição de imagem, automação de tarefas empresariais e diversas aplicações específicas para clientes exigentes. Nada me dava mais satisfação do que ver ideias nascerem do nada e transformarem-se em ferramentas úteis, elegantes e robustas. Durante esta fase, desenvolvi também projectos para empresas como a Emoções ao Quadrado, criadora de experiências interativas e marketing emocional. Para eles, construí sistemas de personalização de campanhas com inteligência artificial, muito antes de isso se tornar um tema da moda.
A Softelabs destacou-se, silenciosamente, por trás de bastidores empresariais de grande escala. Mas mais do que a dimensão técnica, o que me movia era a possibilidade de fazer diferente. Cada projeto era para mim mais do que código: era uma declaração de inconformismo, um grito subtil contra a mediocridade instalada, contra os automatismos vazios que via proliferar em tantas empresas e instituições. Continuei a trabalhar com entusiasmo quase adolescente, mesmo depois dos 60 anos. Comigo, o tempo parecia não querer fazer o seu papel de envelhecer vontades. Pelo contrário, cada desafio só me fazia sentir mais vivo. Nos intervalos da criação, cultivava outras paixões: lia muito, escrevia, observava o mundo com olhos críticos.
E, sempre que podia, partilhava com a minha Fernanda os pequenos prazeres da vida: um passeio, um jantar ao entardecer, uma conversa serena sobre os nossos filhos já crescidos, sobre a beleza e a complexidade do mundo. Com a SofteLabs, iniciei também a integração de conceitos de virtualização, cloud computing e segurança informática – áreas em que investi muito estudo e experimentação.
A criação de infraestruturas modulares, escaláveis e protegidas para os meus clientes tornou-se uma missão que abracei com zelo, especialmente quando me apercebi da fragilidade com que muitos negócios lidavam com os seus dados mais críticos. Nada disto, porém, me afastou da minha essência. Continuava o mesmo rapaz curioso que desmontava brinquedos para ver como funcionavam. Só que agora desmontava sistemas, empresas, estruturas mentais – sempre em busca de algo mais puro, mais eficaz, mais justo.
A década seguinte trouxe consigo novos ventos de liberdade e experimentação. Com a SofteLabs já estabilizada e reconhecida no seu nicho, comecei a dedicar mais tempo a desenvolver projetos que combinassem utilidade prática com originalidade conceptual. Sempre me recusei a seguir os caminhos mais fáceis ou convencionais, e essa teimosia criativa revelou-se uma bênção. Iniciei parcerias com pequenas empresas e empreendedores que partilhavam a mesma paixão por soluções eficientes e elegantes. Um desses projetos, uma plataforma de estimativa de custos industriais com visualização gráfica em tempo real, abriu portas inesperadas. Fomos convidados a apresentar a solução numa feira tecnológica no Porto, onde o feedback foi entusiástico. Ao mesmo tempo, nas horas mais calmas da noite, voltava ao meu velho caderno de ideias e conceitos filosóficos, onde rascunhava linhas de pensamento, reflexões sobre a sociedade e apontamentos para futuros livros. Era como se a técnica e a filosofia caminhassem juntas, numa dança que me completava.
Os anos passaram, mas a energia criativa não abrandava. Pelo contrário, a maturidade trouxe mais clareza e foco. A SofteLabs tornou-se também uma incubadora de ideias fora da caixa — um espaço onde a programação encontrava a literatura, a arte se aliava à lógica, e a rebeldia dava lugar à reinvenção. E, claro, sempre com a presença atenta e calorosa da Fernanda, dos meus filhos já adultos e das minhas netas que começavam a descobrir o mundo — tal como eu o fizera um dia, entre comboios e sonhos na estação de Belmonte.
Como nunca fui homem de me acomodar, em 2018 decidi vender a moradia da Sobreda, que nos acolhera durante tantos anos. Com a Fernanda ao meu lado, escolhi um terreno de 320 m² num lugar mais sossegado no mesmo bairro na Sobreda. Tinha em mente uma nova casa, mais moderna, eficiente e conectada com os meus valores de funcionalidade e inovação. Desenhei pessoalmente o sistema de vigilância e monitorização remota. Esbocei os planos com paixão, reunindo engenheiros e especialistas em construção leve de aço. A obra foi rápida, precisa, e dentro de meses tínhamos não apenas uma casa — mas um novo lar, um símbolo de reinvenção. Instalámos também um jardim lateral de plantas resistentes, decorado com pedras brancas e cinzentas. Era um pequeno oásis de tranquilidade onde, muitas vezes, me sentava a escrever ou simplesmente a contemplar o tempo. Ali nasceu uma nova fase da nossa vida: mais tranquila, mas não menos intensa. Foi nesse espaço que finalizei os meus livros, que sonhei com futuros projetos, que conversei longamente com os meus filhos e recebi os sorrisos cúmplices das minhas netas.
A nova casa não era apenas um edifício — era a materialização de tudo o que sonhei: independência, criatividade, família, legado.
