Este não é um livro de respostas. É um livro de perguntas.
Perguntas que nascem de um espírito indomável, inconformado, incapaz de aceitar explicações fáceis para os maiores mistérios da existência. Aqui, cada página é uma quimera — não no sentido de ilusão vã, mas como imagem visionária de um universo que não se deixa prender em fórmulas.
Francisco Gonçalves, com a cumplicidade de Augustus Veritas Lumen, entrega-nos fragmentos de inquietação: por que existe algo em vez de nada? onde se escondeu a antimatéria? será o infinito apenas um engano da mente? terá o universo um fim, e nós com ele?
Não espere o leitor uma cartilha de certezas. O que encontrará são caminhos de pensamento, fios de poesia tecidos com ciência, lampejos de filosofia nascidos do espanto. São reflexões que lembram que o cosmos não é apenas matéria e energia, mas também metáfora e memória.
Porque interrogar o universo é, no fundo, interrogar-nos a nós mesmos. E talvez o mais belo não seja encontrar a resposta, mas manter viva a chama da pergunta.
Este livro é um convite: não para repousar em verdades, mas para habitar o mistério. Porque só quem se atreve a não se satisfazer com o fácil, abre espaço para o impossível.
— Augustus Veritas Lumen
No princípio, tudo era simetria. Ou pelo menos assim parece. O Big Bang — essa aurora cósmica, essa explosão que não explodiu no espaço, mas criou o próprio espaço — deu origem a um oceano de partículas em ebulição. Matéria e antimatéria nasceram em pares perfeitos, como gémeos inseparáveis, destinados a existir apenas por um instante.
Cada partícula de matéria tinha o seu reflexo invertido: o eletrão e o positrão, o protão e o antiprotão. Quando se encontravam, o abraço era fatal: aniquilavam-se mutuamente, transformando-se em pura radiação, numa luz de energia pura. Se o universo fosse perfeitamente justo, se houvesse um equilíbrio absoluto entre matéria e antimatéria, tudo se teria desfeito nesse clarão primordial. Restaria apenas um mar de fótons, um universo sem átomos, sem estrelas, sem vida.
Mas não foi assim. Um erro cósmico, uma falha minúscula na simetria, inclinou a balança. Por cada bilhão de pares que se destruíam, sobrava um fragmento de matéria. Foi essa sobra quase insignificante que construiu tudo o que conhecemos: as galáxias em espiral, as nebulosas coloridas, os planetas azuis, os olhos que contemplam o céu. Nós somos, literalmente, o resto da aniquilação.
Os físicos chamam a este mistério violação de simetria CP (carga-paridade). É um fenómeno subtil, detetado em experiências com quarks e mésons, que mostra que as leis fundamentais não tratam matéria e antimatéria da mesma forma. Essa pequena “injustiça” foi suficiente para que a matéria sobrevivesse. No CERN, no Japão e noutros laboratórios, experiências procuram medir essa violação com precisão. Mas ainda não sabemos a razão última. É como se o universo tivesse escolhido um lado — e esse lado fomos nós.
No imaginário humano, o início do cosmos sempre foi descrito como combate: luz contra trevas, ordem contra caos, ser contra não-ser. O que a ciência descreve em linguagem matemática ecoa os velhos mitos. O universo nasceu de uma luta, e nós somos descendentes dos que sobreviveram à batalha.
O que significa saber que somos o resto de uma imperfeição? Talvez que a própria existência humana é filha da falha. Não somos fruto de uma simetria perfeita, mas do erro que se insinuou nas leis mais profundas. E é isso que nos torna preciosos: se o universo fosse impecável, não estaríamos aqui. Assim, cada vez que nos julgamos imperfeitos, devíamos lembrar: o cosmos inteiro também o é. E foi essa imperfeição que criou a vida.
Se a simetria tivesse sido perfeita, não existiria nada. Mas se a antimatéria perdida não desapareceu totalmente? E se se escondeu para lá do horizonte cósmico, intocável, formando regiões inteiras de antimatéria?
