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Capa do livro

Portugal em Chamas

Crónica dos Pirómanos de Gravata

por Augustus Veritas


Portugal em Chamas: Crónica dos Pirómanos de Gravata

Capítulo 1

Fogo Posto no Século XXI

Portugal é um país inflamável. Não só pelas matas secas ou os verões cada vez mais tropicais, mas sobretudo pela proximidade entre o fósforo e o favor. Aqui, o fogo não se apaga — negocia-se. Na manhã enevoada de 3 de agosto, o pequeno lugarejo de Vale das Braças acordou com o cheiro familiar da calamidade. Era o terceiro incêndio em cinco anos na mesma encosta, o que, na matemática lusa, conferia à zona o estatuto de recorrente e oportunamente sinistrada. A sirene da corporação local tocava como quem já não acreditava no próprio eco. Os bombeiros chegaram tarde — ou talvez cedo demais para o planeamento urbanístico. Tinham ordens para proteger um novo loteamento de luxo com o sugestivo nome de "Vistas do Inferno", cuja aprovação camarária fora assinada por um presidente de câmara agora em férias judiciais nas Seychelles. "Foi o calor, senhor inspetor", dizia o agricultor enquanto observava a chama dançar com apatia pelas silvas secas. "Sim, sempre é o calor", anotava o inspetor de óculos embaciados, ciente de que, no relatório final, a origem seria classificada como ignição natural de causa humana indeterminável com vestígios de combustão acidental deliberada. E assim, as cinzas cobriam a verdade com um manto de legalidade enfumada. O Ministério da Administração Ardida, sempre pronto a apagar dúvidas, já tinha um comunicado pronto desde o dia anterior. Afinal, os incêndios em Portugal seguem um guião previsível: 1. Alarme; 2. Helicópteros; 3. Primeiras lágrimas; 4. Primeiras acusações; 5. Primeiras adjudicações. No fim da tarde, as televisões instalavam tripés como quem semeia certezas. O repórter, ao microfone, murmurava: "Mais um incêndio. Mais um verão. Mais uma tragédia. Voltamos já depois da publicidade… com o novo desodorizante Flama Fresh."

Capítulo 2

O Ministério da Cinza e o Orçamento em Chamas

O edifício do Ministério da Administração Ardida situava-se na Avenida das Comissões Infinitas, número 666. Um colosso de betão e vidro fumado, onde decisões eram tomadas entre cafés pingados e contratos com cheiro a fumo. O ministro — o Excelentíssimo Senhor Doutor Engenheiro Teotónio Cinzas — era um homem de discurso incendiário e memória volátil. Surgia nas conferências de imprensa com gravatas cor de brasa e declarações bem ensaiadas: "Os fogos são uma prioridade para este governo, desde que não cheguem muito perto das nossas propriedades." No interior do ministério, os corredores estavam cheios de quadros com fotografias de helicópteros, aviões, tratores, drones, e até de uma cabra-montês que, em tempos, fora contratada para roer mato em zonas de difícil acesso. Nenhum desses equipamentos tinha sido entregue. Mas todos estavam pagos. Com IVA e aplausos parlamentares. A execução orçamental era uma dança de milhões. Cada verão, os cofres públicos abriam-se como portões de inferno, e empresas de nome sugestivo — como ChamaSegura, IncendeiaMais e Fénix Ibérica — disputavam contratos com mais fervor que os próprios incêndios. A regra era simples: quanto mais área ardida, mais lucros havia. O combate ao fogo tornou-se um negócio tão previsível que já se falava em lançar um mercado de futuros sobre hectares calcinados. Teotónio Cinzas era exímio em escapadelas retóricas. Quando confrontado por um jornalista incómodo sobre a ausência de prevenção, respondeu: "Prevenção é importante, mas a reação cria empregos, dinamiza a economia, e dá excelentes imagens para o telejornal." Nos bastidores, o orçamento dançava ao som da sirene. Os ajustes diretos eram justificados com carimbos de "urgência excecional" e as empresas contratadas por vezes mudavam de nome entre o almoço e o jantar. A única constante era a opacidade. E a certeza de que, no fim, as cinzas seriam varridas… para debaixo do orçamento do ano seguinte.

