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Capa do livro O Rei dos Abraços e Ruína

O Reino dos Abraços e das Ruínas

Crónica satírica do reinado de Marcellus Empoladus I
Príncipe da Proximidade e Doutor Honoris Palavrosus

O Reino dos Abraços e das Ruínas

Crónica satírica do reinado de Marcellus Empoladus I, Príncipe da Proximidade e Doutor Honoris Palavrosus

Índice do Livro

1. Prólogo – O Início da Farsa

2. Capítulo 1 – O Beijo das Massas

3. Capítulo 2 – República dos Discursos Vagos

4. Capítulo 3 – O Conselheiro das Sombras

5. Capítulo 4 – A Corte dos Togados e dos Reizinhos

6. Capítulo 5 – O Encantador de Crises

7. Capítulo 6 – A Fábrica das Inaugurações

8. Capítulo 7 – O Latim e a Lágrima

9. Capítulo 8 – A República do Nada

10. Epílogo – Do Teatro à Página

Declaração de Intenção Autoral

O Reino dos Abraços e das Ruínas é uma obra de ficção literária e sátira política. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou falecidas, é intencional apenas enquanto reflexo crítico de figuras públicas e fenómenos sociais contemporâneos.

Esta obra não pretende difamar, caluniar ou injuriar qualquer indivíduo ou instituição. Utiliza o humor, a ironia e o exagero como ferramentas legítimas de liberdade de expressão, crítica democrática e intervenção cultural. O seu propósito é promover a reflexão cívica, a consciência crítica e o debate plural sobre o estado da vida política em Portugal.

Em conformidade com a Constituição da República Portuguesa e com os princípios universais da liberdade artística e de pensamento, esta obra está protegida como expressão literária e satírica.

A sátira é uma forma de amor ao país: quando não se pode reformar com decretos, ri-se com coragem.

Prólogo – O Início da Farsa

Num país onde a tragédia grega se funde com a burocracia medieval e a comédia de enganos, ergue-se uma figura de brilho efémero mas omnipresença constante: Marcellus Empoladus I, o Presidente dos Abraços. Surgiu como o Salvador da Proximidade, o Senhor das Inaugurações e o Cardeal da Concertação. Com um sorriso sempre pronto, uma palavra para tudo e uma câmara por perto, Marcellus Empoladus I tornou-se não apenas presidente, mas personagem. Portugal, esse velho reino travestido de república, recebeu-o com festa. A televisão cobriu os passos, a população sorria nas selfies, e o sistema suspirava de alívio. Tínhamos, finalmente, um estadista... ou ao menos um entertainer. Mas por detrás das palmas e dos abraços, do casaco ao ombro e dos discursos em latim, escondia-se a verdadeira essência do seu reinado: a arte de muito dizer sobre absolutamente nada. E assim, entre beijos em velhinhas e visitas a casas ardidas, foi-se escrevendo uma época. Uma época de encenação, de cerimónia, de palavra vã. Uma época de Marcellus Empoladus I, o Burlesco.

Capítulo 1 – O Beijo das Massas

Logo ao primeiro dia, Sua Excentricidade tomou o país de assalto. Não com decretos, reformas ou leis, mas com o toque humano, aquele que substitui a governação pela empatia performativa. O povo, ainda estonteado com as traças dos governos anteriores, vê em Marcellus Empoladus I um "pai" afectuoso, um "presidente do povo". Visitas a praias, a hospitais, a bairros degradados... nada escapava. Se houvesse uma lixeira a precisar de visita presidencial, lá estava Marcellus Empoladus I, de botas e sorriso, pronto para declarar: "Estamos todos juntos nisto." E depois, seguiria para a próxima inauguração, o próximo chá, a próxima fotogenia. Cada aparição tornava-se episódio. Cada frase, um soundbite para a noite televisiva. Quando se lhe apontava a ausência de acção política concreta, ele oferecia emoção. Numa terra de desilusão crónica, isso bastava. Começou-se a falar de "afectos" como se fossem política. A compaixão substituía a estratégia. A presença ocupava o lugar da mudança. E Portugal, como criança carente, aceitava o colo e esquecia a fome. Mas a fome voltava. E o presidente, de helicóptero em helicóptero, descia apenas para ser visto. E depois subia, deixando ao povo apenas o calor residual do seu sorriso e mais uma fotografia para o álbum das ilusões. O Beijo das Massas estava dado. E o país, faminto de atenção, retribuía com aplauso.

