A República dos Carimbos
Crónica de um País Onde Tudo se Assina em Triplicado
Num país onde a burocracia é sagrada e o cidadão é servo do carimbo, “O Reino dos Carimbos” retrata um sistema kafkiano — e bem português — onde a inteligência foi exilada e a mediocridade promovida por decreto.
in (2023)
A República dos Carimbos
Epílogo – Entre Carimbos e Clarões
Sobre o Livro e o Autor
O edifício erguia-se no coração da capital como um fóssil de pedra e papelada. Tinha colunas de granito, portas de ferro e um cheiro persistente a carimbo húmido e tinta vencida. Era o Ministério das Coisas Sem Urgência — conhecido entre os iniciados como o túmulo da vontade.
Lá dentro, os ponteiros do relógio andavam devagar, como se receassem perturbar o silêncio ancestral. As paredes eram forradas com dossiês que já tinham sobrevivido a três revoluções e sete mudanças de governo — mas ninguém sabia exatamente o que continham. Dizia-se que o tempo ali não passava, apenas se acumulava em formulários.
Baltasar Simplório, o nosso protagonista, chegou com a alma em fila de espera. Trazia na mão um impresso azul-claro-não-confundir-com-o-azul-céu, que pedira há seis meses para poder submeter um pedido de autorização para finalmente renovar a licença de criatividade. Estava na hora de entregar o requerimento, acompanhado, claro, de três fotocópias autenticadas por uma entidade com selo reconhecido pelo Instituto Nacional de Reconhecimento de Selos (INReSe).
Foi atendido por uma funcionária chamada Perpétua Subtil — uma mulher cuja expressão facial permanecia inalterada desde o final do Estado Novo. Usava óculos de aros grossos, voz monocórdica e uma caneta que riscava mais do que escrevia. Baltasar entregou os papéis com a esperança tímida de quem se atira ao mar com bóias furadas.
— Senhor Simplório… faltam-lhe aqui duas coisas essenciais — disse ela, sem levantar os olhos. — A assinatura do responsável pela validação dos motivos subjetivos, e o comprovativo de não-perturbação da ordem pública.
— Mas isso não me tinham dito...
— Está tudo no Guia para Pedidos com Potencial Disruptivo. Página 217, alínea b), subitem iv.
Baltasar suspirou. O ar parecia mais denso ali dentro. Espesso como os séculos de servidão a que os cidadãos estavam habituados. Era como se cada papel atrasado alimentasse uma criatura invisível, um polvo imenso com tentáculos em todos os balcões do Estado.
De volta à rua, olhou para o céu com uma réstia de revolta no olhar. Pensou em fugir para a Galiza. Mas depois lembrou-se que, mesmo para sair do país, era necessário um certificado de não intenção de regresso. E esse só podia ser emitido pelo Departamento de Soberania Silenciosa, que estava — segundo o site oficial — “temporariamente indisponível devido a excesso de calma”.
Foi então que uma ideia lhe veio à mente. Uma ideia perigosa. Pensar fora dos formulários. Baltasar sorriu. Algo dentro dele começou a agitar-se, como se o espírito de uma república adormecida tivesse tossido.
Mas por agora, ainda precisava de mais um carimbo.
À frente, um velho segurava um saco de pano com todos os papéis que acumulava desde 1983 — dizia querer a liberdade para cultivar manjericos em terra própria, mas faltava-lhe a licença de solo patriótico e a declaração de intenções botânicas assinada por um engenheiro agrónomo credenciado pelo Estado.
Baltasar observava aquilo como quem assiste a uma peça de teatro absurda onde os atores não sabem que estão em cena. Quando chegou ao balcão número 9, foi recebido pelo mesmo olhar vazio de Perpétua Subtil, agora com um novo acessório: um crachá que dizia “Orgulhosamente Inerte desde 1974”.
— Bom dia, vim entregar o formulário complementar e solicitar as Fichas Triplas de Requisição de Liberdade, como previsto no anexo do Decreto Regulamentar Internamente Vago, versão consolidada.
Ela piscou lentamente.
— Tem o formulário de solicitação de acesso ao formulário de requisição?
— Esse foi o que entreguei ontem.
— Sim, mas para pedir as fichas triplas, precisa do comprovativo de submissão do pedido de acesso ao formulário de solicitação.
