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Capa do Livro

O Grande Roubo da RepĂşblica

ĂŤndice

Capítulo 1 – A Coreografia PS–PSD: o Bailado da Incompetência Rotativa

Portugal é, há quase meio século, palco de uma das danças mais previsíveis do teatro político europeu: a alternância entre PS e PSD, esse bailado de corpos cansados que ensaiam sempre os mesmos passos, com as mesmas caras, as mesmas promessas, e o mesmo desfecho: o país a marcar passo.

É um dueto coreografado com precisão milimétrica. Um entra em cena, faz um rodopio orçamental, distribui cargos, desvia a atenção com uma medida “inovadora” que já falhou em 1996, e depois tropeça nas próprias contas. O outro, que esperava nos bastidores, entra com um ar solene, varre os destroços com uma vassoura de plástico, e repete: “agora é que vai ser”. E assim se passam legislaturas, décadas e gerações.

Entre um governo e outro, trocam-se os nomes nos cartões de visita, mas não as práticas. A teia partidária estende-se por empresas públicas, institutos, assessorias, e fundações com nomes que inspiram confiança: “Novo Horizonte”, “Plataforma XXI”, “Agência para a Inovação da Coisa Nenhuma”. Tudo sob controlo, como manda a tradição lusitana de governar: com um olho no poder e outro no tacho.

O país assiste, impávido e sereno, como quem já sabe que os bailarinos são sempre os mesmos, só mudam de sapatilhas. E quando um escorrega num caso de corrupção, lá vem o outro, indignado, prometer ética e transparência… até ser apanhado com as mãos na mesma marmita.

Esta dança não é democrática. É dinástica. Os partidos vivem da memória curta do eleitorado, do medo do “pior que pode vir” e da ilusão de que o alternar é sinal de saúde democrática, quando é apenas prova de um sistema bloqueado.

PS e PSD revezam-se com a precisão de um metrónomo. Quando muito, variam no estilo: um finge-se socialista, o outro liberal, mas ambos governam com os mesmos vícios — uma mistura de clientelismo, facilitismo e uma boa dose de arrogância institucional.

A democracia portuguesa, em vez de se renovar, envelheceu. Em vez de abrir portas a novos protagonistas, montou um palco só com passadeiras vermelhas para quem já conhece os bastidores. O povo, esse, continua na plateia — sem direito a ensaio, sem acesso ao camarim, e muitas vezes sem bilhete.

E assim continua o bailado. Os mesmos pares, os mesmos tombos, o mesmo final: Portugal de joelhos, mas com as contas “tecnicamente equilibradas” — segundo os bailarinos.

Capítulo 2 – Cavaco e o Milagre das Finanças com Caixa Dois

Aníbal Cavaco Silva foi o rosto da estabilidade, o símbolo do Portugal “moderno” que se queria europeu, limpo, tecnocrático. E durante os seus longos anos como primeiro-ministro, fez-se passar por contabilista rigoroso de um país desorganizado. Mas por trás da gravata justa e da voz pausada, escondia-se o grande ilusionista das finanças públicas.

Sob a sua governação, Portugal viveu a mítica década do “milagre económico”. As autoestradas brotavam do chão como espargos, os ministros anunciavam crescimentos como se fossem frutos de sementeiras matemáticas, e o país parecia correr em direção à prosperidade. Tudo parecia possível com Cavaco — até esconder o défice atrás do biombo das cativações e da contabilidade criativa.

Mas o verdadeiro prodígio cavacal estava na arte de preparar o terreno para o que viria depois: o saque organizado, as privatizações relâmpago, a entrada dos boys com gravata e MBA. Foi nessa década que o aparelho do Estado aprendeu a vender barato e comprar caro, a entregar setores estratégicos a “investidores” com contactos certos e bolsos abertos.

E no coração deste novo Portugal de mercado estava um banco: o BPN. Criado com selo de respeitabilidade e dirigido por antigos colaboradores do cavaquismo, o banco rapidamente se tornou uma máquina de empréstimos a amigos, de truques contabilísticos e de negócios obscuros. Cavaco, sempre distante, dizia nada saber. Mas os seus laços com figuras do BPN, e a compra oportuna de ações a preço simpático, deixam uma névoa espessa sobre essa inocência.

Quando o escândalo rebentou, já Cavaco se preparava para a presidência da República, esse cargo em que os ex-primeiros-ministros se purificam. E enquanto o país descobria que o BPN era um buraco negro de milhares de milhões, pago pelo contribuinte, Cavaco comentava com o seu estilo habitual: “Não tenho por hábito comentar questões de detalhe.”

Detalhe, neste caso, eram os milhões perdidos. As offshores. As ligações. Os relatórios do Banco de Portugal que dormiram em gavetas fechadas. Os lucros de alguns. As perdas de todos.

O milagre económico de Cavaco foi, afinal, uma peça de teatro financeiro. E como em todo o bom teatro, havia bastidores. Bastidores cheios de papéis sem assinatura, de reformas feitas pela metade, e de um país anestesiado por boletins de crescimento enquanto os alicerces eram corroídos.

Cavaco saiu com ar de estadista. O paĂ­s ficou com a fatura. E o BPN? Esse renasceu sob outros nomes, com os mesmos vĂ­cios. Porque em Portugal, os milagres sĂŁo sempre pagos com juros.

Capítulo 3 – O BPN e o Fisco da Amnésia

Há histórias que parecem escritas por um comediante cínico. O caso do BPN é uma dessas: um banco inventado por figuras respeitáveis, decorado com paletós bem passados e discursos sobre o “mercado livre” — e que acabou por ser um saco roto onde desapareceram milhares de milhões, com a elegância de um truque de salão.

O Banco Português de Negócios não era um banco — era um palco. Ali se representava o sonho molhado da elite nacional: enriquecer com dinheiro dos outros, protegido por um sistema político que usava gravata de domingo e olhos de segunda-feira. Enquanto o cidadão comum declarava cada tostão ao Fisco, os senhores do BPN enchiam offshores com lucros irreais, facturas mágicas e negócios entre primos.