Capítulo 2 – República dos Discursos Vagos

Havia uma arte que Marcellus Empoladus I dominava como ninguém: o dom do verbo sem substância. Em cada intervenção, entrevista ou solilóquio em directo, o Presidente derramava palavras como se fossem bênçãos: bonitas, melodiosas, mas irremediavelmente ocas. "Temos de manter o equilíbrio da esperança" dizia ele, sem nunca definir qual, de onde vinha, nem como se comia. "A estabilidade é fundamental para o país", repetia, sem nunca arriscar nomear quem a punha em causa. Era como um poema burocrático, um evangelho de generalidades. As televisões adoravam. Os comentadores elogiavam o seu estilo. E o povo, afogado em prazos para marcar consultas e em pré-avaliadas para pagar a renda, ouvia ao longe como se fosse um padre a recitar em latim. A linguagem de Marcellus Empoladus I era um nevoeiro de confiança. Prometia tudo e comprometia-se com nada. Ao mesmo tempo que assegurava que "os portugueses não estão sozinhos", deixava que milhares vivessem sozinhos em listas de espera, em lares degradados, em habitação precária. Era um discurso de almofada: confortava, mas não sustentava. E assim se mantinha a república, num equilíbrio teatral, entre o vazio eloquente e a inacção polida. Marcellus Empoladus I falava muito. E o país ouvia pouco. Mas ambos fingiam que se compreendiam. Como num casamento velho, onde só resta o hábito e a aparência de comunhão.

Capítulo 3 – O Conselheiro das Sombras

Não era apenas no palco que Marcellus Empoladus I reinava. Nos bastidores, entre bastões e câmaras apagadas, fazia-se ouvir o sussurro do seu poder disfarçado. Como um mestre de marionetas por trás do pano, dava conselhos, pressionava nomes, sugeria caminhos. Nunca oficialmente, sempre como "amigo do sistema". Nas reuniões discretas com líderes partidários, jogava o xadrez institucional com subtileza. Apoiava uns, silenciava outros, tudo com um ar de patriarca filosófico. A imprensa, reverente, falava do "homem que segura a estabilidade". Mas quem olhasse com atenção via os fios invisíveis do seu teatro. Chamavam-lhe "o grande moderador", mas não moderava, antes orientava com gestos suaves e frases neutras. Sugeria ministros como quem recomenda livros. Validava alianças como quem serve chá. E sempre, sempre com a capa de imparcialidade a proteger-lhe o gesto. Não há acto de governo que não tivesse o seu eco. Não há crise que não o visse surgir com opinião ponderada e olhar ténue. Era a voz sussurrante por trás dos discursos, o espelho no qual o poder gostava de se ver reflectido. E assim, enquanto o povo o via na praia, o sistema escutava-o na penumbra. Marcellus Empoladus I não era apenas actor principal. Era também o encenador da sua própria república de afectos e bastidores.

Capítulo 4 – A Corte dos Togados e dos Reizinhos

Se o trono de Marcellus Empoladus I estava erguido sobre os aplausos, a sua corte cintilava com figuras revestidas de toga, faixa presidencial ou sangue azul. Nenhuma cerimónia era demasiado pequena, nenhum título honoris causa demasiado exagerado. A liturgia da vaidade tinha, neste reino, calendarização oficial. E assim, com pompa e tradução improvisada, Marcellus Empoladus I celebrava doutoramentos reais e condecorações cruzadas. O Rei de Espãnhor, Dom Felipus VI, recebia diplomas enquanto Mattarellus, o Silencioso, era entronizado na Ordem das Reverências. Tudo perante os olhos vidrados de uma plateia vestida de beca e hipocrisia. O discurso, claro, era em latim. Porque nada comunica melhor a inutilidade do acto do que uma língua morta. Marcellus, com gesto solene e voz de seminário, elogiava "a dignidade universal", "a temperança de estadista" e outros nimbos de papelão. Cada palavra era um balão de ar quente com assinatura institucional. Mas o povo? Esse via pela televisão, se tivesse electricidade e tempo. Enquanto as elites se condecoravam mutuamente, os reformados aguardavam meses por uma consulta, e os jovens esperavam que o mercado de trabalho parasse de rir. A Corte dos Togados e Reizinhos era o teatro de marionetas das democracias esgotadas. Onde cada acto era encenação, cada mérito um favor cruzado, cada discurso um espelho de si mesmo. E Marcellus, maestro da pompa oca, orquestrava tudo com sorriso de vídeo institucional. No final, erguia-se um diploma, uma salva de palmas, e uma selfie com os "irmãos do sul da Europa". Nada mudava. Mas parecia importante. E isso bastava ao reino da aparência.