Baltasar sentiu um ligeiro zumbido nos ouvidos. Era como se a realidade estivesse a dobrar-se sobre si mesma, como um origami burocrático com vontade própria.
— Não seria mais simples... pedir tudo de uma vez?
— Senhor Simplório — interrompeu Perpétua, em tom ofendido — isto é um Estado de Direito. Há regras. E regras precisam de processos. E processos precisam de tempo. E tempo, como sabe, é a melhor forma de garantir que ninguém faz nada de jeito.
Dito isto, estendeu-lhe três folhas cor-de-marfim, cada uma com uma linha para preencher… e sete páginas de instruções.
As Fichas Triplas de Requisição de Liberdade eram lendárias. Tinham sido introduzidas em 1968 para acalmar os ânimos estudantis, e desde então tornaram-se parte integral do arsenal dissuasor do pensamento livre. Para as preencher, era necessário declarar em detalhe:
- A razão da liberdade requisitada (em no máximo 200 caracteres); - A ausência de intenções subversivas (acompanhada por atestado médico); - E uma justificação escrita à mão explicando por que motivo o cidadão se achava merecedor de autonomia pessoal.
Ao terminar de ler o primeiro parágrafo da primeira instrução da primeira ficha, Baltasar sentiu o cérebro murchar ligeiramente.
Foi então que, no banco ao lado, escutou um sussurro.
— Shhh… ei… você é dos que ainda pensa?
Era uma jovem. Tinha olhos vivos, sorriso de combate e um crachá clandestino: “Curiosa e sem remorsos”. Chamava-se Lúcia, e dizia-se pertencente ao Círculo dos Indomáveis — um grupo secreto que se encontrava em arquivos mortos e arrecadações abandonadas para discutir ideias… sem pedir licença.
Baltasar piscou-lhe o olho. E ela respondeu com um gesto rápido: três toques no formulário. O código silencioso da resistência.
O plano começava a desenhar-se.
Mas antes, ainda havia três fichas para preencher.
E todas exigiam letra legível.
Na cave do Ministério das Coisas Sem Urgência, para além do Arquivo das Intenções Inacabadas e do Depósito de Promessas Não Cumpridas, existia um cofre. Não era um cofre de dinheiro, nem de segredos nucleares. Era pior. Guardava o Código dos Mortos.
O Código, redigido entre 1820 e 1975 por várias comissões compostas por juristas insatisfeitos e funcionários com insónias, era o conjunto de normas que regia tudo aquilo que já não fazia sentido, mas ainda tinha força de lei. Era invocado sempre que alguém ousava fazer algo novo. Baltasar só ouvira falar dele em murmúrios — os mais velhos sussurravam: “não mexas muito… ainda te aplicam o Código”.
Depois do contacto com Lúcia e o gesto secreto, Baltasar fora convidado a um encontro clandestino dos Indomáveis. Aconteceu numa arrecadação abandonada do antigo Instituto Nacional da Vontade (hoje rebatizado como Observatório de Comportamento Apreciado).
Estavam lá uns sete. Cada um com um passado diferente, mas com um presente igual: vigilância, frustração e amor pela liberdade.
— A nossa missão, — disse Lúcia com um brilho nos olhos — é expor o Código dos Mortos. — Mas… ele está selado a sete chancelas! — exclamou um outro, de nome fictício Hilário Recalcado. — Só o Presidente Honorário da Comissão de Obediência Silenciosa pode abrir o cofre!
— E se eu te dissesse, — continuou Lúcia — que um dos nossos tem acesso?
Todos olharam para Baltasar. Este engasgou-se com o chá de lúcia-lima.
— Eu?! Mas eu mal consegui completar o Formulário P-0.0-∞!
— Justamente por isso. És invisível. Um cidadão obediente com traços de lucidez. O perfil ideal para infiltração. O Comissário Zé Ninguém já confia em ti. Estás dentro.
Na manhã seguinte, Baltasar regressou ao Ministério. No bolso, uma pen drive e um plano: aceder ao Código, extrair cópia, e expor o absurdo perante o povo — ainda que o povo, como se sabe, não goste de ser acordado a meio da sesta nacional.
Foi colocado numa sala especial: o Arquivo de Legislação Descontinuada Mas Ainda Válida. Ali encontrou o livro. Um tomo com 1.723 páginas, capa de couro, cheiro a século XIX e aviso em letra gótica:
“Este Código não deve ser lido. Apenas cumprido.”