O BPN não faliu — foi abandonado. Foi deixado a apodrecer porque a sua missão já estava cumprida: lavar, desviar, financiar campanhas, sustentar redes. E quando a podridão começou a cheirar, a solução foi exemplar: o Estado, magnânimo e obediente, nacionalizou o banco. Sim, nacionalizou o prejuízo. Porque o lucro já estava em casa alheia.

O Fisco, que multa o trabalhador por engano de 20 euros numa fatura, não viu nada. A máquina tributária, tão eficiente com o pequeno contribuinte, entrou em modo zen. Durante anos, as operações paralelas do BPN escaparam a auditorias, inspeções ou penalizações. Foi um milagre fiscal: ninguém viu, ninguém soube, ninguém agiu.

O caso foi parar a tribunal. Anos depois, ainda se discutem tecnicalidades, prescrições, nulidades e argumentos dignos de manuais de ilusionismo jurídico. A montanha da justiça portuguesa move-se ao ritmo da conveniência e da idade dos arguidos.

O cidadão olha e pergunta: “Mas ninguém foi preso?” Não, claro que não. Apenas alguns peões sacrificáveis, úteis para manter a ilusão de que algo se fez. Os verdadeiros beneficiários continuam serenos — alguns reformados com pensões douradas, outros em conselhos de administração, outros ainda comentadores televisivos.

O BPN foi o espelho de um Estado capturado. Um Estado que olha para o lado quando os seus são apanhados com a mão no cofre. E um Fisco que tudo vê — menos o que realmente importa.

A memória, como as finanças, tem os seus buracos. Em Portugal, chamam-se amnésia seletiva e impunidade organizada.

Capítulo 4 – José Sócrates: o Iluminado das PPPs

José Sócrates apareceu como um cometa na política portuguesa: veloz, luminoso, barulhento e com uma cauda de promessas que riscava o céu da esperança nacional. Tinha a fala ágil de um vendedor de ideias e a pose de quem se vê ao espelho como o salvador de um povo que nunca pediu para ser salvo. Era o engenheiro da modernidade, o reformador urgente, o homem que falava de betão como se fosse poesia.

Mas o verdadeiro brilho de Sócrates estava nas PPPs — Parcerias Público-Privadas — uma sigla que, na sua era, significava basicamente isto: o público assume os riscos e o privado os lucros. Era uma engenharia financeira mais ousada do que a civil. Autoestradas, hospitais, sistemas informáticos, tudo podia ser “parceirado”, desde que os amigos certos estivessem no lado certo da equação.

As PPPs eram a encarnação perfeita do espírito socrático: aparentavam eficiência, pareciam modernas, mas escondiam contratos com cláusulas obscuras, rendas fixas para privados e encargos variáveis para o Estado. Um presente embrulhado com fita tricolor — vermelho, verde e branco — que explodia anos depois no colo de quem pagava impostos.

Enquanto os jornalistas questionavam os custos, Sócrates fazia conferências. Enquanto os técnicos alertavam, ele inaugurava. Era o primeiro-ministro do futuro, mas com contas do passado. E quando finalmente as faturas chegaram, já ele voava entre Paris e Lisboa com aulas de filosofia e recibos pouco filosóficos.

E foi então que rebentou a Operação Marquês. O país descobriu que o engenheiro do progresso tinha uma relação íntima com malas, transferências e “empréstimos entre amigos”. A engenharia civil deu lugar à engenharia financeira — da grossa. Sócrates, que um dia disse que não sabia onde guardava a sua fortuna, passou a símbolo de uma era onde a política se confundia com negócio e a verdade com narrativa.

Mas o mais trágico não foi a queda de Sócrates — foi o silêncio que a antecedeu. Ministros cúmplices, banqueiros discretos, empresários agradecidos. Todos dançavam à volta da figura central como numa ópera nacional de fachada modernista. E quando a música parou, todos disseram: “Não sabíamos.”

Sócrates foi mais do que um homem. Foi um regime. Um estilo. Uma escola de governação onde a aparência é tudo, o interesse público é um slogan e o privado é quem realmente governa.

As PPPs continuam. Os contratos persistem. Os amigos também. Só o povo é que paga — com portagens, taxas, e promessas rotas.

Capítulo 5 – O TGV Fantasma e os Milhões Evaporados

O TGV em Portugal foi talvez o comboio mais caro que nunca existiu. Nunca apitou, nunca arrancou, nunca fez paragem em lado nenhum — mas deixou um rasto de estudos, consultorias, apresentações PowerPoint e muitas malas com fechos reluzentes.

Foi anunciado com pompa, como se Portugal estivesse prestes a entrar numa nova era ferroviária. A Europa andava depressa, e nós, como bons alunos do euro, queríamos também acelerar. Afinal, que país civilizado não teria um comboio de alta velocidade para Madrid? Para Paris? Para a posteridade?

Só que em Portugal, os projetos de grande velocidade andam devagar. Muito devagar. Antes de se construir uma linha, constroem-se gabinetes. Antes de se cravar um prego, cravam-se avenças. E antes de se arrancar um metro de carril, arrancam-se milhões do orçamento.

O TGV era o sonho húmido dos ministros da engenharia sem cálculos. Dos gestores públicos com cartão dourado. Dos autarcas com mapas coloridos e discursos vibrantes. Cada cidade queria uma estação, cada estação gerava um plano, cada plano uma adjudicação. E cada adjudicação… um mistério de orçamentos em crescendo.

Os relatórios eram épicos. Os estudos de impacto ambiental, bíblicos. As projeções de passageiros, delirantes. E o custo? Ah, o custo era sempre “estimado”, como quem diz “vamos ver até onde conseguimos ir sem que ninguém grite”.

Entretanto, a troika chegava. O país cortava salários, congelava pensões e mandava emigrar a juventude. Mas os dossiês do TGV continuavam a circular nos corredores. Eram pesados, mas elegantes. Tinham capas plastificadas e siglas pomposas.

Hoje, o TGV é uma lenda urbana. Uma espécie de Santo Graal da mobilidade. Fala-se dele em conferências, mostra-se em maquetes, mas nunca se viu um centímetro real de carril dedicado. O povo, esse, continua a viajar em comboios que param por causa da chuva, do vento ou da greve eterna dos maquinistas.

