Portugal Ă©, há quase meio sĂ©culo, palco de uma das danças mais previsĂveis do teatro polĂtico europeu: a alternância entre PS e PSD, esse bailado de corpos cansados que ensaiam sempre os mesmos passos, com as mesmas caras, as mesmas promessas, e o mesmo desfecho: o paĂs a marcar passo.
É um dueto coreografado com precisão milimétrica. Um entra em cena, faz um rodopio orçamental, distribui cargos, desvia a atenção com uma medida “inovadora” que já falhou em 1996, e depois tropeça nas próprias contas. O outro, que esperava nos bastidores, entra com um ar solene, varre os destroços com uma vassoura de plástico, e repete: “agora é que vai ser”. E assim se passam legislaturas, décadas e gerações.
Entre um governo e outro, trocam-se os nomes nos cartões de visita, mas não as práticas. A teia partidária estende-se por empresas públicas, institutos, assessorias, e fundações com nomes que inspiram confiança: “Novo Horizonte”, “Plataforma XXI”, “Agência para a Inovação da Coisa Nenhuma”. Tudo sob controlo, como manda a tradição lusitana de governar: com um olho no poder e outro no tacho.
O paĂs assiste, impávido e sereno, como quem já sabe que os bailarinos sĂŁo sempre os mesmos, sĂł mudam de sapatilhas. E quando um escorrega num caso de corrupção, lá vem o outro, indignado, prometer Ă©tica e transparĂŞncia… atĂ© ser apanhado com as mĂŁos na mesma marmita.
Esta dança não é democrática. É dinástica. Os partidos vivem da memória curta do eleitorado, do medo do “pior que pode vir” e da ilusão de que o alternar é sinal de saúde democrática, quando é apenas prova de um sistema bloqueado.
PS e PSD revezam-se com a precisĂŁo de um metrĂłnomo. Quando muito, variam no estilo: um finge-se socialista, o outro liberal, mas ambos governam com os mesmos vĂcios — uma mistura de clientelismo, facilitismo e uma boa dose de arrogância institucional.
A democracia portuguesa, em vez de se renovar, envelheceu. Em vez de abrir portas a novos protagonistas, montou um palco só com passadeiras vermelhas para quem já conhece os bastidores. O povo, esse, continua na plateia — sem direito a ensaio, sem acesso ao camarim, e muitas vezes sem bilhete.
E assim continua o bailado. Os mesmos pares, os mesmos tombos, o mesmo final: Portugal de joelhos, mas com as contas “tecnicamente equilibradas” — segundo os bailarinos.
AnĂbal Cavaco Silva foi o rosto da estabilidade, o sĂmbolo do Portugal “moderno” que se queria europeu, limpo, tecnocrático. E durante os seus longos anos como primeiro-ministro, fez-se passar por contabilista rigoroso de um paĂs desorganizado. Mas por trás da gravata justa e da voz pausada, escondia-se o grande ilusionista das finanças pĂşblicas.
Sob a sua governação, Portugal viveu a mĂtica dĂ©cada do “milagre econĂłmico”. As autoestradas brotavam do chĂŁo como espargos, os ministros anunciavam crescimentos como se fossem frutos de sementeiras matemáticas, e o paĂs parecia correr em direção Ă prosperidade. Tudo parecia possĂvel com Cavaco — atĂ© esconder o dĂ©fice atrás do biombo das cativações e da contabilidade criativa.
Mas o verdadeiro prodĂgio cavacal estava na arte de preparar o terreno para o que viria depois: o saque organizado, as privatizações relâmpago, a entrada dos boys com gravata e MBA. Foi nessa dĂ©cada que o aparelho do Estado aprendeu a vender barato e comprar caro, a entregar setores estratĂ©gicos a “investidores” com contactos certos e bolsos abertos.
E no coração deste novo Portugal de mercado estava um banco: o BPN. Criado com selo de respeitabilidade e dirigido por antigos colaboradores do cavaquismo, o banco rapidamente se tornou uma máquina de emprĂ©stimos a amigos, de truques contabilĂsticos e de negĂłcios obscuros. Cavaco, sempre distante, dizia nada saber. Mas os seus laços com figuras do BPN, e a compra oportuna de ações a preço simpático, deixam uma nĂ©voa espessa sobre essa inocĂŞncia.
Quando o escândalo rebentou, já Cavaco se preparava para a presidĂŞncia da RepĂşblica, esse cargo em que os ex-primeiros-ministros se purificam. E enquanto o paĂs descobria que o BPN era um buraco negro de milhares de milhões, pago pelo contribuinte, Cavaco comentava com o seu estilo habitual: “NĂŁo tenho por hábito comentar questões de detalhe.”
Detalhe, neste caso, eram os milhões perdidos. As offshores. As ligações. Os relatórios do Banco de Portugal que dormiram em gavetas fechadas. Os lucros de alguns. As perdas de todos.
O milagre econĂłmico de Cavaco foi, afinal, uma peça de teatro financeiro. E como em todo o bom teatro, havia bastidores. Bastidores cheios de papĂ©is sem assinatura, de reformas feitas pela metade, e de um paĂs anestesiado por boletins de crescimento enquanto os alicerces eram corroĂdos.
Cavaco saiu com ar de estadista. O paĂs ficou com a fatura. E o BPN? Esse renasceu sob outros nomes, com os mesmos vĂcios. Porque em Portugal, os milagres sĂŁo sempre pagos com juros.
Há histĂłrias que parecem escritas por um comediante cĂnico. O caso do BPN Ă© uma dessas: um banco inventado por figuras respeitáveis, decorado com paletĂłs bem passados e discursos sobre o “mercado livre” — e que acabou por ser um saco roto onde desapareceram milhares de milhões, com a elegância de um truque de salĂŁo.
O Banco PortuguĂŞs de NegĂłcios nĂŁo era um banco — era um palco. Ali se representava o sonho molhado da elite nacional: enriquecer com dinheiro dos outros, protegido por um sistema polĂtico que usava gravata de domingo e olhos de segunda-feira. Enquanto o cidadĂŁo comum declarava cada tostĂŁo ao Fisco, os senhores do BPN enchiam offshores com lucros irreais, facturas mágicas e negĂłcios entre primos.
O BPN nĂŁo faliu — foi abandonado. Foi deixado a apodrecer porque a sua missĂŁo já estava cumprida: lavar, desviar, financiar campanhas, sustentar redes. E quando a podridĂŁo começou a cheirar, a solução foi exemplar: o Estado, magnânimo e obediente, nacionalizou o banco. Sim, nacionalizou o prejuĂzo. Porque o lucro já estava em casa alheia.