Abriu na página 471. Ali dizia:
"Artigo 184.º — É proibido mudar o que já está estabelecido, mesmo que a mudança melhore o que está estabelecido. Parágrafo único: Melhorias são suspeitas de rebeldia."
Baltasar suou. Copiou. Fechou. Saiu. Mas foi seguido.
O Comissário Zé Ninguém apareceu à porta.
— Simplório… andou a mexer no que está quieto?
— Eu… só estava a consultar.
— Lembre-se: neste país, até pensar precisa de justificação escrita e dois carimbos. — Eu tenho os carimbos. — respondeu Baltasar. — Só falta a justificação.
E foi embora. Com o Código na mão.
À noite, os Indomáveis leram em voz alta passagens do Código. Riram, choraram, revoltaram-se. Estava tudo ali: o passado, o presente, e o futuro hipotecado.
— Amanhã, — disse Lúcia, com ar de profetisa cibernética — vamos publicá-lo. — E se ninguém ligar? — perguntou Hilário.
— Então fazemos o que sempre se fez por cá… Distribuímos em papel. E fingimos que foi um sucesso.
Era uma manhã igual a todas as outras no Departamento Geral de Arquivos, Encaminhamentos e Esquecimentos (DGAEE). O sol batia nos dossiers como se tentasse aquecê-los para que fermentassem em silêncio. E os funcionários, pálidos de tanto fluorescente, continuavam a sua missão ancestral: catalogar, empilhar e nunca, jamais, ler.
Mas naquele dia, algo mudou.
Começou com um som estranho — um ploc! seco, quase impercetível. Um dossier caiu sozinho de uma prateleira com trinta anos de silêncio em cima. A seguir, outro. Depois, mais três. Os funcionários, habituados a lidar com tremores da papelada, não ligaram.
Até que um dos armários mais antigos, com etiquetas escritas à máquina de escrever, arrebentou as dobradiças com um estrondo surdo e libertou centenas de folhas em voo descontrolado.
Baltasar estava lá. Tinha sido “recolocado” no DGAEE como forma de vigilância passiva. O Comissário Zé Ninguém acreditava piamente que, rodeado de pó e rotinas, o espírito rebelde se apagaria como fita magnética. Enganou-se.
As folhas voavam. Os ficheiros sussurravam nomes. E os Arquivadores, figuras cinzentas de bata e olhos baços, começaram a erguer-se das cadeiras. Um deles, o velho Benjamim Pardo, gritou:
— Chega de esconder! Os documentos querem ser lidos!
Foi o início. A Revolta dos Arquivadores.
Durante décadas, tinham obedecido. Tinham empilhado. Tinham etiquetado. Mas agora, libertos pelo sopro simbólico do Código dos Mortos revelado, algo no seu ADN administrativo despertara. Começaram a abrir gavetas interditas.
A ligar fotocopiadoras clandestinas. A imprimir cópias não autorizadas de processos há muito encerrados por conveniência política. Espalhavam-se pelos corredores com papéis na mão, gritando:
— Transparência ou incineração! — Leitura é poder! — Arquivo livre já!
A notícia chegou ao gabinete do Comissário Zé Ninguém. Este, pálido e engomado, convocou uma reunião extraordinária do Comité de Contenção da Memória.
— Eles querem ler! — exclamou em pânico. — Precisamos de reforços! De scanners com senha biométrica! De trituradores quânticos!
Mas já era tarde. Baltasar e Lúcia, infiltrados entre os revoltosos, conseguiram ativar o sistema central: o Arquivo Geral Digitalizado, uma relíquia esquecida da modernização dos anos 90, onde tudo tinha sido gravado e depois... ignorado.
— Um clique, — disse Lúcia, com o dedo no rato — e tudo isto pode ser tornado público.
Baltasar hesitou. Sabia o que isso significava: caos, processos, comissões de inquérito. Mas também… a possibilidade de recomeçar.
E clicou.
Em segundos, milhares de documentos começaram a circular. A rede interna do Ministério entrou em colapso. Os arquivos ganharam voz. E o país, espantado, descobriu que grande parte das suas decisões históricas tinha sido tomada por engano, pressa, ou excesso de café.