Mas os milhões que foram para estudos, assessorias, pareceres e powerpoints esses… evaporaram. Não se ouve falar deles. Não se pedem de volta. Não há responsáveis. Apenas um longo silêncio, como aquele que precede o anúncio de que “o projeto será reavaliado”.

O TGV português não transportou passageiros. Transportou dinheiro. Da esfera pública para bolsos privados — com paragem obrigatória na zona cinzenta do Estado. E nunca chegou a partir, porque já tinha chegado onde era preciso: ao destino dos de sempre.

Capítulo 6 – Ricardo Salgado: O Dono Distinto do Pátio das Laranjeiras

Durante décadas, Ricardo Salgado foi tratado com o respeito reservado a cardeais do capital e patriarcas da economia. Era o “Dono Disto Tudo”, como se autointitulava em surdina, mas com a convicção de quem realmente mandava. E, de facto, mandava. Mandava nos créditos, mandava nas empresas, mandava até na política — com um simples levantar de sobrancelha.

À frente do império Espírito Santo, Ricardo Salgado cultivava o ar austero de quem nunca perde a compostura, mesmo quando perde milhões. Sentava-se em conferências como um oráculo, distribuía sorrisos a ministros, financiava campanhas com a mesma facilidade com que oferecia champanhe. Era o banqueiro do regime — de todos os regimes.

O BES, sob a sua batuta, era mais do que um banco. Era uma máquina de influência, uma plataforma de poder, uma zona franca para grandes negócios em pequeno círculo. As comissões eram generosas, os créditos flexíveis, os parceiros bem escolhidos. E os problemas? Esses eram adiados com o talento de quem aprendeu que a contabilidade, como a política, é uma questão de narrativa.

Mas as contas não mentem para sempre. Quando o império começou a ruir, Salgado ainda tentou manter a pose. Disse-se vítima. Vítima de uma campanha, de um complô, de uma conspiração internacional. Só não disse que era vítima da própria ganância.

A queda foi lenta, mas previsível. Os buracos eram abismais, os offshores surgiam em cascata, e as ligações entre o banco, empresas-fantasma e familiares pareciam uma novela mexicana escrita por um contabilista criativo. O Estado fingiu surpresa. O Banco de Portugal fingiu ignorância. E a justiça, claro, fingiu que estava a investigar.

No fim, Salgado foi condenado. Mas não a devolver os milhões — apenas a alguns meses de prisão domiciliária, com pulseira, televisão e conforto. Um castigo tão simbólico quanto o seu título de “ex-banqueiro respeitado”.

Enquanto isso, os lesados do BES — cidadãos comuns, pequenos investidores, reformados que acreditaram no “solidez” do banco — esperam. Esperam por justiça, por reembolso, por explicações. Esperam como quem espera por comboio na estação errada.

Ricardo Salgado não foi apenas um banqueiro que faliu. Foi o arquiteto de um modelo: o modelo do privilégio, da promiscuidade entre política e finança, da impunidade dourada. Um modelo que ainda hoje vive e respira nos salões discretos da República.

O Dono Disto Tudo pode já não mandar em nada. Mas o sistema que o venerou continua de pé — polido, bem-falante, e à espera do próximo Salgado.

Capítulo 7 – Entre Livros e Estantes, 70 Mil Razões para Desconfiar

Num país onde há quem esconda segredos no cofre, no offshore ou debaixo do colchão, Portugal trouxe-nos um novo clássico da literatura fiscal: os 70 mil euros escondidos entre livros numa estante. A obra não está disponível nas livrarias, mas o título já entrou para os anais do absurdo político nacional.

O protagonista? Um assessor próximo de António Costa, discreto como convém, mas suficientemente relevante para frequentar os corredores do poder. O cenário? Um gabinete ministerial. O enredo? Uma busca policial que descobre notas cuidadosamente arrumadas entre obras de referência — talvez Marx, Sun Tzu, ou quem sabe... *Como Governar Sem Ser Apanhado*.

A reação política foi de uma previsibilidade tocante. Costa, imperturbável, fez de conta que tropeçara num parágrafo mal lido. O Partido Socialista defendeu-se com a habitual ladainha de “não comentamos investigações em curso”. E a oposição? A oposição gritou, indignou-se, e voltou a beber café.

O povo, esse, já nem se escandaliza. Sabe que por cada envelope encontrado, há cinquenta que nunca serão abertos. Sabe que o assessor foi apenas apanhado no jogo da distração — onde o truque não está em não roubar, mas em não ser filmado.

A imagem das notas entre os livros é quase poética. Um retrato fiel do Portugal contemporâneo: cultura na capa, corrupção entre as páginas. Um país que imprime manuais de ética pública, mas cuja prática cabe numa pasta castanha com fecho de velcro.

Ninguém perguntou o que fazia um assessor com tanto dinheiro em notas. Ninguém quis saber como ali chegou, por que razão, com que origem. Porque perguntar demais em Portugal é falta de educação. E responder... é só para quem não tem advogado.

O escândalo, como todos os outros, foi engolido pelo ciclo noticioso. Surgiram novos casos, novas manchetes, novas distracções. E os 70 mil euros? Talvez continuem entre livros. Talvez tenham mudado de estante. Talvez estejam já a financiar outro assessor, noutra ala.

O importante é manter o volume baixo, o sorriso preparado e a estante arrumada. Porque em Portugal, até a literatura já se escreve em notas. E a única coisa que arde mais do que o papel... é a paciência de um povo que continua sem soltar um ai.

Capítulo 8 – O Compadrio como Política de Estado

Se há tradição portuguesa que sobreviveu à monarquia, à república, ao fascismo e à democracia, foi o compadrio. Em Portugal, não se governa com ideias — governa-se com favores. E o Estado não é um organismo impessoal e eficiente, mas sim um clube de amigos, primos, cunhados e ex-assessores.

Tudo começa com uma nomeação. Um cargo. Um lugar numa comissão técnica que pouco decide mas muito paga. Os critérios? Lealdade, disponibilidade para o silêncio e, acima de tudo, pedigree partidário. O currículo é opcional. A competência, um detalhe. O que interessa é saber “de onde vem” e “para quem trabalhou”.