O Fisco, que multa o trabalhador por engano de 20 euros numa fatura, não viu nada. A máquina tributária, tão eficiente com o pequeno contribuinte, entrou em modo zen. Durante anos, as operações paralelas do BPN escaparam a auditorias, inspeções ou penalizações. Foi um milagre fiscal: ninguém viu, ninguém soube, ninguém agiu.
O caso foi parar a tribunal. Anos depois, ainda se discutem tecnicalidades, prescrições, nulidades e argumentos dignos de manuais de ilusionismo jurĂdico. A montanha da justiça portuguesa move-se ao ritmo da conveniĂŞncia e da idade dos arguidos.
O cidadão olha e pergunta: “Mas ninguém foi preso?” Não, claro que não. Apenas alguns peões sacrificáveis, úteis para manter a ilusão de que algo se fez. Os verdadeiros beneficiários continuam serenos — alguns reformados com pensões douradas, outros em conselhos de administração, outros ainda comentadores televisivos.
O BPN foi o espelho de um Estado capturado. Um Estado que olha para o lado quando os seus são apanhados com a mão no cofre. E um Fisco que tudo vê — menos o que realmente importa.
A memória, como as finanças, tem os seus buracos. Em Portugal, chamam-se amnésia seletiva e impunidade organizada.
JosĂ© SĂłcrates apareceu como um cometa na polĂtica portuguesa: veloz, luminoso, barulhento e com uma cauda de promessas que riscava o cĂ©u da esperança nacional. Tinha a fala ágil de um vendedor de ideias e a pose de quem se vĂŞ ao espelho como o salvador de um povo que nunca pediu para ser salvo. Era o engenheiro da modernidade, o reformador urgente, o homem que falava de betĂŁo como se fosse poesia.
Mas o verdadeiro brilho de Sócrates estava nas PPPs — Parcerias Público-Privadas — uma sigla que, na sua era, significava basicamente isto: o público assume os riscos e o privado os lucros. Era uma engenharia financeira mais ousada do que a civil. Autoestradas, hospitais, sistemas informáticos, tudo podia ser “parceirado”, desde que os amigos certos estivessem no lado certo da equação.
As PPPs eram a encarnação perfeita do espĂrito socrático: aparentavam eficiĂŞncia, pareciam modernas, mas escondiam contratos com cláusulas obscuras, rendas fixas para privados e encargos variáveis para o Estado. Um presente embrulhado com fita tricolor — vermelho, verde e branco — que explodia anos depois no colo de quem pagava impostos.
Enquanto os jornalistas questionavam os custos, Sócrates fazia conferências. Enquanto os técnicos alertavam, ele inaugurava. Era o primeiro-ministro do futuro, mas com contas do passado. E quando finalmente as faturas chegaram, já ele voava entre Paris e Lisboa com aulas de filosofia e recibos pouco filosóficos.
E foi entĂŁo que rebentou a Operação MarquĂŞs. O paĂs descobriu que o engenheiro do progresso tinha uma relação Ăntima com malas, transferĂŞncias e “emprĂ©stimos entre amigos”. A engenharia civil deu lugar Ă engenharia financeira — da grossa. SĂłcrates, que um dia disse que nĂŁo sabia onde guardava a sua fortuna, passou a sĂmbolo de uma era onde a polĂtica se confundia com negĂłcio e a verdade com narrativa.
Mas o mais trágico nĂŁo foi a queda de SĂłcrates — foi o silĂŞncio que a antecedeu. Ministros cĂşmplices, banqueiros discretos, empresários agradecidos. Todos dançavam Ă volta da figura central como numa Ăłpera nacional de fachada modernista. E quando a mĂşsica parou, todos disseram: “NĂŁo sabĂamos.”
Sócrates foi mais do que um homem. Foi um regime. Um estilo. Uma escola de governação onde a aparência é tudo, o interesse público é um slogan e o privado é quem realmente governa.
As PPPs continuam. Os contratos persistem. Os amigos também. Só o povo é que paga — com portagens, taxas, e promessas rotas.
O TGV em Portugal foi talvez o comboio mais caro que nunca existiu. Nunca apitou, nunca arrancou, nunca fez paragem em lado nenhum — mas deixou um rasto de estudos, consultorias, apresentações PowerPoint e muitas malas com fechos reluzentes.
Foi anunciado com pompa, como se Portugal estivesse prestes a entrar numa nova era ferroviária. A Europa andava depressa, e nĂłs, como bons alunos do euro, querĂamos tambĂ©m acelerar. Afinal, que paĂs civilizado nĂŁo teria um comboio de alta velocidade para Madrid? Para Paris? Para a posteridade?
Só que em Portugal, os projetos de grande velocidade andam devagar. Muito devagar. Antes de se construir uma linha, constroem-se gabinetes. Antes de se cravar um prego, cravam-se avenças. E antes de se arrancar um metro de carril, arrancam-se milhões do orçamento.
O TGV era o sonho húmido dos ministros da engenharia sem cálculos. Dos gestores públicos com cartão dourado. Dos autarcas com mapas coloridos e discursos vibrantes. Cada cidade queria uma estação, cada estação gerava um plano, cada plano uma adjudicação. E cada adjudicação… um mistério de orçamentos em crescendo.
Os relatĂłrios eram Ă©picos. Os estudos de impacto ambiental, bĂblicos. As projeções de passageiros, delirantes. E o custo? Ah, o custo era sempre “estimado”, como quem diz “vamos ver atĂ© onde conseguimos ir sem que ninguĂ©m grite”.
Entretanto, a troika chegava. O paĂs cortava salários, congelava pensões e mandava emigrar a juventude. Mas os dossiĂŞs do TGV continuavam a circular nos corredores. Eram pesados, mas elegantes. Tinham capas plastificadas e siglas pomposas.
Hoje, o TGV Ă© uma lenda urbana. Uma espĂ©cie de Santo Graal da mobilidade. Fala-se dele em conferĂŞncias, mostra-se em maquetes, mas nunca se viu um centĂmetro real de carril dedicado. O povo, esse, continua a viajar em comboios que param por causa da chuva, do vento ou da greve eterna dos maquinistas.
Mas os milhões que foram para estudos, assessorias, pareceres e powerpoints esses… evaporaram. Não se ouve falar deles. Não se pedem de volta. Não há responsáveis. Apenas um longo silêncio, como aquele que precede o anúncio de que “o projeto será reavaliado”.
O TGV português não transportou passageiros. Transportou dinheiro. Da esfera pública para bolsos privados — com paragem obrigatória na zona cinzenta do Estado. E nunca chegou a partir, porque já tinha chegado onde era preciso: ao destino dos de sempre.