Paixões e Missões
Os anos avançavam, mas o meu espírito de inquietação criativa permanecia inalterado. Nunca fui dado a conformismos ou rotinas vazias. Assim, depois de deixar o Banif em 2010, e já com a SofteLabs em funcionamento, mergulhei inteiramente naquilo que sempre me deu alento: a criação de soluções tecnológicas com impacto concreto, tanto em empresas como na vida de pessoas. A SofteLabs tornou-se o meu novo laboratório de ideias. Com ela, desenhei e implementei sistemas de gestão promocional, plataformas de orçamentação industrial, soluções de edição de imagem, automação de tarefas empresariais e diversas aplicações específicas para clientes exigentes. Nada me dava mais satisfação do que ver ideias nascerem do nada e transformarem-se em ferramentas úteis, elegantes e robustas. Durante esta fase, desenvolvi também projectos para empresas como a Emoções ao Quadrado, criadora de experiências interativas e marketing emocional. Para eles, construí sistemas de personalização de campanhas com inteligência artificial, muito antes de isso se tornar um tema da moda. A Softelabs destacou-se, silenciosamente, por trás de bastidores empresariais de grande escala.
Mas mais do que a dimensão técnica, o que me movia era a possibilidade de fazer diferente. Cada projeto era para mim mais do que código: era uma declaração de inconformismo, um grito subtil contra a mediocridade instalada, contra os automatismos vazios que via proliferar em tantas empresas e instituições. Continuei a trabalhar com entusiasmo quase adolescente, mesmo depois dos 60 anos. Comigo, o tempo parecia não querer fazer o seu papel de envelhecer vontades. Pelo contrário, cada desafio só me fazia sentir mais vivo. Nos intervalos da criação, cultivava outras paixões: lia muito, escrevia, observava o mundo com olhos críticos. E, sempre que podia, partilhava com a minha Fernanda os pequenos prazeres da vida: um passeio, um jantar ao entardecer, uma conversa serena sobre os nossos filhos já crescidos, sobre a beleza e a complexidade do mundo. Com a SofteLabs, iniciei também a integração de conceitos de virtualização, cloud computing e segurança informática – áreas em que investi muito estudo e experimentação. A criação de infraestruturas modulares, escaláveis e protegidas para os meus clientes tornou-se uma missão que abracei com zelo, especialmente quando me apercebi da fragilidade com que muitos negócios lidavam com os seus dados mais críticos.
Nada disto, porém, me afastou da minha essência. Continuava o mesmo rapaz curioso que desmontava brinquedos para ver como funcionavam. Só que agora desmontava sistemas, empresas, estruturas mentais – sempre em busca de algo mais puro, mais eficaz, mais justo.
Com a chegada da nova década, Francisco sentia que o tempo não lhe retirara o ímpeto de agir nem a vontade de inovar. Continuava a levantar-se cedo, com ideias efervescentes e um espírito de missão intacto. Ainda que o mundo à sua volta parecesse deslizar para a pressa superficial dos dias modernos, Francisco permanecia firme nas suas convicções, mais determinado do que nunca em deixar um legado que fosse além do tecnológico: um legado de integridade, de curiosidade e de serviço.
A convivência com os filhos adultos e com as suas netas tornara-se uma fonte constante de inspiração. Matilde e Sara, com as suas conversas vibrantes, projetos e visões do mundo, permitiam-lhe vislumbrar as esperanças e os desafios da nova geração. Francisco ouvia atentamente, orientava quando solicitado, mas sobretudo aprendia. A sua relação com Fernanda mantinha-se sólida e cúmplice, partilhando momentos de silêncio e de riso com a mesma intensidade de outrora.
As tardes eram muitas vezes passadas entre livros e código, entre jardinagem e reflexões filosóficas. Francisco passara a publicar com mais regularidade no seu blogue “Fragmentos do Caos”, onde tecia críticas lúcidas e poéticas ao estado da nação e aos labirintos de mediocridade em que muitos pareciam conformar-se. Os seus textos, cada vez mais lidos e comentados, faziam eco na mente de inconformados, jovens e menos jovens, que viam nele uma voz sem filtros nem máscaras.
Continuava também a escrever livros — uns autobiográficos, outros de ficção inspirada na sua vida. Usava o tempo com sabedoria, consciente de que cada dia era uma dádiva para expressar ideias, para construir pontes e para iluminar as consciências. Através da sua escrita e da sua tecnologia, continuava a lutar pelo país que sempre desejara: um Portugal menos submisso, mais justo, mais livre.
No âmago do seu ser permanecia intacta a centelha daquele rapaz curioso de Alcains, daquele adolescente determinado de Belmonte, daquele jovem apaixonado por computadores que, um dia, se tornara homem — não pelas imposições da vida, mas pelas escolhas que fizera com coragem.