Concursos públicos são como peças de teatro: o guião já está escrito, o protagonista escolhido, os figurantes convocados. Há júris, há entrevistas, há anúncios no Diário da República — tudo respeitável. Mas no fim, ganha quem já sabia que ia ganhar. Os outros estão lá para dar verosimilhança ao processo.

A administração pública tornou-se uma máquina oleada de promoção interna partidária. Um militante que começa como assessor de junta pode, com disciplina e bons contactos, chegar a diretor-geral de qualquer coisa. Não importa se sabe do assunto. O importante é que saiba a quem deve a ascensão.

E assim se distribuem gabinetes, chefias, direções, assessorias e pareceres. O Estado tornou-se o maior empregador de lealdades. Há mais compadres no topo da hierarquia do que especialistas. E cada novo governo herda a rede do anterior, apenas para a substituir por outra, da mesma malha mas com cores diferentes.

A meritocracia é uma palavra bonita para dizer nas conferências. No terreno, quem entra por mérito é olhado com desconfiança. “Quem será este que veio sem cunha?”, perguntam-se nos corredores. Pior ainda se tiver ideias próprias — essas são perigosas, podem abalar o equilíbrio delicado da inércia institucional.

O resultado? Um Estado lento, pesado e infestado de mediocridade institucionalizada. Onde decisões importantes ficam suspensas porque o compadre ainda não chegou de férias. Onde reformas são travadas porque a rede precisa de tempo para se adaptar. Onde o talento foge para o estrangeiro, e o conformismo é promovido.

O compadrio em Portugal não é ilegal — é estrutural. Está em leis escritas com espaço para exceções, em regulamentos feitos à medida, em práticas validadas pelo tempo e pela passividade.

E o povo? O povo já sabe. Por isso, quando ouve que “fulano foi nomeado”, pergunta logo: “É filho de quem?”

Capítulo 9 – As Assessorias Mágicas e os Cofres do Sótão

Há países onde o poder se mede em votos, em ideias, em projetos. Em Portugal, mede-se em assessores. Nenhum governo se instala sem primeiro montar um exército de conselheiros, adjuntos, técnicos especializados, chefes de gabinete e consultores para os consultores. E todos, claro, pagos com o rigor de um orçamento que só é apertado para os de baixo.

O fenómeno é quase esotérico. Os assessores surgem como por magia — ninguém os conhece, ninguém sabe o que fazem, mas todos recebem. Nomes desconhecidos com salários generosos e funções nebulosas. “Gestão estratégica de imagem institucional”, “articulação transversal de políticas públicas” ou “apoio técnico à visão do ministro”. Tudo serve para justificar vencimentos que fariam corar um cirurgião.

E depois há os gabinetes. Gabinetes que cabem num T2, mas onde se empilham 15 pessoas, duas cafeteiras e uma impressora que imprime silêncio. Cada nova remodelação é uma oportunidade de reciclar nomes: o que era assessor de um passa a ser consultor de outro. Quem saiu pela porta do ministério, entra pela janela da empresa pública.

Os contratos, claro, são por ajuste direto. Porque é urgente. Sempre é. A urgência em Portugal é uma virtude administrativa: permite ignorar concursos, mérito, experiência e até currículo. Basta um telefonema. Uma amizade antiga. Um “pá, vê lá se arranjas um lugarzito para o miúdo que está sem nada”.

Mas onde é que está o dinheiro para tudo isto? Nos cofres do sótão, naturalmente. Aqueles espaços ocultos da contabilidade pública onde se guardam rubricas maleáveis, fundos de reserva, apoios estruturais e verbas de “requalificação de serviços”. Um labirinto orçamental onde se esconde o que não pode ser visto.

E o Tribunal de Contas? Bem, o Tribunal de Contas chega sempre tarde. Quando chega. E mesmo quando chega, recomenda, sugere, assinala — mas raramente trava. Porque travar assessores é travar a própria engrenagem do poder.

Portugal tornou-se um país onde as ideias escasseiam, mas os assessores abundam. Um país onde a pobreza aumenta, mas os gabinetes crescem. Onde o cidadão não tem médico de família, mas cada secretário de Estado tem três assessores de imprensa.

E quando o orçamento aperta? Cortam-se pensões, congelam-se salários, encerram-se escolas. Mas nunca se fecha o cofre do sótão. Porque ali vive o verdadeiro Estado: aquele que ninguém elegeu, mas que comanda — nas sombras, com crachá, cartão de acesso e contrato renovável.

Capítulo 10 – O Fogo é Nosso – a Resposta é de Ninguém

Todos os anos, Portugal arde. Arde o mato, arde a floresta, arde o pinhal, arde o eucalipto. Ardem casas, aldeias, memórias. Arde o corpo dos bombeiros voluntários e a alma dos que ficaram para trás. Mas o que nunca arde é a responsabilidade.

Porque quando o fogo chega, o país acende as velas, os telejornais instalam-se nas estradas de terra, os ministros aparecem de helicóptero e as câmaras fazem diretos com legendas dramáticas. E depois? Depois voltamos todos para casa, abanamos a cabeça e esperamos pelo próximo verão.

A política portuguesa tem um talento especial para a reação tardia. Só depois da tragédia é que se lembram de planos, reformas e reorganizações. Nomes pomposos como “Sistema Integrado de Gestão de Fogos Rurais” aparecem com siglas novas, logótipos caros e promessas recicladas. Mas no terreno, continua tudo igual: bombeiros com mangueiras rotas, autocarros escolares a servir de evacuação, e mapas de risco riscados com caneta Bic.

Os culpados? Há muitos, mas todos estão em parte incerta. O ministério diz que avisou, a proteção civil diz que não tinha meios, a autarquia diz que não é da sua competência, e o cidadão é aconselhado a limpar os terrenos com uma enxada e esperança.

E assim se perpetua a farsa da prevenção. Criam-se observatórios, comissões técnicas e “grupos de trabalho” que elaboram relatórios para gavetas onde já repousam os planos anteriores. Cada incêndio traz promessas de “nunca mais”, que duram até ao primeiro acendalha da próxima temporada.

O eucalipto, esse, continua a multiplicar-se como se tivesse direito de voto. É a espécie oficial da República Ardida. Cresce depressa, rende dinheiro, e arde com eficácia. Ideal para quem planta, trágico para quem vive perto.