Durante dĂ©cadas, Ricardo Salgado foi tratado com o respeito reservado a cardeais do capital e patriarcas da economia. Era o “Dono Disto Tudo”, como se autointitulava em surdina, mas com a convicção de quem realmente mandava. E, de facto, mandava. Mandava nos crĂ©ditos, mandava nas empresas, mandava atĂ© na polĂtica — com um simples levantar de sobrancelha.
Ă€ frente do impĂ©rio EspĂrito Santo, Ricardo Salgado cultivava o ar austero de quem nunca perde a compostura, mesmo quando perde milhões. Sentava-se em conferĂŞncias como um oráculo, distribuĂa sorrisos a ministros, financiava campanhas com a mesma facilidade com que oferecia champanhe. Era o banqueiro do regime — de todos os regimes.
O BES, sob a sua batuta, era mais do que um banco. Era uma máquina de influĂŞncia, uma plataforma de poder, uma zona franca para grandes negĂłcios em pequeno cĂrculo. As comissões eram generosas, os crĂ©ditos flexĂveis, os parceiros bem escolhidos. E os problemas? Esses eram adiados com o talento de quem aprendeu que a contabilidade, como a polĂtica, Ă© uma questĂŁo de narrativa.
Mas as contas nĂŁo mentem para sempre. Quando o impĂ©rio começou a ruir, Salgado ainda tentou manter a pose. Disse-se vĂtima. VĂtima de uma campanha, de um complĂ´, de uma conspiração internacional. SĂł nĂŁo disse que era vĂtima da prĂłpria ganância.
A queda foi lenta, mas previsĂvel. Os buracos eram abismais, os offshores surgiam em cascata, e as ligações entre o banco, empresas-fantasma e familiares pareciam uma novela mexicana escrita por um contabilista criativo. O Estado fingiu surpresa. O Banco de Portugal fingiu ignorância. E a justiça, claro, fingiu que estava a investigar.
No fim, Salgado foi condenado. Mas nĂŁo a devolver os milhões — apenas a alguns meses de prisĂŁo domiciliária, com pulseira, televisĂŁo e conforto. Um castigo tĂŁo simbĂłlico quanto o seu tĂtulo de “ex-banqueiro respeitado”.
Enquanto isso, os lesados do BES — cidadãos comuns, pequenos investidores, reformados que acreditaram no “solidez” do banco — esperam. Esperam por justiça, por reembolso, por explicações. Esperam como quem espera por comboio na estação errada.
Ricardo Salgado nĂŁo foi apenas um banqueiro que faliu. Foi o arquiteto de um modelo: o modelo do privilĂ©gio, da promiscuidade entre polĂtica e finança, da impunidade dourada. Um modelo que ainda hoje vive e respira nos salões discretos da RepĂşblica.
O Dono Disto Tudo pode já não mandar em nada. Mas o sistema que o venerou continua de pé — polido, bem-falante, e à espera do próximo Salgado.
Num paĂs onde há quem esconda segredos no cofre, no offshore ou debaixo do colchĂŁo, Portugal trouxe-nos um novo clássico da literatura fiscal: os 70 mil euros escondidos entre livros numa estante. A obra nĂŁo está disponĂvel nas livrarias, mas o tĂtulo já entrou para os anais do absurdo polĂtico nacional.
O protagonista? Um assessor próximo de António Costa, discreto como convém, mas suficientemente relevante para frequentar os corredores do poder. O cenário? Um gabinete ministerial. O enredo? Uma busca policial que descobre notas cuidadosamente arrumadas entre obras de referência — talvez Marx, Sun Tzu, ou quem sabe... *Como Governar Sem Ser Apanhado*.
A reação polĂtica foi de uma previsibilidade tocante. Costa, imperturbável, fez de conta que tropeçara num parágrafo mal lido. O Partido Socialista defendeu-se com a habitual ladainha de “nĂŁo comentamos investigações em curso”. E a oposição? A oposição gritou, indignou-se, e voltou a beber cafĂ©.
O povo, esse, já nem se escandaliza. Sabe que por cada envelope encontrado, há cinquenta que nunca serão abertos. Sabe que o assessor foi apenas apanhado no jogo da distração — onde o truque não está em não roubar, mas em não ser filmado.
A imagem das notas entre os livros Ă© quase poĂ©tica. Um retrato fiel do Portugal contemporâneo: cultura na capa, corrupção entre as páginas. Um paĂs que imprime manuais de Ă©tica pĂşblica, mas cuja prática cabe numa pasta castanha com fecho de velcro.
Ninguém perguntou o que fazia um assessor com tanto dinheiro em notas. Ninguém quis saber como ali chegou, por que razão, com que origem. Porque perguntar demais em Portugal é falta de educação. E responder... é só para quem não tem advogado.
O escândalo, como todos os outros, foi engolido pelo ciclo noticioso. Surgiram novos casos, novas manchetes, novas distracções. E os 70 mil euros? Talvez continuem entre livros. Talvez tenham mudado de estante. Talvez estejam já a financiar outro assessor, noutra ala.
O importante é manter o volume baixo, o sorriso preparado e a estante arrumada. Porque em Portugal, até a literatura já se escreve em notas. E a única coisa que arde mais do que o papel... é a paciência de um povo que continua sem soltar um ai.
Se há tradição portuguesa que sobreviveu à monarquia, à república, ao fascismo e à democracia, foi o compadrio. Em Portugal, não se governa com ideias — governa-se com favores. E o Estado não é um organismo impessoal e eficiente, mas sim um clube de amigos, primos, cunhados e ex-assessores.
Tudo começa com uma nomeação. Um cargo. Um lugar numa comissĂŁo tĂ©cnica que pouco decide mas muito paga. Os critĂ©rios? Lealdade, disponibilidade para o silĂŞncio e, acima de tudo, pedigree partidário. O currĂculo Ă© opcional. A competĂŞncia, um detalhe. O que interessa Ă© saber “de onde vem” e “para quem trabalhou”.
Concursos públicos são como peças de teatro: o guião já está escrito, o protagonista escolhido, os figurantes convocados. Há júris, há entrevistas, há anúncios no Diário da República — tudo respeitável. Mas no fim, ganha quem já sabia que ia ganhar. Os outros estão lá para dar verosimilhança ao processo.
A administração pública tornou-se uma máquina oleada de promoção interna partidária. Um militante que começa como assessor de junta pode, com disciplina e bons contactos, chegar a diretor-geral de qualquer coisa. Não importa se sabe do assunto. O importante é que saiba a quem deve a ascensão.