Capítulo 3

Canadair e Companhia: O Negócio dos Céus

O céu português, em dias de incêndio, torna-se um vaivém de aeronaves barulhentas, heroicas e caríssimas. Mas por detrás do ronco metálico dos Canadair e dos helicópteros Kamov, há mais do que água a cair: caem também milhões. Foi num concurso público relâmpago — anunciado às 23:47 de uma véspera de feriado — que a empresa **SkyBurn Lda.** ganhou o direito de alugar três aviões anfíbios pelo valor de… duzentos e trinta mil euros por hora de voo. Com IVA incluído e cláusula de mobilização espiritual. Estes contratos, chamados no meio de "voos santos", operam com um grau de opacidade que nem os próprios pilotos conseguem ver. As aeronaves, por vezes de matrícula duvidosa e manutenção teórica, voam entre chamas e burocracias, sempre a tempo de aparecer na televisão. Os pilotos são contratados a recibo verde celeste. Têm dormida paga em motéis com vista para o fumo e refeições incluídas — desde que tragam talão. A empresa faturava inclusive os minutos em que os motores estavam ao ralenti, porque segundo o CEO, "o esforço de esperar também custa". Um antigo piloto — codinome 'Gaivota 7' — contou à imprensa, sob anonimato e ameaças de não renovação: "Houve um incêndio em que largámos água sobre o mar. Era simulação para mostrar serviço. Filmado por drone e enviado ao ministério como prova de atuação." No Parlamento, quando se tentou abrir uma Comissão para escrutinar os contratos aéreos, a proposta ardeu antes de ser discutida. Foi arquivada sob a etiqueta: **'Perda de tempo e de votos potenciais'**. E assim, com céu nublado de interesses, o negócio dos ares continua. O combate aos incêndios tornou-se, literalmente, uma operação de alto voo.

Capítulo 4

A Brigada Fantasma e os Bombeiros por Encomenda

A história da Brigada Fantasma começa numa madrugada de verão, num quartel onde os capacetes estavam alinhados, mas os rostos ausentes. Era a Unidade Especial de Intervenção Rápida com Atraso Crónico, também conhecida como **B.I.C.A.** – Brigada de Intervenção Contra Ardências. Oficialmente, a BICA contava com 72 elementos. Na prática, havia dois de plantão, um a dormir e o outro a encher bidões de água à mangueira do jardim municipal. Esta brigada foi criada por decreto-lei em resposta à pressão mediática após um grande incêndio televisivo. Era composta por elementos recrutados via empresa de outsourcing, sem formação, mas com excelente presença em redes sociais. O lema do grupo: **“Mais selfies, menos labaredas”**. Na verdade, grande parte da força de combate aos incêndios era contratada por avença, com contratos que duravam o tempo de uma fogueira. Alguns nem sabiam enrolar uma mangueira, mas sabiam justificar despesas em formulários complexos. O relatório anual da Inspeção-Geral do Fogo (IGF) indicava que, em 2024, 14 mil horas de serviço foram prestadas por elementos 'não identificados', em viaturas que não constavam nos registos. Uma comissão foi criada para investigar. Nunca se reuniu. O presidente estava de férias. Os verdadeiros bombeiros — os que calçam botas, empunham mangueiras e enfrentam o inferno — esses são esquecidos, mal pagos, e por vezes humilhados por ordens superiores que chegam com o atraso de quem nunca sujou as mãos. E enquanto os heróis da linha da frente continuam a salvar o que podem, a brigada fantasma continua a faturar pelo que nunca fez. No fim do verão, há sempre um louvor institucional. Nunca aos bombeiros. Mas sim ao gestor de contratos que conseguiu 'otimizar os recursos hídricos em contexto de crise comburente'. O fogo passa. A farsa permanece.

Capítulo 5

O Padre do Fumo e o Plano Urbanístico Divino

Na freguesia de São Bartolomeu das Cinzas, a fé e o cimento sempre andaram de mãos dadas. Lá se dizia que Deus escreve direito por linhas urbanisticamente retificadas. O protagonista espiritual da zona era o Reverendíssimo Padre Melchior Fumo, pároco de verbo inflamávido e homilias com cheiro a piche e argamassa. Era ele quem benzia os terrenos antes — e às vezes durante — os incêndios. Dizia-se que tinha uma relação próxima com o Senhor… e com o Departamento de Planeamento da Câmara Municipal. Foi ele quem promoveu a construção do Santuário das Chamas Redentoras, erguido num terreno que ardera misteriosamente duas semanas antes de ser reclassificado como "solo urbano de exceção divina". O milagre do fogo tornou-se tradição local. Cada ano, na procissão dos Santos Bombeiros, o padre aspergia água benta sobre os projetos de urbanização, enquanto a banda filarmónica tocava o hino "Habitatus Dominus" em ritmo de marcha de betoneira. Os paroquianos eram fiéis e gratos: depois de cada incêndio, recebiam terrenos baratos, incentivos fiscais e um novo centro de exposições feito com os restos calcinados do anterior. Os planos de reconstrução eram mais rápidos do que os planos de prevenção, e todos pareciam acreditar que só através da destruição se alcançava a redenção habitacional. Padre Fumo tornou-se figura de destaque. Apareceu em talk-shows, foi capa de revista e até deu entrevistas em frente a ruínas fumegantes onde dizia, emocionado: "O fogo é a prova. O betão é a fé. Onde uns veem cinzas, nós vemos planta baixa." Aos domingos, a igreja enchia-se de fiéis, empreiteiros e engenheiros civis. As esmolas eram generosas. Os donativos eram dedutíveis. E o altar, esse, era revestido a azulejo de patrocinador. E assim, entre missas e maquetes, o plano divino seguia firme. Em São Bartolomeu, como em Portugal, a reconstrução sempre começa antes de a prevenção.