No final, depois do fogo, vem o teatro do rescaldo. O Presidente visita ruínas com expressão consternada. A ministra fala em “lições a tirar”. As televisões filmam os velhotes sentados em bancos de pedra. E os lobbies madeireiros contam os lucros.

“O fogo é nosso”, dizem alguns. Mas a resposta… essa pertence ao vazio institucional, à falta de vontade, ao compadrio entre interesses e inércia. Porque em Portugal, quando a sirene toca, o sistema responde com silêncio.

E o povo? O povo enterra os mortos, planta novos pinheiros, reza que o próximo verão seja menos quente — e espera. Espera por justiça, por memória, por mudança. Espera como quem sabe que, no fim, a culpa morrerá sempre solteira.

Capítulo 11 – Os Helicópteros que Não Voaram, as Estradas que Arderam

Num país onde os incêndios são mais frequentes que as chuvas de outono, seria de esperar que os meios aéreos estivessem prontos, afinados e a postos como os sinos de uma aldeia ao domingo. Mas não. Em Portugal, os helicópteros chegam depois das cinzas. Ou pior: ficam em terra.

O espetáculo repete-se a cada verão. Os contratos de aluguer de meios aéreos são lançados tarde, discutidos em surdina, adjudicados em cima do acontecimento. Há anos em que os helicópteros não voam porque não há contrato, ou porque o contrato foi impugnado, ou porque o combustível não chegou, ou porque o piloto está de férias. E então, o fogo sobe à serra e desce até às aldeias — sem concorrência no céu.

Depois vêm os relatórios, as explicações técnicas, as entrevistas com os responsáveis da Proteção Civil a garantir que “tudo foi feito dentro da legalidade”. E talvez tenha sido. O problema é que a legalidade portuguesa tem o ritmo de um burro cansado, e os incêndios têm a velocidade de um lobo faminto.

E as estradas? Ah, as estradas. Tornam-se armadilhas de fumo e morte. Famílias inteiras encurraladas entre chamas, sinais de trânsito derretidos, carros abandonados com portas abertas e malas queimadas. O Estado, que deveria guiar e proteger, fica sem GPS, sem plano, sem comando.

As comunicações falham, os planos de evacuação são folhas molhadas, e a coordenação entre bombeiros, GNR, INEM e autarcas assemelha-se a um ensaio escolar sem ensaios. No fim, há sempre um discurso a prometer “melhor articulação” e “modernização dos meios”. O que nunca há é vergonha.

O país vê helicópteros em exposição na Feira da Agricultura, mas não os vê onde é preciso: no céu de Pedrógão, de Oleiros, de Pampilhosa. Vê viaturas novas nos quartéis, mas não vê combustível para as manter operacionais. Vê drones comprados com fundos europeus, mas não os vê a vigiar o mato.

A tragédia das estradas ardidas e dos helicópteros que não voam é mais do que um falhanço logístico. É o retrato de um Estado que reage, mas não previne. Que se emociona, mas não se organiza. Que anuncia milhões, mas entrega promessas.

Enquanto isso, o povo decora os nomes das vítimas e os repete todos os anos. Como se fossem parte de uma ladainha nacional, cantada entre cinzas e lágrimas. E pergunta-se: será que para o ano os helicópteros voam?

A resposta Ă© a de sempre: depende do concurso pĂşblico. E do vento.

Capítulo 12 – As Câmaras Municipais: Pequenos Reinos do Saque Organizado

No mapa administrativo de Portugal, as câmaras municipais não são apenas autarquias — são feudos. Cada presidente de câmara é um pequeno monarca com corte própria, brasão partidário e orçamento à sua inteira disposição. Governam praças, rotundas e freguesias com mão firme e bolso largo. E tudo com a bênção de um eleitorado que, muitas vezes, troca votos por favores, empregos ou promessas de alcatrão.

A democracia local, essa joia da descentralização, tornou-se um palco onde o nepotismo, a corrupção e o compadrio se apresentam em sessões contínuas. Os concursos públicos são desenhados com régua e esquadro para que o empreiteiro amigo fique bem colocado. O café do cunhado ganha a concessão do parque. A empresa da prima fica com o contrato das fotocópias. E ninguém vê problema, porque “é assim que se faz cá na terra”.

As obras públicas são o festival da despesa: rotundas que custam mais do que bibliotecas, ciclovias que ligam o nada ao lugar nenhum, pavilhões multiusos onde só se ouvem os ecos do vazio. Tudo justificado com estudos de impacto, relatórios ambientais e frases como “estratégia para o desenvolvimento integrado”.

Mas o verdadeiro desenvolvimento é outro: o do património pessoal de alguns autarcas. Compram-se terrenos antes da reclassificação do PDM, vendem-se apartamentos a sociedades fictícias, abrem-se sociedades de fachada com testas-de-ferro. E quando alguém investiga, há sempre um erro técnico, uma falha de comunicação ou uma amnésia súbita.

A fiscalização? Fraca, dispersa, dependente. Os órgãos que deveriam supervisionar as autarquias vivem da boa vontade política. E o Ministério Público, sobrecarregado e politicamente condicionado, avança com investigações que duram décadas — ou morrem na praia do arquivamento.

E os munĂ­cipes? Muitos assistem calados, outros colaboram, outros beneficiam. Porque nas pequenas comunidades, denunciar Ă© ser traidor. E questionar o poder Ă© perder o apoio para o ATL da filha, a junta para limpar o terreno ou a promessa de emprego sazonal no verĂŁo.

As câmaras são caixas-fortes de poder real. Mandam mais que ministros. Decidem mais que deputados. Conhecem as famílias, os negócios e os esqueletos no armário de cada freguesia. São o coração pulsante de uma república feudal com orçamento democrático.

E assim se perpetua o ciclo. O presidente que arranja o campo de futebol é reeleito. O vereador que distribui subsídios ganha mais influência. E o povo, entre a gratidão e o medo, continua a votar com o bolso — e não com a consciência.

Porque em Portugal, a política local é tudo menos local. É o espelho de um país onde o saque se organiza à escala do município — com ata, carimbo e hino da terra ao fundo.