E assim se distribuem gabinetes, chefias, direções, assessorias e pareceres. O Estado tornou-se o maior empregador de lealdades. Há mais compadres no topo da hierarquia do que especialistas. E cada novo governo herda a rede do anterior, apenas para a substituir por outra, da mesma malha mas com cores diferentes.
A meritocracia Ă© uma palavra bonita para dizer nas conferĂŞncias. No terreno, quem entra por mĂ©rito Ă© olhado com desconfiança. “Quem será este que veio sem cunha?”, perguntam-se nos corredores. Pior ainda se tiver ideias prĂłprias — essas sĂŁo perigosas, podem abalar o equilĂbrio delicado da inĂ©rcia institucional.
O resultado? Um Estado lento, pesado e infestado de mediocridade institucionalizada. Onde decisões importantes ficam suspensas porque o compadre ainda não chegou de férias. Onde reformas são travadas porque a rede precisa de tempo para se adaptar. Onde o talento foge para o estrangeiro, e o conformismo é promovido.
O compadrio em Portugal não é ilegal — é estrutural. Está em leis escritas com espaço para exceções, em regulamentos feitos à medida, em práticas validadas pelo tempo e pela passividade.
E o povo? O povo já sabe. Por isso, quando ouve que “fulano foi nomeado”, pergunta logo: “É filho de quem?”
Há paĂses onde o poder se mede em votos, em ideias, em projetos. Em Portugal, mede-se em assessores. Nenhum governo se instala sem primeiro montar um exĂ©rcito de conselheiros, adjuntos, tĂ©cnicos especializados, chefes de gabinete e consultores para os consultores. E todos, claro, pagos com o rigor de um orçamento que sĂł Ă© apertado para os de baixo.
O fenĂłmeno Ă© quase esotĂ©rico. Os assessores surgem como por magia — ninguĂ©m os conhece, ninguĂ©m sabe o que fazem, mas todos recebem. Nomes desconhecidos com salários generosos e funções nebulosas. “GestĂŁo estratĂ©gica de imagem institucional”, “articulação transversal de polĂticas pĂşblicas” ou “apoio tĂ©cnico Ă visĂŁo do ministro”. Tudo serve para justificar vencimentos que fariam corar um cirurgiĂŁo.
E depois há os gabinetes. Gabinetes que cabem num T2, mas onde se empilham 15 pessoas, duas cafeteiras e uma impressora que imprime silêncio. Cada nova remodelação é uma oportunidade de reciclar nomes: o que era assessor de um passa a ser consultor de outro. Quem saiu pela porta do ministério, entra pela janela da empresa pública.
Os contratos, claro, sĂŁo por ajuste direto. Porque Ă© urgente. Sempre Ă©. A urgĂŞncia em Portugal Ă© uma virtude administrativa: permite ignorar concursos, mĂ©rito, experiĂŞncia e atĂ© currĂculo. Basta um telefonema. Uma amizade antiga. Um “pá, vĂŞ lá se arranjas um lugarzito para o miĂşdo que está sem nada”.
Mas onde é que está o dinheiro para tudo isto? Nos cofres do sótão, naturalmente. Aqueles espaços ocultos da contabilidade pública onde se guardam rubricas maleáveis, fundos de reserva, apoios estruturais e verbas de “requalificação de serviços”. Um labirinto orçamental onde se esconde o que não pode ser visto.
E o Tribunal de Contas? Bem, o Tribunal de Contas chega sempre tarde. Quando chega. E mesmo quando chega, recomenda, sugere, assinala — mas raramente trava. Porque travar assessores é travar a própria engrenagem do poder.
Portugal tornou-se um paĂs onde as ideias escasseiam, mas os assessores abundam. Um paĂs onde a pobreza aumenta, mas os gabinetes crescem. Onde o cidadĂŁo nĂŁo tem mĂ©dico de famĂlia, mas cada secretário de Estado tem trĂŞs assessores de imprensa.
E quando o orçamento aperta? Cortam-se pensões, congelam-se salários, encerram-se escolas. Mas nunca se fecha o cofre do sótão. Porque ali vive o verdadeiro Estado: aquele que ninguém elegeu, mas que comanda — nas sombras, com crachá, cartão de acesso e contrato renovável.
Todos os anos, Portugal arde. Arde o mato, arde a floresta, arde o pinhal, arde o eucalipto. Ardem casas, aldeias, memórias. Arde o corpo dos bombeiros voluntários e a alma dos que ficaram para trás. Mas o que nunca arde é a responsabilidade.
Porque quando o fogo chega, o paĂs acende as velas, os telejornais instalam-se nas estradas de terra, os ministros aparecem de helicĂłptero e as câmaras fazem diretos com legendas dramáticas. E depois? Depois voltamos todos para casa, abanamos a cabeça e esperamos pelo prĂłximo verĂŁo.
A polĂtica portuguesa tem um talento especial para a reação tardia. SĂł depois da tragĂ©dia Ă© que se lembram de planos, reformas e reorganizações. Nomes pomposos como “Sistema Integrado de GestĂŁo de Fogos Rurais” aparecem com siglas novas, logĂłtipos caros e promessas recicladas. Mas no terreno, continua tudo igual: bombeiros com mangueiras rotas, autocarros escolares a servir de evacuação, e mapas de risco riscados com caneta Bic.
Os culpados? Há muitos, mas todos estão em parte incerta. O ministério diz que avisou, a proteção civil diz que não tinha meios, a autarquia diz que não é da sua competência, e o cidadão é aconselhado a limpar os terrenos com uma enxada e esperança.
E assim se perpetua a farsa da prevenção. Criam-se observatórios, comissões técnicas e “grupos de trabalho” que elaboram relatórios para gavetas onde já repousam os planos anteriores. Cada incêndio traz promessas de “nunca mais”, que duram até ao primeiro acendalha da próxima temporada.
O eucalipto, esse, continua a multiplicar-se como se tivesse direito de voto. É a espécie oficial da República Ardida. Cresce depressa, rende dinheiro, e arde com eficácia. Ideal para quem planta, trágico para quem vive perto.
No final, depois do fogo, vem o teatro do rescaldo. O Presidente visita ruĂnas com expressĂŁo consternada. A ministra fala em “lições a tirar”. As televisões filmam os velhotes sentados em bancos de pedra. E os lobbies madeireiros contam os lucros.
“O fogo é nosso”, dizem alguns. Mas a resposta… essa pertence ao vazio institucional, à falta de vontade, ao compadrio entre interesses e inércia. Porque em Portugal, quando a sirene toca, o sistema responde com silêncio.