Capítulo 6

Eucalipto, Senhor das Cinzas

Na hierarquia da flora portuguesa, o eucalipto não é apenas uma árvore. É uma entidade. Uma força da natureza (e do lucro), cujo poder de combustão ultrapassa o da pólvora seca e da ira popular combinadas. Plantado por promessas, regado com subsídios e protegido por decretos, o eucalipto espalhou-se pelas colinas do país como se de um exército verde se tratasse — disciplinado, aromático e altamente inflamável. Foi o engenheiro Agripino da Silva, conhecido como o 'Druidão da Celulose', quem iniciou a campanha de expansão do eucalipto. Prometia desenvolvimento, progresso, e papel higiénico nacional. O que trouxe foi desertificação, erosão e uma paisagem sempre pronta a arder. Os relatórios científicos alertavam para os perigos da monocultura. Mas os relatórios económicos sussurravam promessas mais doces: exportações, dividendos e contratos de longa duração. E em Portugal, quando a ciência e a conta bancária se contradizem, o saldo vence. O eucalipto tornou-se senhor absoluto das serranias. Onde outrora havia carvalhos, sobreiros e pinhais, agora há filas e filas de troncos iguais, alinhados como soldados de uma legião incendiária. Os autarcas falavam de 'valorização do território'. Os proprietários, de 'rendimento passivo com alto retorno'. E os bombeiros? Esses falavam pouco. Estavam demasiado ocupados a tentar salvar o que ainda não fora reconvertido em cinza. Quando arde uma floresta de eucaliptos, não sobra sombra, nem solo. Sobra apenas um silêncio estéril, interrompido pela chegada de técnicos com novos planos para replantar… mais eucaliptos. E assim, o senhor das cinzas continua a dominar. Imperturbável, inodoro ao sentido crítico, aromático na combustão. Um símbolo do progresso em combustão lenta que Portugal parece não querer apagar.

Capítulo 7

O Código Penal e os Isqueiros Desaparecidos

Nos arquivos do Ministério Público existe uma gaveta — trancada com chave mestra e oração cautelar — onde repousam os processos relacionados com incêndios florestais. Está marcada com uma etiqueta em letras desbotadas: **'Ignorado por Falta de Prova Visível'**. Ao longo das últimas duas décadas, mais de 18 mil fogos registados em território nacional terminaram sem arguidos, sem condenações, e, em alguns casos, sem sequer uma audição preliminar. É como se os incêndios tivessem surgido por combustão espontânea de indignação popular. Os isqueiros usados nos crimes — quando encontrados — são arquivados com respeito quase museológico. Nenhum carrega impressões digitais, mas muitos trazem o selo de uma qualquer campanha eleitoral. O Código Penal, por sua vez, permanece intocado. Define com precisão milimétrica o que constitui crime de incêndio, mas esquece-se de mencionar as versões premium do delito: incêndio com contrato, fogo com benefício institucional, ou combustão com intermediação ministerial. Os procuradores que tentaram avançar em investigações sérias acabaram promovidos… para longe. Em departamentos onde nada arde além das pastas administrativas. Um juiz de comarca, hoje reformado, afirmou uma vez: "Apanhar um incendiário em Portugal é mais difícil do que encontrar um político a tempo inteiro numa tarde de sexta-feira." Mesmo quando há testemunhas, drones, mapas térmicos e fotografias por satélite, há sempre um erro processual, uma data mal escrita, ou uma assinatura queimada pelo tempo. E o suspeito? Normalmente está fora do país — em missões de reflorestação com vista para o Atlântico. E assim, entre leis inflamáveis e julgamentos por apagar, os culpados evaporam. A justiça arde lentamente. Mas nunca ilumina.