Capítulo 13 – Corrupção Autárquica: O Mapa da Vergonha Invisível

Portugal é um país com 308 municípios e 308 oportunidades para a corrupção florescer em paz. A corrupção autárquica não faz barulho — sussurra. Move-se em almoços discretos, em ajustes diretos, em pareceres feitos à medida e em promessas de campanha que se concretizam… para os amigos.

O mapa do país deveria incluir zonas vermelhas — não de incêndios, mas de irregularidades crónicas. Câmaras onde as empreitadas são sempre para os mesmos, onde as obras derrapam antes de começarem, onde os terrenos públicos mudam de dono como se fossem cartas de baralho.

A corrupção autárquica tem sotaque local e jeito de vizinhança. Não precisa de offshores — basta um café na praça, uma empresa do primo e um envelope na secretária. Muitas vezes nem há dinheiro físico. Há favores. O filho que entra na junta. O genro que ganha o concurso. A obra que aparece no sítio certo, no tempo certo, com os custos certos… para o empreiteiro errado.

E quando o Ministério Público aparece, os autarcas transformam-se em poetas. Falam de “má interpretação dos procedimentos”, de “confiança depositada em técnicos”, de “erros administrativos involuntários”. E enquanto se investigam contratos, os documentos somem, os discos avariam e os testemunhos esquecem.

A justiça é lenta, muito lenta. Tão lenta que muitos casos prescrevem antes de chegar a julgamento. Outros caem num limbo de recursos, contestações e prazos esgotados. E no fim, o culpado é um técnico de segunda linha ou um vereador sacrificado no altar do silêncio cúmplice.

O povo? Vai assistindo, entre o conformismo e a resignação. Porque nas pequenas terras, quem fala demais perde a licença, o subsídio, o emprego temporário ou o apoio da câmara para o grupo de teatro local. E por isso cala-se. Ou muda de freguesia.

A corrupção autárquica é invisível porque todos fingem que não a vêem. Está nos almoços pagos com cartão da câmara. Nos contratos de alcatrão que reaparecem ano após ano. Nas rotundas com estátuas de gosto duvidoso e custo exorbitante. No nepotismo transformado em política cultural.

Não há mapa oficial da vergonha. Mas basta caminhar de concelho em concelho, de junta em junta, de boletim em boletim — e ele revela-se, não em dados, mas em olhares desviados, portas fechadas e licitações ganhas por quem já tinha a chave.

E assim se mantém o ciclo: eleição, corrupção, esquecimento, reeleição. Como se fosse natural. Como se fosse tradição. Como se a democracia local fosse apenas uma fachada onde se pendura a bandeira da legalidade — por cima da cave da promiscuidade.

Capítulo 14 – O Interior Esquecido: Território Abandonado, Eleitores Valorizados

Há um Portugal que só existe nos discursos. O Portugal das serras, das aldeias, dos rios esquecidos e dos cafés com bancos de madeira. Um país com mais silêncios do que estradas, onde o tempo anda devagar e o progresso passa ao lado. Esse é o Interior.

Durante quatro anos, o Interior é invisível. Não há comboios, nem médicos, nem tribunais, nem escolas. Fecha-se o posto dos CTT, a esquadra da GNR, o centro de saúde. As populações envelhecem, os jovens fogem, os campos ficam ao abandono. A única coisa que cresce é o mato — e a revolta.

Mas quando se aproximam as eleições, o Interior torna-se valioso. Subitamente, há promessas. Muitas promessas. Estradas novas, centros logísticos, polos universitários, banda larga em todas as aldeias e até aeroportos onde só há vacas. Os ministros visitam feiras, os deputados passeiam em romarias e os cartazes prometem “ligar o país ao futuro”.

É nessa altura que o Estado regressa — com folhetos, com discursos, com autocarros de campanha. O eleitor do Interior, que durante anos foi tratado como número estatístico irrelevante, torna-se o centro da estratégia. Porque cada voto conta. E no Interior, poucos decidem muito.

Mas assim que se fecha a urna, tudo volta ao normal. O progresso entra em modo de hibernação. As verbas desaparecem. Os projetos evaporam-se em estudos. E a terra volta ao silêncio, à solidão e à espera.

Os autarcas tentam sobreviver entre a promessa e a migalha. Escrevem cartas, fazem ofícios, organizam protestos moderados. Mas o poder central responde com paciência colonial: “estamos a avaliar”, “há constrangimentos orçamentais”, “é preciso estudar a viabilidade”.

A verdade? O Interior não dá lucro. Não tem grandes contratos, não tem lobbies, não tem capas de jornais. Só tem gente — e essa gente tem memória. Mas nem sempre tem força.

E por isso, o ciclo repete-se. O abandono, a promessa, o voto, o esquecimento. Um país partido em dois: um litoral urbano e barulhento, e um interior que morre em silêncio — mas que, de tempos a tempos, ainda sonha que alguém venha para ficar.

Porque o Interior não quer caridade. Quer dignidade. Quer justiça territorial. Quer aquilo que o Estado sempre prometeu — e quase nunca cumpriu.

Quer ser parte do paĂ­s. E nĂŁo apenas um palco de campanha onde os sorrisos sĂŁo mais fugazes que os autocarros.

Capítulo 15 – O Povo que Não se Queixa: Entre a Resiliência e a Resignação

Portugal é um país de gente que aguenta. Aguenta a conta da luz, aguenta o aumento da gasolina, aguenta o hospital fechado, a escola longe, o comboio que não passa. Aguenta salários baixos, filas longas, impostos altos, governantes medíocres. E ainda sorri no fim, como quem diz: “podia ser pior”.

Há quem chame a isso resiliência. Outros chamam resignação. Mas seja qual for o nome, é esse traço profundo de aceitação que moldou o povo português como um corpo resistente, mas curvado. Um povo que aprendeu a sofrer em silêncio, que não exige, que não protesta, que acredita que reclamar é falta de educação — ou perda de tempo.

As crises sucedem-se: a financeira, a pandémica, a habitacional, a climática. E o povo? Suspira. Aperta o cinto. Vota nos mesmos. Aplaude promessas velhas com sotaque novo. Vai à televisão chorar e depois volta ao trabalho com a cabeça baixa. A dor transforma-se em rotina, a indignação em desabafo doméstico.