E o povo? O povo enterra os mortos, planta novos pinheiros, reza que o próximo verão seja menos quente — e espera. Espera por justiça, por memória, por mudança. Espera como quem sabe que, no fim, a culpa morrerá sempre solteira.
Num paĂs onde os incĂŞndios sĂŁo mais frequentes que as chuvas de outono, seria de esperar que os meios aĂ©reos estivessem prontos, afinados e a postos como os sinos de uma aldeia ao domingo. Mas nĂŁo. Em Portugal, os helicĂłpteros chegam depois das cinzas. Ou pior: ficam em terra.
O espetáculo repete-se a cada verĂŁo. Os contratos de aluguer de meios aĂ©reos sĂŁo lançados tarde, discutidos em surdina, adjudicados em cima do acontecimento. Há anos em que os helicĂłpteros nĂŁo voam porque nĂŁo há contrato, ou porque o contrato foi impugnado, ou porque o combustĂvel nĂŁo chegou, ou porque o piloto está de fĂ©rias. E entĂŁo, o fogo sobe Ă serra e desce atĂ© Ă s aldeias — sem concorrĂŞncia no cĂ©u.
Depois vêm os relatórios, as explicações técnicas, as entrevistas com os responsáveis da Proteção Civil a garantir que “tudo foi feito dentro da legalidade”. E talvez tenha sido. O problema é que a legalidade portuguesa tem o ritmo de um burro cansado, e os incêndios têm a velocidade de um lobo faminto.
E as estradas? Ah, as estradas. Tornam-se armadilhas de fumo e morte. FamĂlias inteiras encurraladas entre chamas, sinais de trânsito derretidos, carros abandonados com portas abertas e malas queimadas. O Estado, que deveria guiar e proteger, fica sem GPS, sem plano, sem comando.
As comunicações falham, os planos de evacuação são folhas molhadas, e a coordenação entre bombeiros, GNR, INEM e autarcas assemelha-se a um ensaio escolar sem ensaios. No fim, há sempre um discurso a prometer “melhor articulação” e “modernização dos meios”. O que nunca há é vergonha.
O paĂs vĂŞ helicĂłpteros em exposição na Feira da Agricultura, mas nĂŁo os vĂŞ onde Ă© preciso: no cĂ©u de PedrĂłgĂŁo, de Oleiros, de Pampilhosa. VĂŞ viaturas novas nos quartĂ©is, mas nĂŁo vĂŞ combustĂvel para as manter operacionais. VĂŞ drones comprados com fundos europeus, mas nĂŁo os vĂŞ a vigiar o mato.
A tragĂ©dia das estradas ardidas e dos helicĂłpteros que nĂŁo voam Ă© mais do que um falhanço logĂstico. É o retrato de um Estado que reage, mas nĂŁo previne. Que se emociona, mas nĂŁo se organiza. Que anuncia milhões, mas entrega promessas.
Enquanto isso, o povo decora os nomes das vĂtimas e os repete todos os anos. Como se fossem parte de uma ladainha nacional, cantada entre cinzas e lágrimas. E pergunta-se: será que para o ano os helicĂłpteros voam?
A resposta Ă© a de sempre: depende do concurso pĂşblico. E do vento.
No mapa administrativo de Portugal, as câmaras municipais não são apenas autarquias — são feudos. Cada presidente de câmara é um pequeno monarca com corte própria, brasão partidário e orçamento à sua inteira disposição. Governam praças, rotundas e freguesias com mão firme e bolso largo. E tudo com a bênção de um eleitorado que, muitas vezes, troca votos por favores, empregos ou promessas de alcatrão.
A democracia local, essa joia da descentralização, tornou-se um palco onde o nepotismo, a corrupção e o compadrio se apresentam em sessões contĂnuas. Os concursos pĂşblicos sĂŁo desenhados com rĂ©gua e esquadro para que o empreiteiro amigo fique bem colocado. O cafĂ© do cunhado ganha a concessĂŁo do parque. A empresa da prima fica com o contrato das fotocĂłpias. E ninguĂ©m vĂŞ problema, porque “é assim que se faz cá na terra”.
As obras públicas são o festival da despesa: rotundas que custam mais do que bibliotecas, ciclovias que ligam o nada ao lugar nenhum, pavilhões multiusos onde só se ouvem os ecos do vazio. Tudo justificado com estudos de impacto, relatórios ambientais e frases como “estratégia para o desenvolvimento integrado”.
Mas o verdadeiro desenvolvimento Ă© outro: o do patrimĂłnio pessoal de alguns autarcas. Compram-se terrenos antes da reclassificação do PDM, vendem-se apartamentos a sociedades fictĂcias, abrem-se sociedades de fachada com testas-de-ferro. E quando alguĂ©m investiga, há sempre um erro tĂ©cnico, uma falha de comunicação ou uma amnĂ©sia sĂşbita.
A fiscalização? Fraca, dispersa, dependente. Os ĂłrgĂŁos que deveriam supervisionar as autarquias vivem da boa vontade polĂtica. E o MinistĂ©rio PĂşblico, sobrecarregado e politicamente condicionado, avança com investigações que duram dĂ©cadas — ou morrem na praia do arquivamento.
E os munĂcipes? Muitos assistem calados, outros colaboram, outros beneficiam. Porque nas pequenas comunidades, denunciar Ă© ser traidor. E questionar o poder Ă© perder o apoio para o ATL da filha, a junta para limpar o terreno ou a promessa de emprego sazonal no verĂŁo.
As câmaras sĂŁo caixas-fortes de poder real. Mandam mais que ministros. Decidem mais que deputados. Conhecem as famĂlias, os negĂłcios e os esqueletos no armário de cada freguesia. SĂŁo o coração pulsante de uma repĂşblica feudal com orçamento democrático.
E assim se perpetua o ciclo. O presidente que arranja o campo de futebol Ă© reeleito. O vereador que distribui subsĂdios ganha mais influĂŞncia. E o povo, entre a gratidĂŁo e o medo, continua a votar com o bolso — e nĂŁo com a consciĂŞncia.
Porque em Portugal, a polĂtica local Ă© tudo menos local. É o espelho de um paĂs onde o saque se organiza Ă escala do municĂpio — com ata, carimbo e hino da terra ao fundo.
Portugal Ă© um paĂs com 308 municĂpios e 308 oportunidades para a corrupção florescer em paz. A corrupção autárquica nĂŁo faz barulho — sussurra. Move-se em almoços discretos, em ajustes diretos, em pareceres feitos Ă medida e em promessas de campanha que se concretizam… para os amigos.