Capítulo 5 – O Encantador de Crises

Nenhuma tragédia era demasiado sombria para o brilho televisivo de Marcellus Empoladus I. Quando o país ardia em chamas, literalmente, com famílias inteiras consumidas por fogos infernais, quando aldeias se tornavam cinzas e o fumo invadia a alma do povo, lá estava ele. Sempre o primeiro. Sempre de luto rápido e expressão compungida. Chegava antes dos bombeiros, antes dos peritos, antes do recato. Numa das tragédias mais negras da história recente, a de Alguidares de Cima e Barroco de Baixo, onde dezenas de pessoas morreram carbonizadas em estradas sem saída, o nosso Príncipe da Proximidade não falhou. Pousou entre escombros, ofereceu abraços, debitou afectos. E partiu, deixando apenas a imagem e a música dramática do telejornal. Se caísse um helicóptero, lá estava ele. Se morresse uma família inteira à porta das urgências, lá estava ele. Se rebentasse um escândalo militar como o de Saltancos, com armas desaparecidas sob o nariz da defesa nacional, lá estava ele a declarar: "Apurem-se todas as responsabilidades, doa a quem doer." Mas doía pouco. Ou nada. A justiça, anestesiada por décadas de promessas e prescrições, dormia um sono profundo. E Marcellus Empoladus I seguia em frente, sem que a sua imagem de empático vigilante fosse beliscada. O país, ferido, não esquecia. Mas o Presidente sabia que o povo tem memória curta e um coração sedento de figuras paternais. Assim, enquanto a dor escorria pelas ruas, ele aparecia com palavras quentes como sopas de velório. Prometia tudo, e o tempo tratava de apagar a conta. Era o encantador de crises. Transformava desgraças em audiências. E a cada lágrima televisiva, a sua popularidade crescia. O inferno podia estar ao lado. Mas ele estava lá, com câmara e condolências, a construir o seu altar na dor dos outros.

Capítulo 6 – A Fábrica das Inaugurações

Era o ciclo da fita e da tesoura. Cada banco de jardim, cada rotunda, cada alargamento de passeio ganhava o seu dia de festa, com bandeiras, discurso e selfie presidencial. Marcellus Empoladus I, sempre disponível para cortar fitas e lançar primeiras pedras, fez da inauguração uma forma de governo. E enquanto os governos ruíam — não por ideias, mas porque um adjunto qualquer guardava 70 mil euros em notas, escondidos entre livros e luvas — lá estava ele, a sorrir com a dignidade dos ausentes. A corrupção escorria dos armários, mas Marcellus apenas dizia: "Importa é apurar tudo. Com rigor. Doa a quem doer." E depois ia lanchar com os escuteiros. Nada doía. Nada doía nunca. Nem mesmo quando a tragicomédia das gémeas brasileiras, transportadas com cunhas através do sistema de saúde, manchava as páginas de jornais internacionais. Asuuno, o filho do vetusto burlesco, aparecia com luvas brancas e silêncios profundos, e tudo se dissipava em espuma de noticiário. Portugal tornara-se um teatro onde o argumento era o absurdo, os actores improvisavam com falhas de memória, e o público já não distinguia drama de comédia. Mas havia sempre uma réplica bem dita, uma gargalhada encenada, uma fita para cortar. E assim seguia a república. Se o burlesco tivesse um rei, seria Marcellus. Mas como era presidente, fingíamos todos que aquilo não era teatro. Era Portugal.