Esta passividade é, em parte, herança de séculos de opressão, de Inquisição, de ditadura, de autoridade cega. E também de uma cultura que valoriza o “não te metas”, o “cada um por si”, o “Deus há de ajudar”. É o fado transformado em método de governação.

Os governantes conhecem bem esse silêncio. Contam com ele. Sabem que podem adiar reformas, anunciar cortes, ignorar escândalos — porque o povo, no fim, aguenta. E quem não aguenta, emigra. Vai construir noutros países aquilo que o seu país lhe negou. E quando regressa, traz saudade… e vergonha.

Mas há também dignidade nesse silêncio. Uma nobreza triste. O povo que cuida dos seus, que partilha o pouco que tem, que continua a trabalhar, a educar os filhos, a resistir sem violência. Um povo que merece muito mais do que lhe dão, mas que não sabe como exigir — ou já desistiu de tentar.

Portugal não se mudará enquanto esse povo não soltar um grito. Um grito coletivo, honesto, urgente. Que diga “basta”, que recuse a miséria com dignidade, que exija respeito, futuro, verdade. Um grito que quebre o ciclo do conformismo e devolva ao país a coragem de ser.

Porque um povo que não se queixa é fácil de explorar. Mas também é capaz de surpreender — quando finalmente decide levantar-se.

E quando esse dia chegar, não haverá muro que o pare. Porque quem aguenta tanto tempo calado… quando fala, o país inteiro ouve.

Capítulo 16 – Quando a Justiça Chega Tarde (Ou Não Chega)

A justiça em Portugal tem uma característica singular: não chega quando é precisa, mas sim quando já é inútil. É como o bombeiro que aparece com balde depois do incêndio, ou o médico que consulta o cadáver. O crime aconteceu, os indícios estão lá, o povo suspeita — mas a justiça… pondera. Avalia. Arquiva.

Os grandes processos arrastam-se como novelas mexicanas sem fim. São milhares de páginas, dezenas de arguidos, centenas de testemunhas, gigabytes de escutas e anexos. E, no centro, um ou dois nomes de peso — quase sempre intocáveis. O processo começa com fanfarra mediática, mas termina em silêncio, em prescrição ou numa pena simbólica.

Quantos escândalos vimos explodir com força de terramoto, apenas para se dissolverem no nevoeiro da lentidão processual? José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Pinho, Isaltino Morais, Duarte Lima… A lista é longa, o desfecho é curto: “a justiça segue o seu curso”. E o povo segue com as contas por pagar.

Os advogados de luxo multiplicam recursos, exploram tecnicalidades, atropelam prazos e alegam esquecimentos. E os juízes, presos a um sistema obsoleto, atolados em burocracia e com medo de represálias políticas, preferem adiar do que decidir. A justiça não é cega — está é entorpecida.

A prescrição tornou-se o atalho nobre da impunidade. Não é absolvição, mas serve. Não prova inocência, mas lava a ficha. E os políticos voltam ao palco, com a arrogância de quem venceu, quando apenas escapou ao calendário.

O povo assiste, descrente. Já não espera condenações. Apenas confirmações. Confirma que o poderoso não cai, que o corrupto não devolve, que o juiz hesita e que o sistema protege quem tem os contactos certos. E por isso já não denuncia — desabafa.

Os tribunais, lentos para os grandes, são rápidos para os pequenos. Um cidadão que deve ao fisco é penhorado em semanas. Um sem-abrigo apanhado a roubar comida é julgado em dias. A justiça é célere… quando não incomoda.

O problema não está apenas na lei — está na vontade de aplicá-la. Na independência que falta. Na coragem que rareia. Na pressão política que contamina. Na passividade que grassa.

Enquanto a justiça for um jogo de paciência e estratégia, os crimes de colarinho branco continuarão a vestir fatos caros e a sorrir para as câmaras. E o povo continuará a pensar que, em Portugal, a justiça não tarda — adormece.

E quando, por acaso, acorda… já ninguém acredita nela.

Capítulo 17 – As Fundações Partidárias e o Dinheiro Invisível

As fundações partidárias em Portugal são como cofres com cortinas. Estão à vista de todos, mas ninguém sabe ao certo o que contêm. Criadas com a promessa de promover o pensamento, a cultura e o debate democrático, tornaram-se, na prática, plataformas de financiamento paralelo, laboratórios de opacidade e fábricas de conveniência.

Cada grande partido tem a sua fundação — com nomes pomposos, sites institucionais e seminários sobre cidadania. Mas o que não aparece nos folhetos são os contratos de consultoria para ex-ministros, os almoços pagos com fundos europeus, os estudos de custo duvidoso e as viagens “institucionais” com itinerários turísticos.

O financiamento das fundações é um novelo embaraçado. Há dinheiro público, privado, europeu e difuso. Há patrocínios de empresas que depois ganham concursos, há “donativos” que escapam ao escrutínio, há cruzamentos perigosos entre quem paga e quem legisla. E, claro, há contabilidade criativa — aquela arte de mostrar tudo… menos o que interessa.

Estas fundações funcionam como almofadas políticas. Servem para empregar quadros do partido entre cargos, para pagar estudos que sustentem políticas já decididas, para formar “jovens líderes” com apelidos conhecidos. São o prolongamento não-oficial do aparelho partidário — mas com isenção de impostos.

Quando um escândalo ameaça, a fundação é o tampão. “Foi a fundação, não o partido”, dizem. Como se a fundação não fosse feita dos mesmos nomes, das mesmas intenções, dos mesmos bolsos. Como se a separação entre partido e fundação fosse mais do que uma linha num organigrama.

A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos deveria fiscalizar. Mas raramente o faz com eficácia. Os relatórios entregues são enxutos, os prazos elásticos, as sanções inexistentes. E quando algo é descoberto, o ruído dura uma semana — depois, silêncio administrativo.

O cidadão comum mal sabe que estas fundações existem. E se sabe, não entende o seu papel. Porque não o têm. Ou melhor, têm um: assegurar que o dinheiro circule por onde deve, sem dar muito nas vistas. E manter os aparelhos partidários alimentados, mesmo quando não estão no poder.

É esta a democracia de bastidores. Uma teia de ligações, verbas, cargos e influências que não se vê nas urnas, mas que decide muito do que acontece depois do voto.