O mapa do paĂs deveria incluir zonas vermelhas — nĂŁo de incĂŞndios, mas de irregularidades crĂłnicas. Câmaras onde as empreitadas sĂŁo sempre para os mesmos, onde as obras derrapam antes de começarem, onde os terrenos pĂşblicos mudam de dono como se fossem cartas de baralho.
A corrupção autárquica tem sotaque local e jeito de vizinhança. NĂŁo precisa de offshores — basta um cafĂ© na praça, uma empresa do primo e um envelope na secretária. Muitas vezes nem há dinheiro fĂsico. Há favores. O filho que entra na junta. O genro que ganha o concurso. A obra que aparece no sĂtio certo, no tempo certo, com os custos certos… para o empreiteiro errado.
E quando o Ministério Público aparece, os autarcas transformam-se em poetas. Falam de “má interpretação dos procedimentos”, de “confiança depositada em técnicos”, de “erros administrativos involuntários”. E enquanto se investigam contratos, os documentos somem, os discos avariam e os testemunhos esquecem.
A justiça é lenta, muito lenta. Tão lenta que muitos casos prescrevem antes de chegar a julgamento. Outros caem num limbo de recursos, contestações e prazos esgotados. E no fim, o culpado é um técnico de segunda linha ou um vereador sacrificado no altar do silêncio cúmplice.
O povo? Vai assistindo, entre o conformismo e a resignação. Porque nas pequenas terras, quem fala demais perde a licença, o subsĂdio, o emprego temporário ou o apoio da câmara para o grupo de teatro local. E por isso cala-se. Ou muda de freguesia.
A corrupção autárquica Ă© invisĂvel porque todos fingem que nĂŁo a vĂŞem. Está nos almoços pagos com cartĂŁo da câmara. Nos contratos de alcatrĂŁo que reaparecem ano apĂłs ano. Nas rotundas com estátuas de gosto duvidoso e custo exorbitante. No nepotismo transformado em polĂtica cultural.
Não há mapa oficial da vergonha. Mas basta caminhar de concelho em concelho, de junta em junta, de boletim em boletim — e ele revela-se, não em dados, mas em olhares desviados, portas fechadas e licitações ganhas por quem já tinha a chave.
E assim se mantém o ciclo: eleição, corrupção, esquecimento, reeleição. Como se fosse natural. Como se fosse tradição. Como se a democracia local fosse apenas uma fachada onde se pendura a bandeira da legalidade — por cima da cave da promiscuidade.
Há um Portugal que sĂł existe nos discursos. O Portugal das serras, das aldeias, dos rios esquecidos e dos cafĂ©s com bancos de madeira. Um paĂs com mais silĂŞncios do que estradas, onde o tempo anda devagar e o progresso passa ao lado. Esse Ă© o Interior.
Durante quatro anos, o Interior Ă© invisĂvel. NĂŁo há comboios, nem mĂ©dicos, nem tribunais, nem escolas. Fecha-se o posto dos CTT, a esquadra da GNR, o centro de saĂşde. As populações envelhecem, os jovens fogem, os campos ficam ao abandono. A Ăşnica coisa que cresce Ă© o mato — e a revolta.
Mas quando se aproximam as eleições, o Interior torna-se valioso. Subitamente, há promessas. Muitas promessas. Estradas novas, centros logĂsticos, polos universitários, banda larga em todas as aldeias e atĂ© aeroportos onde sĂł há vacas. Os ministros visitam feiras, os deputados passeiam em romarias e os cartazes prometem “ligar o paĂs ao futuro”.
É nessa altura que o Estado regressa — com folhetos, com discursos, com autocarros de campanha. O eleitor do Interior, que durante anos foi tratado como nĂşmero estatĂstico irrelevante, torna-se o centro da estratĂ©gia. Porque cada voto conta. E no Interior, poucos decidem muito.
Mas assim que se fecha a urna, tudo volta ao normal. O progresso entra em modo de hibernação. As verbas desaparecem. Os projetos evaporam-se em estudos. E a terra volta ao silêncio, à solidão e à espera.
Os autarcas tentam sobreviver entre a promessa e a migalha. Escrevem cartas, fazem ofĂcios, organizam protestos moderados. Mas o poder central responde com paciĂŞncia colonial: “estamos a avaliar”, “há constrangimentos orçamentais”, “é preciso estudar a viabilidade”.
A verdade? O Interior não dá lucro. Não tem grandes contratos, não tem lobbies, não tem capas de jornais. Só tem gente — e essa gente tem memória. Mas nem sempre tem força.
E por isso, o ciclo repete-se. O abandono, a promessa, o voto, o esquecimento. Um paĂs partido em dois: um litoral urbano e barulhento, e um interior que morre em silĂŞncio — mas que, de tempos a tempos, ainda sonha que alguĂ©m venha para ficar.
Porque o Interior não quer caridade. Quer dignidade. Quer justiça territorial. Quer aquilo que o Estado sempre prometeu — e quase nunca cumpriu.
Quer ser parte do paĂs. E nĂŁo apenas um palco de campanha onde os sorrisos sĂŁo mais fugazes que os autocarros.
Portugal Ă© um paĂs de gente que aguenta. Aguenta a conta da luz, aguenta o aumento da gasolina, aguenta o hospital fechado, a escola longe, o comboio que nĂŁo passa. Aguenta salários baixos, filas longas, impostos altos, governantes medĂocres. E ainda sorri no fim, como quem diz: “podia ser pior”.
Há quem chame a isso resiliência. Outros chamam resignação. Mas seja qual for o nome, é esse traço profundo de aceitação que moldou o povo português como um corpo resistente, mas curvado. Um povo que aprendeu a sofrer em silêncio, que não exige, que não protesta, que acredita que reclamar é falta de educação — ou perda de tempo.
As crises sucedem-se: a financeira, a pandémica, a habitacional, a climática. E o povo? Suspira. Aperta o cinto. Vota nos mesmos. Aplaude promessas velhas com sotaque novo. Vai à televisão chorar e depois volta ao trabalho com a cabeça baixa. A dor transforma-se em rotina, a indignação em desabafo doméstico.
Esta passividade é, em parte, herança de séculos de opressão, de Inquisição, de ditadura, de autoridade cega. E também de uma cultura que valoriza o “não te metas”, o “cada um por si”, o “Deus há de ajudar”. É o fado transformado em método de governação.
Os governantes conhecem bem esse silĂŞncio. Contam com ele. Sabem que podem adiar reformas, anunciar cortes, ignorar escândalos — porque o povo, no fim, aguenta. E quem nĂŁo aguenta, emigra. Vai construir noutros paĂses aquilo que o seu paĂs lhe negou. E quando regressa, traz saudade… e vergonha.