Capítulo 7 – O Latim e a Lágrima

Era nos momentos mais cerimoniosos que Marcellus Empoladus I elevava a sua arte ao panteão do teatralismo presidencial. Discursos inteiros proferidos em latim, sem tradutor, perante auditórios boquiabertos — não de emoção, mas de incompreensão. A língua morta tornava-se assim a língua oficial do afecto solene, o canal ideal para dizer tudo sem que ninguém o contradissesse. Era também o momento de soltar a lágrima. Aquela, estrategicamente colocada no canto do olho, para brilhar ao flash e emocionar comentadores da noite. Houve choro nos funerais de Estado. Houve lágrima nos velórios das vítimas dos incêndios. Houve embaciamento nos olhos ao falar de democracias irmãs e de Constituições de papel couchet. Mas a lágrima, tal como o latim, era um recurso. Um elemento da encenação. Um argumento visual para validar a ausência de acção real. Quanto maior o vazio, mais eloquente a expressão. E o povo, esse, comoveu-se. Porque o teatro ainda funciona, mesmo quando se sabe que é teatro. Marcellus não mudava o rumo do país, mas oferecia um momento bonito para recordar. E no reino das ruínas, por vezes, isso bastava.

Capítulo 8 – A República do Nada

Ao fim de quase uma década de afectos, selfies, discursos e encenações, a República encontrava-se num lugar estranho: exactamente onde estava antes. Não se ergueram reformas, não se derrubaram injustiças, não se refundou nada. Mas houve presença. Muita presença. Marcellus Empoladus I não fora o Presidente da Mudança, mas sim o Guardião da Continuidade Morna. Nada foi suficientemente bom para entusiasmar, nem suficientemente mau para indignar. Tudo permaneceu numa suspensão cínica, como um concerto desafinado a que o público se habituou. A pobreza persistia, mas agora com um sorriso institucional. A corrupção estagnava, mas com promessas em latim. A justiça dormitava, mas o presidente visitava-lhe as escadas para lembrar que existia. Não se sabia muito bem o que se fazia em Belém, mas sabia-se que se fazia com carinho. Cada problema nacional ganhava uma declaração vaga e uma visita simbólica. Era o governo do gesto, da emoção e da fotografia. E o povo, exausto mas afável, agradecia. Afinal, sempre era melhor um actor simpático do que um vilão inepto. E a grande mentira da estabilidade era mantida com um sorriso paternal e um casaco ao ombro. Assim, a República do Nada viveu os seus anos dourados: cheios de nadas memoráveis e ausências eloquentes. Até que um dia, sem que ninguém reparasse, o mandato terminou. E tudo ficou exactamente igual.

Epílogo – Do Teatro à Página

Este livro é uma sátira com espelhos — espelhos partidos, côncavos e irónicos, onde se reflecte uma era de afetos sem reformas, presenças sem mudanças e promessas sem consequência. Marcellus Empoladus I é o retrato ficcionado de uma presidência onde a forma se sobrepôs ao conteúdo, e onde o país, entre abraços e inaugurações, permaneceu em estado estacionário. Aos leitores, este livro oferece não soluções, mas perguntas risonhas. A política, quando se transforma em teatro, torna-se perigosa — porque já ninguém sabe se o espetáculo é a verdade ou se a verdade foi dispensada do guião. Os autores deste livro são cidadãos, observadores, escritores da ironia e, acima de tudo, inconformados. Augustus Veritas, cronista lírico da decadência institucional, e Francisco Gonçalves, engenheiro da lógica, poeta da indignação e artífice da memória crítica, uniram-se para oferecer ao país uma crónica que é também testemunho e sátira. Que este livro inspire menos teatro… e mais verdade.

Notas Finais

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A realidade, neste reino de afetos televisivos e discursos em latim, ultrapassou a ficção mais burlesca. Este livro, por mais exagerado que possa parecer, foi escrito ao espelho de um país onde o absurdo se institucionalizou e o teatro substituiu o governo. Marcellus Empoladus I é personagem ficcional, sim. Mas os aplausos vazios, os abraços performativos, os escândalos adormecidos e as tragédias encenadas são bem reais. A comédia aqui escrita é o eco de uma tragédia nacional com muitos actos e poucos actores corajosos. Resta ao leitor, à luz do riso e da reflexão, decidir se este país merece continuar em cartaz ou se chegou o tempo de reescrever o guião. Porque o burlesco pode entreter... mas não deve governar.