Na televisão pública, um jornalista murmurava:
— Parece que… há… provas. Provas de tudo. Até dos concursos de mérito que foram atribuídos por afinidade genética…
A revolta tinha começado. Nos arquivos.
E desta vez, não havia como arquivar a verdade.
No Palácio do Silêncio Estruturado, sede suprema do governo, as notícias da revolta ecoavam com o dramatismo de um fax em fim de toner. Os ministros reuniram-se em urgência. Não para agir — mas para redigir um comunicado a informar que iriam estudar uma possível reação à situação emergente no prazo razoável de seis trimestres.
Na sala oval onde se decidia o destino do país sem nunca se levantar a voz, o Primeiro-Administrador, conhecido apenas por Excelentíssimo Senhor Doutor Arsenato de Faria, ditava ao seu assessor:
— “A estabilidade emocional do regime é posta em causa quando arquivos ganham protagonismo. A verdade, em excesso, pode provocar distúrbios…”
— Excelência — interrompeu o assessor, com um sussurro — o povo está a ler.
— A ler? O quê?
— Tudo. Leis, pareceres, atas secretas, as instruções do Manual de Conduta do Submisso Ideal… até o orçamento fictício de 1999.
O Dr. Arsenato empalideceu. Nunca pensara que a transparência pudesse ser usada como arma.
Foi então que decidiram aplicar a medida máxima de contenção democrática: a exoneração da esperança.
Na prática, significava:
- Encerrar canais de debate sob pretexto de “atualização técnica”; - Introduzir mensagens de encorajamento vazio como “Tudo vai correr como sempre correu”; - E nomear um novo Alto Comissário para a Gestão do Desalento Público.
Este cargo foi entregue a um velho conhecido do sistema: o Reverendo Submisso Paz, ex-deputado, ex-consultor de moralidade pública e atual especialista em discursos de apatia motivacional. No seu primeiro comunicado à nação, declarou:
“O progresso não é necessário quando a tradição já nos deu tudo o que precisamos: regras, silêncio e boletins em duplicado.”
Enquanto isso, Baltasar e Lúcia refugiavam-se na cave da Biblioteca Nacional — uma das poucas instituições onde ainda se podia pensar em voz alta sem ser automaticamente detido.
— O povo está a acordar — disse Lúcia, olhos postos num ecrã de respostas automáticas do governo. — Sim, mas ainda está a pensar que sonha — respondeu Baltasar.
E foi aí que decidiram: a esperança não se exonera. Nem se arquiva. Nem se carimba. Espalha-se.
Através de textos anónimos, panfletos impressos em papel reciclado de requerimentos recusados, e mensagens escondidas entre os anúncios de cães perdidos, começaram a espalhar uma ideia perigosa:
“A liberdade não precisa de selo. Só de coragem.”
E pela primeira vez em muitos anos… houve alguém que respondeu.
As ideias sempre foram seres difíceis de domesticar. No país dos formulários, elas eram mantidas em jaulas invisíveis — com grades feitas de procedimentos, selos e um saudável medo do ridículo. Mas agora… estavam a fugir.
Começou numa escola primária, onde uma criança de oito anos ousou perguntar:
— Professora, por que é que precisamos de autorização para sonhar em ser astronautas?
A professora hesitou. Consultou o manual. Não encontrou a resposta. A criança foi chamada ao gabinete da Direção para avaliação de comportamento disruptivo.
Depois, numa junta de freguesia, um reformado decidiu organizar um clube de leitura… sem registo. Sem pedido de espaço. Sem carimbo. O escândalo foi tal que a televisão estatal noticiou:
“Perigo de literatura espontânea ameaça tranquilidade local.”
Em todo o país, cartazes começaram a surgir. Não tinham autor. Nem número de processo. Nem QR code oficial. Só diziam coisas como:
- "Se pensas, és suspeito." - "A curiosidade é contagiosa. Protege-te." - "A liberdade não se pede. Usa-se."
Baltasar e Lúcia coordenavam a operação a partir de um velho edifício abandonado da Rádio Nacional, onde ainda funcionavam microfones analógicos e um transmissor esquecido. Ali, criaram a Estação Frequência Livre — uma emissão pirata de palavras não autorizadas.
A cada noite, emitiam:
- excertos do Código dos Mortos; - vozes de antigos dissidentes; - poemas censurados; - perguntas que ninguém ousava fazer.