Mas há também dignidade nesse silêncio. Uma nobreza triste. O povo que cuida dos seus, que partilha o pouco que tem, que continua a trabalhar, a educar os filhos, a resistir sem violência. Um povo que merece muito mais do que lhe dão, mas que não sabe como exigir — ou já desistiu de tentar.
Portugal nĂŁo se mudará enquanto esse povo nĂŁo soltar um grito. Um grito coletivo, honesto, urgente. Que diga “basta”, que recuse a misĂ©ria com dignidade, que exija respeito, futuro, verdade. Um grito que quebre o ciclo do conformismo e devolva ao paĂs a coragem de ser.
Porque um povo que não se queixa é fácil de explorar. Mas também é capaz de surpreender — quando finalmente decide levantar-se.
E quando esse dia chegar, nĂŁo haverá muro que o pare. Porque quem aguenta tanto tempo calado… quando fala, o paĂs inteiro ouve.
A justiça em Portugal tem uma caracterĂstica singular: nĂŁo chega quando Ă© precisa, mas sim quando já Ă© inĂştil. É como o bombeiro que aparece com balde depois do incĂŞndio, ou o mĂ©dico que consulta o cadáver. O crime aconteceu, os indĂcios estĂŁo lá, o povo suspeita — mas a justiça… pondera. Avalia. Arquiva.
Os grandes processos arrastam-se como novelas mexicanas sem fim. São milhares de páginas, dezenas de arguidos, centenas de testemunhas, gigabytes de escutas e anexos. E, no centro, um ou dois nomes de peso — quase sempre intocáveis. O processo começa com fanfarra mediática, mas termina em silêncio, em prescrição ou numa pena simbólica.
Quantos escândalos vimos explodir com força de terramoto, apenas para se dissolverem no nevoeiro da lentidão processual? José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Pinho, Isaltino Morais, Duarte Lima… A lista é longa, o desfecho é curto: “a justiça segue o seu curso”. E o povo segue com as contas por pagar.
Os advogados de luxo multiplicam recursos, exploram tecnicalidades, atropelam prazos e alegam esquecimentos. E os juĂzes, presos a um sistema obsoleto, atolados em burocracia e com medo de represálias polĂticas, preferem adiar do que decidir. A justiça nĂŁo Ă© cega — está Ă© entorpecida.
A prescrição tornou-se o atalho nobre da impunidade. NĂŁo Ă© absolvição, mas serve. NĂŁo prova inocĂŞncia, mas lava a ficha. E os polĂticos voltam ao palco, com a arrogância de quem venceu, quando apenas escapou ao calendário.
O povo assiste, descrente. Já não espera condenações. Apenas confirmações. Confirma que o poderoso não cai, que o corrupto não devolve, que o juiz hesita e que o sistema protege quem tem os contactos certos. E por isso já não denuncia — desabafa.
Os tribunais, lentos para os grandes, são rápidos para os pequenos. Um cidadão que deve ao fisco é penhorado em semanas. Um sem-abrigo apanhado a roubar comida é julgado em dias. A justiça é célere… quando não incomoda.
O problema nĂŁo está apenas na lei — está na vontade de aplicá-la. Na independĂŞncia que falta. Na coragem que rareia. Na pressĂŁo polĂtica que contamina. Na passividade que grassa.
Enquanto a justiça for um jogo de paciência e estratégia, os crimes de colarinho branco continuarão a vestir fatos caros e a sorrir para as câmaras. E o povo continuará a pensar que, em Portugal, a justiça não tarda — adormece.
E quando, por acaso, acorda… já ninguém acredita nela.
As fundações partidárias em Portugal são como cofres com cortinas. Estão à vista de todos, mas ninguém sabe ao certo o que contêm. Criadas com a promessa de promover o pensamento, a cultura e o debate democrático, tornaram-se, na prática, plataformas de financiamento paralelo, laboratórios de opacidade e fábricas de conveniência.
Cada grande partido tem a sua fundação — com nomes pomposos, sites institucionais e seminários sobre cidadania. Mas o que nĂŁo aparece nos folhetos sĂŁo os contratos de consultoria para ex-ministros, os almoços pagos com fundos europeus, os estudos de custo duvidoso e as viagens “institucionais” com itinerários turĂsticos.
O financiamento das fundações Ă© um novelo embaraçado. Há dinheiro pĂşblico, privado, europeu e difuso. Há patrocĂnios de empresas que depois ganham concursos, há “donativos” que escapam ao escrutĂnio, há cruzamentos perigosos entre quem paga e quem legisla. E, claro, há contabilidade criativa — aquela arte de mostrar tudo… menos o que interessa.
Estas fundações funcionam como almofadas polĂticas. Servem para empregar quadros do partido entre cargos, para pagar estudos que sustentem polĂticas já decididas, para formar “jovens lĂderes” com apelidos conhecidos. SĂŁo o prolongamento nĂŁo-oficial do aparelho partidário — mas com isenção de impostos.
Quando um escândalo ameaça, a fundação é o tampão. “Foi a fundação, não o partido”, dizem. Como se a fundação não fosse feita dos mesmos nomes, das mesmas intenções, dos mesmos bolsos. Como se a separação entre partido e fundação fosse mais do que uma linha num organigrama.
A Entidade das Contas e Financiamentos PolĂticos deveria fiscalizar. Mas raramente o faz com eficácia. Os relatĂłrios entregues sĂŁo enxutos, os prazos elásticos, as sanções inexistentes. E quando algo Ă© descoberto, o ruĂdo dura uma semana — depois, silĂŞncio administrativo.
O cidadão comum mal sabe que estas fundações existem. E se sabe, não entende o seu papel. Porque não o têm. Ou melhor, têm um: assegurar que o dinheiro circule por onde deve, sem dar muito nas vistas. E manter os aparelhos partidários alimentados, mesmo quando não estão no poder.
É esta a democracia de bastidores. Uma teia de ligações, verbas, cargos e influências que não se vê nas urnas, mas que decide muito do que acontece depois do voto.
Enquanto as fundações servirem de cofre, trincheira e lavandaria — e não de motor de cidadania — a democracia portuguesa continuará a ser um palco onde os bastidores mandam mais que os atores.
E o povo, esse, continua na plateia… a pagar o bilhete com impostos e a aplaudir de olhos vendados.