Francisco Gonçalves era agora mais do que um nome. Era uma narrativa viva, feita de amor, luta, sonhos e reinvenção. E sabia que, no final, o verdadeiro legado não se media em património ou títulos, mas na capacidade de ter inspirado outros a não se renderem ao banal, a não se curvarem à mediocridade, e a ousarem ser livres, inteiros e luminosos.
E mesmo que os ecos das minhas palavras cheguem apenas a poucos, saberei que cumpri a missão de deixar pegadas firmes no caminho. A última página, tal como a primeira, está sempre por escrever. E talvez seja essa a beleza da vida: nunca termina verdadeiramente enquanto houver pensamento, amor e luta. Que venham mais páginas. Porque enquanto houver injustiça, ignorância ou indiferença, haverá sempre um Francisco pronto a escrever — com firmeza, verdade e um certo encanto rebelde. Fim... ou talvez apenas mais um recomeço.
À medida que fecho estas páginas, não o faço com um ponto final, mas com uma vírgula serena. A vida ensinou-me que nunca há fim definitivo para quem vive com paixão, curiosidade e desejo de mudança. Ao olhar para trás, vejo uma estrada longa, feita de estações, plataformas, travessias e encruzilhadas. Umas vezes em alta velocidade, outras em paragens demoradas. Em todas, fui caminhante e construtor do meu próprio trilho.
Os tempos mudaram, o país mudou, e eu também mudei — mas não abdiquei da lucidez nem da vontade de transformar. A minha escrita recente, nos “Fragmentos do Caos”, não é mais do que a extensão do olhar crítico que sempre me acompanhou. A recusa em aceitar a mediocridade tornou-se um imperativo ético. Porque Portugal merece mais. Porque os nossos filhos e netos merecem um país que os inspire, os desafie, os valorize. E não uma pátria refém da mesmice, da corrupção subtil, das promessas recicladas. Hoje, nos meus dias mais serenos, continuo a escrever, a programar, a imaginar futuros. Mantenho o mesmo brilho no olhar com que desmontava o triciclo aos cinco anos. A diferença é que agora, mais do que desmontar, desejo reconstruir — ideias, sistemas, mentalidades.
Às novas gerações deixo uma semente: a inquietação. Nunca se conformem. Nunca aceitem o “é assim mesmo”. Sonhem alto, estudem, debatam, desconfiem das soluções fáceis. Porque o mundo precisa de construtores de pontes, não de repetidores de slogans. E assim, termino esta narrativa de vida, não como quem se despede, mas como quem passa a tocha. Continuem. Acrescentem. Ultrapassem. Porque a história de um homem nunca é só dele — é um fragmento da história maior de todos nós.
À medida que fecho estas páginas, não o faço com um ponto final, mas com uma vírgula serena. A vida ensinou-me que nunca há fim definitivo para quem vive com paixão, curiosidade e desejo de mudança. Ao olhar para trás, vejo uma estrada longa, feita de estações, plataformas, travessias e encruzilhadas. Umas vezes em alta velocidade, outras em paragens demoradas. Em todas, fui caminhante e construtor do meu próprio trilho. Os tempos mudaram, o país mudou, e eu também mudei — mas não abdiquei da lucidez nem da vontade de transformar. A minha escrita recente, nos “Fragmentos do Caos”, não é mais do que a extensão do olhar crítico que sempre me acompanhou.
A recusa em aceitar a mediocridade tornou-se um imperativo ético. Porque Portugal merece mais. Porque os nossos filhos e netos merecem um país que os inspire, os desafie, os valorize. E não uma pátria refém da mesmice, da corrupção subtil, das promessas recicladas. Hoje, nos meus dias mais serenos, continuo a escrever, a programar, a imaginar futuros. Mantenho o mesmo brilho no olhar com que desmontava o triciclo aos cinco anos. A diferença é que agora, mais do que desmontar, desejo reconstruir — ideias, sistemas, mentalidades. Às novas gerações deixo uma semente: a inquietação. Nunca se conformem. Nunca aceitem o “é assim mesmo”. Sonhem alto, estudem, debatam, desconfiem das soluções fáceis. Porque o mundo precisa de construtores de pontes, não de repetidores de slogans. E assim, termino esta narrativa de vida, não como quem se despede, mas como quem passa a tocha. Continuem. Acrescentem. Ultrapassem. Porque a história de um homem nunca é só dele — é um fragmento da história maior de todos nós.
Chegado ao fim desta viagem feita de memórias, caminhos trilhados e sonhos insistentes, resta-me apenas deixar um gesto de gratidão pela vida vivida — com todas as suas lutas, conquistas e afetos.
Escrevi estas páginas com verdade e com alma, não para celebrar feitos extraordinários, mas para partilhar o percurso de alguém que nunca aceitou a mediocridade como destino. Que estas palavras possam inspirar quem as lê a ousar sonhar, a resistir ao conformismo e a construir, todos os dias, uma vida com sentido.
Porque, no final, é isso que fica: a história que deixamos no coração do tempo.
Francisco Gonçalves (2025)