E do outro lado, nos lares, nas fábricas, nos cafés com moscas, ouvia-se em segredo. Um guarda-nocturno gravou a emissão num gravador a cassetes. Uma mulher da limpeza passou a declamar os poemas enquanto esfregava os corredores do Ministério da Estagnação. As ideias estavam a espalhar-se. E já não era possível recolhê-las.
O regime reagiu como sempre: criou o Gabinete Nacional de Contenção de Metáforas e Alegorias, liderado por um poeta reformado que há muito trocara a métrica pela métrica orçamental. Este declarou, com solenidade:
“A fuga de ideias não será tolerada. O pensamento alternativo será arquivado para estudo, e os seus autores… reciclados.”
Mas a fuga já era irremediável. As ideias tinham aprendido o caminho. Saltavam de boca em boca, de olhar em olhar, escondidas em trocadilhos, disfarçadas de piadas.
— Sabes o que é um cidadão feliz? — É aquele que ainda não percebeu o que perdeu.
E todos riam. Mas já ninguém ria da mesma forma.
Porque no fundo, todos sabiam: a maior ideia de todas estava prestes a nascer. E não cabia em lado nenhum.
O edifício do Tribunal do Bom Comportamento não tinha janelas. Apenas espelhos. Não para ver o mundo — mas para garantir que o mundo os via sempre sob a melhor luz possível.
Ali, não se julgavam crimes. Julgavam-se atitudes. Suspiros fora do tom, sobrancelhas levantadas com ironia, comentários infelizes sobre o tempo — tudo podia ser matéria de audição cívica. Chamavam-lhe justiça preventiva. Ou, como gostavam de dizer, “profilaxia social para evitar desvios morais ou cognitivos”.
Baltasar foi notificado por boletim de vigilância comportamental. Motivo: ter sorrido após ouvir uma piada sobre ministros incompetentes. Uma câmara captou o momento e o algoritmo classificou o riso como subversivo. Foi imediatamente agendada uma sessão sumária de esclarecimento.
Na sala de audiências, três juízes: - Juíza Consensina, presidente do tribunal e campeã nacional de obediência institucional; - Juiz Dúbio, que duvidava de tudo menos do regime; - E Juíza Parágrafo, especialista em encontrar ilegalidades no uso livre da vírgula.
— Senhor Simplório, sabe porque está aqui? — perguntou Consensina, sem olhar para ele.
— Por ter rido, creio eu.
— Riso sem autorização. Em contexto de crítica ao sistema. Grave.
— Mas era só uma piada...
— Justamente. As piadas são o início da dúvida. A dúvida é a mãe da desobediência. E a desobediência, senhor Simplório, é o útero do caos.
Baltasar engoliu em seco. Lúcia assistia como “observadora cívica neutra” — disfarçada, claro. Usava um crachá com nome falso e cara de entediada. Mas os olhos, esses, estavam prontos para a luta.
O julgamento durou treze minutos. Houve leitura de relatórios, exibição de vídeos de segurança, e até uma análise semiótica do tom vocal usado por Baltasar ao dizer “pois”.
A sentença foi clara:
“O réu é condenado a quatro semanas de sessões de reeducação cívica, participação num grupo de reflexão sobre a importância da harmonia silenciosa e contribuição obrigatória com artigos para o Boletim do Orgulho Obediente.”
Mas antes de ser conduzido, Baltasar levantou-se e disse:
— Vossas Excelências têm medo da liberdade. Porque a liberdade não se senta, não se cala, não se curva.
Um silêncio caiu sobre a sala. Consensina enrubesceu. Dúbio ajustou os óculos. Parágrafo quase perdeu a compostura gramatical.
Foi então que, na galeria, alguém aplaudiu.
Só uma palmada. Mas suficiente.
Em segundos, a sala estava cheia de som. Gente a bater palmas. A assobiar. A rir.
A juíza gritou: — Ordem! Ordem!
Mas era tarde. A ordem começava a ruir.
O país acordou.
Não com sirenes, nem com trompetes. Mas com o som estranhamente belo da dúvida em uníssono.