Capítulo 8

Televisões ao Vivo: Reality Show Nacional

Era uma vez um incêndio que não teve direito a cobertura televisiva. Ninguém o viu. Ninguém o discutiu. E, por isso, não existiu. Em Portugal, só se arde verdadeiramente quando há um repórter de microfone em punho e suor cenográfico na testa. As grandes estações disputam os melhores ângulos da calamidade como se fossem passes de um jogador promissor. A concorrência é feroz: quem chega primeiro ao monte em chamas, quem entrevista o habitante mais desfeito, quem capta o helicóptero a largar água como se fosse a última lágrima da nação. O fogo tornou-se espetáculo, e a reportagem, um guião previsível. Primeiro plano: labaredas ao longe. Segundo plano: populares em pânico. Terceiro plano: político com cara de preocupação fabricada e declarações de circunstância. Os repórteres são enviados para o terreno sem água, mas com maquilhagem. Transmitem ao vivo em frente a casas ardidas, com o grafismo a piscar em vermelho: **ÚLTIMA HORA – INCÊNDIO DE GRANDES DIMENSÕES**. No estúdio, o pivô pergunta com voz grave: "Há risco de propagação descontrolada?" E o jornalista responde: "Sim, há sempre risco, sobretudo quando falta prevenção e sobra combustível vegetal e burocrático." Depois vêm os debates, as análises com especialistas, os gráficos em 3D com ventos virtuais, e os anúncios entre segmentos: seguros, água engarrafada, e produtos à prova de fogo (metaforicamente, claro). O incêndio, uma vez extinto, desaparece da grelha. Substituído por futebol, um escândalo ministerial ou uma reportagem sobre dietas milagrosas. E a floresta, essa, continuará ausente — até que volte a arder e renasça… em direto.

Capítulo 9

A Comissão de Inquérito que Ard(e)u

No Parlamento da Nação, onde se debate com palavras que ardem menos do que se deseja, foi criada, com grande pompa e escassa esperança, a Comissão Parlamentar de Inquérito aos Incêndios Repetitivos e Misteriosamente Lucrativos. A proposta foi aprovada com 177 votos a favor, 42 contra e 21 abstenções estratégicas. Os membros da comissão foram escolhidos por critério de representatividade partidária, experiência em desresponsabilização, e competência em desviar olhares. Na primeira reunião, um dos deputados perguntou: "Vamos mesmo investigar ou apenas produzir um documento que pareça credível?" A sala riu. Ficou decidido, por unanimidade tácita, que se faria o segundo. Durante semanas, desfilaram perante a comissão dezenas de especialistas, autarcas, ministros, comandantes, ex-comandantes, e um agricultor de apelido Chamado que ninguém sabia ao certo quem convidara. As perguntas eram longas, as respostas evasivas, e o tempo escoava como a água nas condutas furadas do sistema de prevenção. Quando se chegou à fase dos relatórios, cada partido apresentou o seu. O da maioria falava em melhorias evidentes, apesar das cinzas. O da oposição clamava por responsabilidades, mas sem citar nomes. Os restantes documentos continham tabelas coloridas e promessas de ação futura, desde que houvesse orçamento europeu e boa vontade divina. O relatório final — com 364 páginas e nenhum culpado — foi apresentado com fanfarra. Os deputados sorriram para as câmaras, prometeram novas medidas, e aplaudiram-se mutuamente. Do lado de fora, os pinheiros voltavam a secar. A floresta ouvia em silêncio. Sabia que a próxima comissão já estava a germinar… nas cinzas da anterior.

Epílogo

Portugal, Terra de Cinza e Esperança

Portugal é uma terra de contrastes combustíveis: entre a beleza que arde e a esperança que insiste. Ano após ano, as chamas sobem, os hectares descem, e os relatórios multiplicam-se como cinzas ao vento. Mas entre os montes calcinados e os vales fumegantes, há quem fique. Há quem plante. Há quem recomece. O velho Joaquim, pastor de poucos bens mas muitas memórias, olha para a encosta que ardeu cinco vezes em vinte anos e diz: "Aqui já foi floresta, depois deserto, depois estaleiro. Agora será horta. E com sorte, sombra de figueiras." Nos rostos dos bombeiros voluntários, há cansaço, mas também coragem. Nos olhos dos que perderam casas, ainda brilha uma vontade que nem o fogo consegue consumir. E mesmo nos corredores onde se assinam contratos duvidosos, há vozes — pequenas, mas persistentes — que falam de mudança, de transparência, de uma nova forma de cuidar da terra e das gentes. Este livro não termina com uma moral. Termina com um aviso. A floresta pode regenerar-se. Mas o país só se salva se deixarmos de fingir que os incêndios são tragédias naturais, e começarmos a tratá-los como aquilo que muitas vezes são: crimes de oportunidade, com lucro garantido e vítimas silenciosas. No meio da cinza, ainda há semente. E onde houver semente, pode haver renascimento. Portugal arde. Mas pode, um dia, florir.