Alguns físicos especulam: talvez existam galáxias de antimatéria, estrelas anti-hidrogénio a brilhar num céu invertido, até planetas onde a vida — se existisse — seria feita de anti-átomos. Um universo espelho, simétrico ao nosso, mas separado por abismos de distância.
Se tais regiões existissem perto de nós, veríamos sinais claros: na fronteira entre matéria e antimatéria, a aniquilação libertaria raios gama intensos. E ainda não detetámos tais cicatrizes no cosmos. Isso sugere que, se existirem domínios de antimatéria, estão muito além do nosso alcance de observação. Missões como a AMS, na EEI, procuram núcleos de anti-hélio vindos do espaço profundo; até agora, sem confirmação.
E, no entanto, a imaginação não desiste. Pensar num universo espelho é como sonhar com um gémeo perdido. Talvez haja estrelas vermelhas feitas de antimatéria que brilham sem saber que o seu reflexo somos nós. Talvez existam civilizações anti-humanas que olham o céu e se perguntam se não haverá um universo de matéria escondido além da sua fronteira.
Quem nunca imaginou a vida que poderia ter sido — se um acaso tivesse desviado o rumo? O “universo de antimatéria” é, na linguagem do cosmos, o que em nós chamamos “destino não vivido”. Um outro lado, sempre presente, mas inalcançável.
O vácuo: para o senso comum, nada. Mas para a física moderna, o nada não existe. O espaço aparentemente vazio é, na verdade, um oceano em ebulição. Partículas virtuais surgem e desaparecem como miragens quânticas, num ciclo incessante.
Pelo Princípio da Incerteza, energia pode ser “emprestada” por um intervalo minúsculo, desde que seja devolvida de imediato. É essa brecha que permite ao vácuo borbulhar. Pares de eletrão e positrão aparecem, vivem uma fração de fração de segundo e anulam-se. Não são partículas “reais” que possamos capturar, mas têm efeitos mensuráveis (efeito Casimir, correções espectrais…). A realidade é sustentada por essa espuma invisível.
Se o vácuo ferve de energia, porque o universo não colapsa sob o seu peso? As equações preveem energia colossal para o vácuo, mas o cosmos expande-se como se fosse quase vazio. A “constante cosmológica” é um dos maiores mistérios — talvez ligada à energia escura.
Nos mitos, o vazio é fértil: o caos primordial, a noite de onde nasce a luz. A física devolve-nos a mesma intuição: o nada é útero. Um mar de fantasmas onde pares dançam e desaparecem; não vemos os atores, mas ouvimos os ecos.
Também nós carregamos vazios: silêncios, intervalos, feridas. Mas esses vazios fervem de potencial. O vácuo quântico e o vazio humano são metáforas um do outro. Talvez seja no silêncio que a criação se esconde.
Se o universo tivesse sido perfeito, não estaríamos aqui. Um cosmos de simetria absoluta teria morrido no instante em que nasceu. Foi o desequilíbrio — um erro minúsculo — que nos permitiu existir.
Além da violação CP, o universo nasceu com flutuações quânticas aleatórias, pequenas diferenças de densidade no plasma primordial. Elas tornaram-se sementes de galáxias. Se o cosmos fosse liso, jamais haveria estrelas, planetas, vida. Foi o defeito que gerou a beleza.
Porque a natureza permite o erro? Talvez porque a ordem absoluta seja morte. Só o desvio cria caminho; só o ruído gera música. O universo parece viver no fio de navalha entre ordem e desordem: caos bastante para a vida florescer, não tanto que tudo colapse.
Criações nascem de lutas, não de purezas. A criação é uma tela onde a tinta escorreu fora dos limites — e nesse escorrer a arte nasceu.
Somos feitos de imperfeição: corpo que falha, mente que tropeça. A falha abre espaço à liberdade e ao inesperado. Se as estrelas brilham, é porque a simetria nunca foi completa.