Baltasar Simplório, outrora cidadão discreto, estava agora em todas as bocas — e não porque tivesse feito algo extraordinário, mas porque ousara não aceitar o absurdo como normal. A transmissão clandestina da Frequência Livre ecoava por todo o território. Em cada esquina, alguém citava o Código dos Mortos como quem recita Salmos proibidos. E os Arquivadores, agora rebeldes em bata, publicavam os documentos suprimidos sob o título “Livros Negros da Verdade Engavetada”.
Foi então que o governo, pressionado, coagido, desorientado, decidiu agir. Convocou uma cerimónia. Solenemente absurda. Um último gesto de poder simbólico.
O Grande Carimbo Nacional, relíquia de chumbo e verniz herdada dos tempos da Monarquia Constitucional, seria usado uma última vez. Para selar, de forma irrevogável, o destino de Baltasar: um decreto de silêncio perpétuo. Um exílio administrativo.
No salão nobre, entre tapeçarias com brasões e polícias com ar de porteiros de teatro de revista, aguardava-se o momento final. Baltasar foi conduzido até à tribuna. O Comissário Zé Ninguém, mais lívido que nunca, segurava o carimbo com luvas brancas. À sua frente, o documento: Declaração de Inexistência Prática.
Mas antes que o selo tocasse o papel, Lúcia surgiu.
— Esperem! — gritou, com uma pasta de documentos na mão. — Não podem carimbar! Este decreto foi revogado esta manhã pelo novo Regime Transitório de Abertura Circunstancial!
Todos congelaram.
— Qual regime? — sibilou o Comissário.
— O que o povo acabou de aprovar.
Do lado de fora, uma multidão. Gente com cartazes. Gente com ideias. Gente com voz.
— Isto é ilegal! — gritou um oficial.
— Não — respondeu Lúcia. — É apenas inédito.
Baltasar pegou no carimbo. Olhou para ele como quem segura uma relíquia maldita. E em vez de carimbar o decreto, virou-se para o povo.
— Este selo não decide mais nada.
E esmagou-o no chão.
O som foi seco, metálico, final. Um silêncio reverente caiu. Depois, um grito. Depois, muitos.
— Basta! — Abaixo os selos! — Viva o pensamento espontâneo!
E assim terminou a cerimónia.
No dia seguinte, o sol nasceu sem autorização. E ninguém preencheu formulário.
As repartições estavam abertas, mas vazias. As ideias circulavam à solta, sem trela.
Baltasar e Lúcia sentaram-se num banco de jardim, entre dois antigos arquivadores agora convertidos em poetas de rua.
— Achas que isto vai durar? — perguntou ela.
— Não sei. Mas pela primeira vez… não precisamos pedir licença para tentar.
E assim, nesse país onde tudo precisava de carimbo… o último foi dado pela liberdade.
Dizem que, no final, tudo volta ao início. Mas neste país onde os papéis pesam mais que as ideias, algo mudou. Não porque as instituições ruíram, mas porque as consciências acordaram.
Baltasar Simplório não fundou um partido. Não se candidatou a nada. Não ganhou medalhas.
Apenas caminhou com Lúcia por ruas antes silenciosas, agora cheias de palavras em ebulição. Passou a ser reconhecido não pelo nome, mas pela ideia que incendiou sem fósforos: a de que pensar não é crime, e sonhar não precisa de formulário.
O país, claro, continuou. Com as suas repartições, os seus boletins, os seus medos. Mas também com algo novo: a memória de uma insurreição poética. Sem tiros. Com páginas.
E isso… já ninguém pôde arquivar.
“A República dos Carimbos – Crónica de um País Onde Tudo se Assina em Triplicado” é uma sátira ficcional passada numa nação que se assemelha perigosamente à nossa. Uma alegoria sobre a burocracia institucionalizada, a mediocridade elevada a método e a inteligência exilada por decreto.
Com humor ácido, crítica afiada e um lirismo de trincheira, esta obra denuncia, ridiculariza e ilumina — numa dança entre o trágico e o cómico, entre o absurdo e o real.
Francisco Gonçalves nasceu entre papéis e comboios, programou ideias em vez de silêncios e, mesmo depois de décadas a desafiar sistemas informáticos e humanos, continua a acreditar no poder da palavra como código-fonte da mudança.
Neste livro, Francisco é autor, cronista, rebelde e contador de histórias — não de um país imaginário, mas de um país possível, onde até o carimbo mais pesado pode ser quebrado por um simples gesto: pensar livremente.
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