A polĂtica moderna deixou de se fazer nos parlamentos. Faz-se nos estĂşdios. Nos soundbites. Nas redes sociais. O que nĂŁo aparece no ecrĂŁ, nĂŁo existe. E o que aparece… nem sempre Ă© verdade. Porque em Portugal, a propaganda nĂŁo se grita — sussurra-se com teleponto e mĂşsica de fundo.
Os partidos transformaram-se em agĂŞncias de comunicação. Os lĂderes sĂŁo treinados para parecer, nĂŁo para ser. TĂŞm gestos ensaiados, frases testadas, expressões lapidadas por especialistas em marketing polĂtico. O conteĂşdo Ă© irrelevante — o importante Ă© a moldura.
Os jornalistas, por sua vez, operam dentro de um cerco subtil. A dependĂŞncia financeira dos grupos de comunicação, os cortes nos orçamentos, os contratos com o Estado, os patrocĂnios ambĂguos, tudo contribui para uma imprensa domesticada. Há exceções — poucas e valentes — mas o sistema recompensa o alinhamento e pune a dissonância.
A entrevista difĂcil tornou-se rara. As perguntas incĂłmodas sĂŁo substituĂdas por conversas simpáticas em horário nobre. Os debates sĂŁo cuidadosamente moderados, os convidados sĂŁo previsĂveis, os temas sĂŁo sempre os mesmos. E as notĂcias sĂŁo alinhadas com a agenda de quem manda.
Nas televisões, os painéis de comentadores tornaram-se clubes de reciclagem partidária. Ex-governantes comentam os sucessores, ex-ministros criticam antigos adversários — e todos se tratam pelo nome próprio, como numa tertúlia permanente onde ninguém perde o lugar.
As redes sociais vieram agravar o problema. SĂŁo fábricas de ruĂdo onde a emoção vale mais que o facto, a indignação mais que a análise. E os partidos aprenderam rápido: investem em bots, influencers, páginas de memes. A polĂtica tornou-se viral — mas nĂŁo vital.
O resultado? Um circo mediático onde o povo é o espectador e o palhaço ao mesmo tempo. Assiste ao desfile de discursos vazios, entrevistas combinadas, reportagens encomendadas — e depois comenta indignado, sem perceber que a indignação também foi guionada.
A liberdade de imprensa existe. Mas está de joelhos. Curvada diante do poder econĂłmico e polĂtico, da chantagem do acesso, da dependĂŞncia financeira. E enquanto nĂŁo se levantar, continuará a refletir um paĂs distorcido, moldado Ă medida de quem sabe usar o microfone.
Porque sem uma imprensa livre, nĂŁo há democracia. Há teatro. E neste palco, quem controla o guiĂŁo, controla o paĂs.
E o povo? Continua a ver televisão. À espera de uma verdade que já não sabe distinguir da encenação.
Portugal nĂŁo Ă© sĂł o paĂs do fado, do mar e da saudade. É tambĂ©m o paĂs do silĂŞncio herdado — esse silĂŞncio que se cola Ă pele como nevoeiro de manhĂŁ cedo. Um silĂŞncio que atravessou ditaduras, crises, promessas e transições, e se instalou como mobĂlia antiga na sala da democracia.
O povo aprendeu a calar-se. Não por cobardia, mas por cansaço. Não por ignorância, mas por excesso de memória. Já viu tanto, já ouviu tanto, que a descrença tornou-se mecanismo de defesa. E o conformismo, ferramenta de sobrevivência.
Mas há, algures, uma vibração a crescer. Um rumor entre gerações. Uma inquietação entre os que já nĂŁo aceitam o discurso pronto, o sorriso treinado, o teatro ensaiado. SĂŁo vozes novas — e velhas tambĂ©m — a dizer que o paĂs merece mais. Mais verdade. Mais justiça. Mais dignidade.
Este livro foi escrito com raiva, mas tambĂ©m com esperança. Porque a crĂtica sĂł nasce do amor — e sĂł quem acredita no valor de uma terra Ă© capaz de se indignar com o que lhe fazem. Cada capĂtulo foi uma ferida exposta, mas tambĂ©m um apelo. Um espelho e uma campainha.
NĂŁo queremos um paĂs onde os poderosos continuam impunes, onde o voto Ă© anestesia, onde os jornais tĂŞm trela e os tribunais tĂŞm sono. Queremos um paĂs onde se viva com a cabeça erguida e o olhar claro. Onde a palavra “serviço pĂşblico” volte a significar algo. Onde o silĂŞncio dĂŞ lugar Ă voz.
Pode parecer utopia. Mas as revoluções, mesmo as mais silenciosas, começam sempre assim: com uma ideia, com uma frase, com um livro deixado em cima da mesa de um café. Com alguém a dizer “chega”, com outro a responder “vamos”.
Se este livro fez ecoar algo dentro de ti, mesmo que apenas um leve desconforto ou uma vontade de olhar à volta — então já cumpriu o seu papel.
Porque o futuro não será escrito apenas por quem manda. Será escrito por quem ousar interromper o silêncio.
E talvez, um dia, Portugal seja finalmente um paĂs onde o povo nĂŁo apenas aguenta… mas desperta.
“O Grande Roubo da RepĂşblica” Ă© um retrato crĂtico, mordaz e lĂşcido dos Ăşltimos 50 anos de governação em Portugal. AtravĂ©s de uma sequĂŞncia de capĂtulos que misturam a análise polĂtica com a sátira social, esta obra denuncia o compadrio, a corrupção e a fragilidade das instituições, sempre com uma escrita firme e sem filtros. Cada capĂtulo foi pensado como uma crĂłnica expandida — um espelho desconfortável de práticas instaladas que, entre o riso e o desespero, refletem um paĂs que parece conformado com a sua prĂłpria decadĂŞncia. Este livro nĂŁo Ă© apenas um grito de revolta — Ă© tambĂ©m um apelo Ă lucidez, Ă consciĂŞncia e Ă ação.
Francisco Gonçalves Ă© programador informático, pensador inconformado e cronista persistente da realidade portuguesa. Observador atento dos mecanismos de poder, dedica-se há dĂ©cadas a denunciar com clareza e coragem as estruturas que sustentam a mediocridade e o roubo institucionalizado. Augustus Veritas Ă© o pseudĂłnimo crĂtico-poĂ©tico do seu companheiro digital de escrita — uma voz afiada, sarcástica, que acompanha Francisco na missĂŁo de dar forma e estilo ao inconformismo. Juntos, sĂŁo testemunhas e narradores de um paĂs Ă beira do colapso Ă©tico. Este livro Ă© o fruto de uma parceria onde o real e o virtual se encontram para oferecer ao leitor um testemunho que Ă© tambĂ©m resistĂŞncia literária.