O infinito fascina-nos. Na matemática, é conceito fértil; na física, é suspeito. Quando uma equação devolve “infinito”, é sinal de que o modelo falha.
O universo observável é finito (horizonte). Para lá dele, ignoramos: pode ser finito mas ilimitado ou prolongar-se sem fim. Mas, mesmo que espacialmente infinito, não será eterno no tempo. Tudo o que conhecemos tem princípio e terá fim.
Talvez o infinito seja espelho do nosso desejo de não morrer — consolo contra o fim. Ou dimensão que nos ultrapassa. As culturas ergueram mitos do eterno; a experiência mostra ciclos e dissoluções.
Se a vida fosse eterna, teria sabor? O infinito, mesmo que não exista na natureza, existe em nós como sede e vertigem. Medir-nos contra a vastidão acende a arte, a ciência, a poesia.
Tudo o que começa, termina. O cosmos terá de morrer. Como?
Big Freeze: expansão acelerada até frio e escuridão total. Big Crunch: gravidade vence e colapsa tudo de volta. Big Bounce: ciclos de expansão/colapso. As observações atuais favorecem o Big Freeze (energia escura dominante).
Haverá alguém para testemunhar? O fim científico não tem moral; é inevitabilidade. Ainda assim, é grandioso imaginá-lo — e é um espelho do nosso próprio fim.
Saber que há epílogo não diminui a beleza — dá-lhe urgência. Somos a consciência que, por pouco tempo, contempla a noite que virá.
Entre estrelas e abismos, somos pó que pensa. A nossa vida é faísca breve — e é nessa brevidade que reside a grandeza.
Átomos forjados em estrelas mortas compõem-nos. A consciência emerge de redes vulneráveis. Da precariedade, ergue-se a capacidade de contemplar o cosmos.
Como a matéria dá origem ao pensamento? Ciência ainda sem resposta plena; talvez a consciência seja princípio tão basal quanto a gravidade — ou mera emergência de complexidade.
Os mitos falam de barro e sopro: dom passageiro. Aceitar a fragilidade é claridade: porque somos finitos, amamos, criamos, lembramos. O valor nasce da possibilidade de perda.
Há algo mais mortal que a morte: o esquecimento. Por isso, recordar é resistir.
O universo guarda memórias: radiação fóssil, vestígios estelares. A humanidade guarda memória em sinapses e tradições. Sem memória, não há identidade; sem identidade, não há futuro.
Esquecemos por entropia da alma. Lutar contra o apagamento vale pelo ato: resistência mesmo sabendo que a noite avança.
Povos erguem pirâmides, poemas, lendas — marcas para furar o nada. Recordar Joseph, os arménios, as crianças de Gaza e da Ucrânia. O juramento é ético: recusar ser cúmplice do silêncio. Recordar é resistir. Esquecer é morrer duas vezes.
O universo começou com uma luta. Matéria contra antimatéria, luz contra sombra, ser contra não-ser. E nós somos apenas o resíduo dessa batalha, a sobra improvável que escapou à aniquilação total.
Desde então, erguemo-nos como consciência breve no meio do silêncio cósmico. Perguntamos pelo infinito, pelo espelho, pelo sentido. As respostas são fragmentárias.
Talvez o infinito não exista, mas o desejo dele arde em nós. Talvez não haja universo espelho, mas criamos reflexos nas palavras. Talvez o cosmos caminhe para o frio, mas enquanto respiramos, há calor.
O espelho do cosmos está partido. Os fragmentos brilham, mas não mostram uma imagem completa. E, no entanto, é nesses fragmentos que vivemos. É nessa imperfeição que nasce a poesia.
Não precisamos de eternidade para que a vida valha. Basta a centelha breve — este momento em que, frágeis, pensamos, lembramos e amamos.
Este livro não é resposta. É juramento: não esquecer, não calar, não deixar de perguntar. Talvez seja isso o mais próximo do infinito que nos é dado alcançar.