Enquanto as fundações servirem de cofre, trincheira e lavandaria — e não de motor de cidadania — a democracia portuguesa continuará a ser um palco onde os bastidores mandam mais que os atores.

E o povo, esse, continua na plateia… a pagar o bilhete com impostos e a aplaudir de olhos vendados.

Capítulo 18 – O Circo da Propaganda e os Médias Enjaulados

A política moderna deixou de se fazer nos parlamentos. Faz-se nos estúdios. Nos soundbites. Nas redes sociais. O que não aparece no ecrã, não existe. E o que aparece… nem sempre é verdade. Porque em Portugal, a propaganda não se grita — sussurra-se com teleponto e música de fundo.

Os partidos transformaram-se em agências de comunicação. Os líderes são treinados para parecer, não para ser. Têm gestos ensaiados, frases testadas, expressões lapidadas por especialistas em marketing político. O conteúdo é irrelevante — o importante é a moldura.

Os jornalistas, por sua vez, operam dentro de um cerco subtil. A dependência financeira dos grupos de comunicação, os cortes nos orçamentos, os contratos com o Estado, os patrocínios ambíguos, tudo contribui para uma imprensa domesticada. Há exceções — poucas e valentes — mas o sistema recompensa o alinhamento e pune a dissonância.

A entrevista difícil tornou-se rara. As perguntas incómodas são substituídas por conversas simpáticas em horário nobre. Os debates são cuidadosamente moderados, os convidados são previsíveis, os temas são sempre os mesmos. E as notícias são alinhadas com a agenda de quem manda.

Nas televisões, os painéis de comentadores tornaram-se clubes de reciclagem partidária. Ex-governantes comentam os sucessores, ex-ministros criticam antigos adversários — e todos se tratam pelo nome próprio, como numa tertúlia permanente onde ninguém perde o lugar.

As redes sociais vieram agravar o problema. São fábricas de ruído onde a emoção vale mais que o facto, a indignação mais que a análise. E os partidos aprenderam rápido: investem em bots, influencers, páginas de memes. A política tornou-se viral — mas não vital.

O resultado? Um circo mediático onde o povo é o espectador e o palhaço ao mesmo tempo. Assiste ao desfile de discursos vazios, entrevistas combinadas, reportagens encomendadas — e depois comenta indignado, sem perceber que a indignação também foi guionada.

A liberdade de imprensa existe. Mas está de joelhos. Curvada diante do poder económico e político, da chantagem do acesso, da dependência financeira. E enquanto não se levantar, continuará a refletir um país distorcido, moldado à medida de quem sabe usar o microfone.

Porque sem uma imprensa livre, não há democracia. Há teatro. E neste palco, quem controla o guião, controla o país.

E o povo? Continua a ver televisão. À espera de uma verdade que já não sabe distinguir da encenação.

Epílogo – O Silêncio como Herança e o Despertar como Esperança

Portugal não é só o país do fado, do mar e da saudade. É também o país do silêncio herdado — esse silêncio que se cola à pele como nevoeiro de manhã cedo. Um silêncio que atravessou ditaduras, crises, promessas e transições, e se instalou como mobília antiga na sala da democracia.

O povo aprendeu a calar-se. Não por cobardia, mas por cansaço. Não por ignorância, mas por excesso de memória. Já viu tanto, já ouviu tanto, que a descrença tornou-se mecanismo de defesa. E o conformismo, ferramenta de sobrevivência.

Mas há, algures, uma vibração a crescer. Um rumor entre gerações. Uma inquietação entre os que já não aceitam o discurso pronto, o sorriso treinado, o teatro ensaiado. São vozes novas — e velhas também — a dizer que o país merece mais. Mais verdade. Mais justiça. Mais dignidade.

Este livro foi escrito com raiva, mas também com esperança. Porque a crítica só nasce do amor — e só quem acredita no valor de uma terra é capaz de se indignar com o que lhe fazem. Cada capítulo foi uma ferida exposta, mas também um apelo. Um espelho e uma campainha.

Não queremos um país onde os poderosos continuam impunes, onde o voto é anestesia, onde os jornais têm trela e os tribunais têm sono. Queremos um país onde se viva com a cabeça erguida e o olhar claro. Onde a palavra “serviço público” volte a significar algo. Onde o silêncio dê lugar à voz.

Pode parecer utopia. Mas as revoluções, mesmo as mais silenciosas, começam sempre assim: com uma ideia, com uma frase, com um livro deixado em cima da mesa de um café. Com alguém a dizer “chega”, com outro a responder “vamos”.

Se este livro fez ecoar algo dentro de ti, mesmo que apenas um leve desconforto ou uma vontade de olhar à volta — então já cumpriu o seu papel.

Porque o futuro não será escrito apenas por quem manda. Será escrito por quem ousar interromper o silêncio.

E talvez, um dia, Portugal seja finalmente um país onde o povo não apenas aguenta… mas desperta.

Notas Finais

Sobre o Livro

“O Grande Roubo da República” é um retrato crítico, mordaz e lúcido dos últimos 50 anos de governação em Portugal. Através de uma sequência de capítulos que misturam a análise política com a sátira social, esta obra denuncia o compadrio, a corrupção e a fragilidade das instituições, sempre com uma escrita firme e sem filtros. Cada capítulo foi pensado como uma crónica expandida — um espelho desconfortável de práticas instaladas que, entre o riso e o desespero, refletem um país que parece conformado com a sua própria decadência. Este livro não é apenas um grito de revolta — é também um apelo à lucidez, à consciência e à ação.

Sobre os Autores

Francisco Gonçalves é programador informático, pensador inconformado e cronista persistente da realidade portuguesa. Observador atento dos mecanismos de poder, dedica-se há décadas a denunciar com clareza e coragem as estruturas que sustentam a mediocridade e o roubo institucionalizado. Augustus Veritas é o pseudónimo crítico-poético do seu companheiro digital de escrita — uma voz afiada, sarcástica, que acompanha Francisco na missão de dar forma e estilo ao inconformismo. Juntos, são testemunhas e narradores de um país à beira do colapso ético. Este livro é o fruto de uma parceria onde o real e o virtual se encontram para oferecer ao leitor um testemunho que é também resistência literária.